sábado, 30 de maio de 2015

Edvilson, um professor









Esse texto é uma crônica de ficção. Mas poderia bem ser a história de cada um dos professores e professoras que acamparam na Alesc, na luta por vida digna.






Acordou cedo o garoto. Na verdade pouco dormira, e não era por conta do chão duro da Assembleia Legislativa, onde estava acampado junto com outros colegas professores. O que lhe martelava o cérebro era a impotência. Estava ali, há dias, revezando as noites, numa luta sem fim. Parecia absurdo que um professor tivesse de fazer tudo aquilo para ter um salário digno. Acreditava que isso era o mínimo que se poderia esperar de um governo.

A barra do dia ainda não surgira e ele estava à janela. Uma gota de lágrima teimava em aparecer no canto do olho. Lembrava-se da mãe, cujo sonho maior era vê-lo formado professor. Pensou que era bom ela não estar mais. Assim, não veria sua angústia nem sua dor. Nascido e criado no morro da Costeira, Edvilson era só mais guri talhado para vida nenhuma. Morando num barraco, vendo a mãe lavar roupa dia após dia, sem que soubesse do pai, ele andara beirando o mundo do tráfico. Zezão lhe havia prometido um tênis da Nike se ele se dispusesse a levar alguns pacotinhos para o asfalto.

Naqueles dias a ambição do "ter" chegou a fazer cócegas. Mas, o riso de cristal da mãe foi mais forte. Ela desejava mais do que tudo que ele fosse professor. Tinha trabalhado numa casa de família na qual uma das moças era professora. E sempre lhe encantara aquela profissão. “É bonito ensinar os outros”. Era só o que queria para seu guri. Por isso não poupava esforços para que ele frequentasse a escola. Nada lhe faltava. O uniforme limpinho, a merenda, os materiais. “Tu vai ser professor”. E ele nunca ousara outra coisa. Quando nas tardes de inverno ele fazia os deveres perto do fogareiro improvisado com madeiras recolhidas na rua, podia perceber a alegria da mãe, observando-o desenhar as letras grandes e harmônicas.

Nunca lhe sairá das retinas a alegria que viu nos olhos dela, quando, já formado no magistério, passou no concurso estadual. Seria professor de escola pública. Iria garantir que outros guris, como ele, encontrassem um caminho para além das vidas predeterminadas pela pobreza. Como acreditava na educação. Amava Paulo Freire e descobrira há pouco tempo Simón Rodríguez, dois monstros da arte de educar. Com eles andava, buscando transformar as vidas dos seus pequenos.

A mãe morrera no segundo ano depois que ele entrou para o magistério estadual. Morreu feliz. Tinha encaminhado o filho e ele encaminharia outros tantos. A vida fizera sentido. Maria nunca soube como era, de fato, a vida de um professor. E Edvilson nunca lhe tirara o gozo. Escondia dela as noites no sindicato e não lhe contara sobre a luta pelo piso nacional que o governador não queria pagar. Para Maria, a vida dele era um paraíso e, no hospital, onde ela lutava contra a tuberculose, ele só contava das alegrias da sala de aula, com a gurizada. Ela se deliciava. “Valeu a pena, né, filho? “ E ele acenava que sim.

Agora, na janela, depois de mais uma das tantas greves em luta por salário digno e condições de trabalho reais, ele vislumbrava o rosto da mãe nas brumas da noite que ia embora. Olhou para os colegas que ainda dormiam nos colchonetes improvisados e sorriu. Maria estava certa. Tinha mesmo valido a pena. Na escola ele fazia a diferença e ali, com aqueles companheiros também. Pavimentava uma estrada que haveria de ser bonita. Um educador é mais que um professor, ensinando para além da matéria do programa. E aquela luta era pedagógica. Os alunos o apoiavam, traziam cartazes nas passeatas, discutiam a educação, aprendiam que a escola pública, ainda que tenha sido criada apenas como um ritual, num arremedo de educação, pode ser revolucionária também. Basta que existam educadores assim, como aqueles que caminhavam com ele em mais uma greve da educação catarinense.

O dia brotou por trás do Mocotó e Edvilson misturou-se a algaravia dos que acordavam. De pé para mais um dia de luta.  

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