Cine Municipal - o das cadeiras estofadas
Deve ser da natureza humana. Quanto mais perto do fim da vida, a tendência é revisitar o passado. Volta e meia, do nada, assomam velhas lembranças que julgávamos enterradas em algum lugar profundo de nós. Essa semana, um foto da igreja de São Borja fez isso comigo, carregando minha alma para as ruas daquela cidade que viu desfilar minha primeira infância. Lembrei então de quando tinha pouco mais de oito anos e ia para o cinema com minha irmã mais velha e suas amigas. Era sempre na sessão de domingo à tarde porque a noite era dos adultos. No geral revezávamos as salas em busca dos melhores filmes. Os de mocinho passavam no Cine Municipal, que era mais confortável, com cadeiras estofadas. Os de Tarzan passavam no Variedades, cujas cadeiras eram de madeira dura. Os dois cinemas ficavam a pouca distância um do outro, o que permitia a prévia consulta aos coloridos cartazes.
Por algum motivo eu gostava mais do Variedades. Como ali as condições eram piores, as sessões eram mais baratas e a plateia bem mais popular. Não havia preocupação com a roupa que se estava vestindo e o objetivo maior era a diversão. Já no Municipal desfilavam as meninas endinheiradas, com seus modelitos em estilo frufru.
Por isso, o bom mesmo era a balbúrdia em frente ao cinema mais caidinho. Antes da sessão a gurizada se encontrava para jogar o "bafo" com as figurinhas dos álbuns. Era um bom momento de levar para casa um bocado de figuras que depois seriam re/trocadas. Também havia a tradicional troca de gibis. Era quase um mercado a céu aberto. E não era preciso conhecer ninguém, o que ajudava muito, visto que era muito tímida. Assim, sempre marchava para o cinema com minhas revistinhas.
Bem em frente montava guarda o João das Balas, com suas tradicionais balas "puxa-puxa", envoltas em papel branco com franjinhas. Grudavam nos dentes, tinham gosto de açúcar mascavo e aquele puxa-puxa durava a sessão inteira. Também era comum, depois que começava o filme, a batalha de balinhas. O pessoal entrava com saquinhos de balas coloridas que depois viravam munição, numa algaravia que tomava conta do lugar assim que a luz apagava.
A velha cidade de São Borja, na fronteira com a Argentina, com seus cinemas no centro, foi o berço desse encantamento pelas histórias que me acompanha desde então. Mesmo em meio a gritaria que assomava quando o mocinho aparecia ou quando Tarzan realizava peripécias, eu encontrava um espaço de silêncio no qual permanecia, embevecida com a mágica dos quadros em movimento. O cinema era feitiço e os enredos eram feitiçaria.
Depois, em casa, eu rabiscava as histórias que nasciam das pequenas memórias que envolviam os temas vistos nas tela e do que presenciava na rua. Encantavam-me as meninas, filhas dos turcos, que chegavam para o matinê com as cabeças envoltas em lenços coloridos e eu arriscava alguns contos árabes. Certamente vem daí o amor que tenho por essa cultura. E assombravam-me as garotinhas bem vestidas e de nariz empinado, as quais comparava com as irmãs da gata borralheira, fazendo com que eu as narrasse com mordacidade. Meu mundo era tão vasto naqueles dias de domingo.
Hoje, nas grandes cidades cinemas já não há, estão sub sumidos nos grandes centros de compras e não representam coisa alguma. Não têm trocas de figurinhas, nem jogo de "bafo", nem balas puxa-puxa. Não há calçadas - estão dentro dos xopins - não há meninos de calças curtas e narizes ranhentos. A infância mesmo mudou. Mas, não duvido que em algum lugar desse deserto exista alguma garotinha tímida, arriscando suas primeiras letras. Porque é assim, desse olhar sobre a realidade, que nascem as construtoras de mundo. E por mais feio que seja o real, sempre há portas a romper.
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