A cidade de Florianópolis se vende como a capital do Mercosul, um
espaço de belezas turísticas capaz de atrair os mais refinados gostos. Até aí
não existem inverdades. De fato, a cidade é pura beleza, de uma natureza
exuberante e uma cultura rica e original. Mas, ao longo dos últimos anos, tudo
isso está esboroando. A beleza natural cede espaço para os prédios, condomínios
e empreendimentos imobiliários de todo o tipo que estão apagando a beleza da
costa. Das 42 praias que só a ilha
possui, pode-se contar numa mão aquelas que ainda não foram transformadas para
dar lugar ao "progresso". Um certa insanidade porque os turistas que
aportam na ilha querem ver a beleza das praias. Só que com a ocupação
desenfreada e irregular, aos poucos a natureza vai dando lugar ao cimento e à
loucura da vida urbana. Ou seja, transforma-se no contrário daquilo que os
turistas, e os que buscam a cidade para viver, desejam.
E, da mesma forma como a natureza vem sendo destruída, também a cultura
está pagando o preço do crescimento da cidade. Com o inchaço das comunidades,
muitas vezes de maioria forasteira, a cultura local vai desaparecendo. Nada
contra os "de fora", mas, ao que parece, muitos dos que aportam na
ilha preferem não se integrar aos ritmos culturais autóctones e, aos poucos, a
riqueza da vida ilhoa vai se perdendo, com a priorização de eventos de caráter homogeneizado,
representando a cultura "global" tais como os grandes shows musicais
e festas ao estilo "jet-set".
Uma das construções culturais que pena para se firmar é o
boi-de-mamão, brincadeira de danças e cantorias típicas da região de
descendência açoriana. Poucos são os grupos que sobrevivem na cidade e raras as
escolas que ainda se dedicam a ensinar a brincadeira e a construir os
personagens. Mesma a festa do boi que a prefeitura realiza de tempos em tempos,
não reverte em vivencias cotidianas locais, ficando apenas como um evento a
mais no cartel turístico. O pão-por-deus, outra tradição cultural na ilha
também já vai se perdendo nas brumas das memórias dos mais velhos. Os pequenos
versinhos rimados, escritos em um coração de papel, oferecidos junto com um
pão, vivem no cotidiano de poucos e também o seu caráter comunitário se esfuma,
já que as comunidades cresceram e estão cheias de pessoas que não se importam
com as velhas práticas locais. A renda de bilro ainda resiste na lagoa e em alguns
outros espaços bem delimitados. Não se vê a juventude aprendendo a construir
belezas com o batucar delicioso dos bilros de pau. Assim também acontece com a
prática da olaria, hoje praticamente transformada em folclore, quase sem
seguidores.
A cultura para quem?
E se a cultura popular da ilha de Santa Catarina se arrasta em
indigência e falta de apoio, também falta à população espaços de outras formas
de cultura, para que possam se alimentar de belezas e reinventar as práticas
comunitárias. Há alguns anos, a prefeitura criou um projeto bastante
interessante chamado "Floripa Letrada", a partir do qual foram
instalados espaços nos terminais de transporte urbano, para o empréstimo de
livros. As pessoas, esperando o ônibus, podiam pegar livros e revistas e,
inclusive, levar para casa. O projeto ainda existe, mas o cuidado com os livros
oferecido é praticamente nenhum. O que se vê são depósitos de livros velhos,
sem maiores critérios e sem uma preocupação real com a distribuição de obras de
autores catarinenses, por exemplo. Na verdade, são livros que ninguém quer.
Perde-se a chance de encantar as pessoas com boas obras.
No que diz respeito ao acesso aos equipamentos culturais que uma
cidade deve ter, também a situação é sofrível. Os cinemas estão praticamente
todos dentro dos "xopingues", cercados de tantas outras formas de
sedução e com ingressos tão caros que é praticamente impeditivo para um
trabalhador assistir a um bom filme. Os
teatros, excetuando o belo e velho TAC (Teatros Álvaro de Carvalho), que fica
no centro da cidade, ficam completamente distantes da vida da maioria. O Centro
Integrado de Cultura (CIC) sequer tem uma parada de ônibus na frente. Para
chegar até lá, aos que não tem carro, é preciso pegar um ônibus que para na
parte de trás e andar um bocado para entrar no local. Da mesma forma, por conta
da falta de mobilidade na cidade, se uma pessoa que mora num bairro do norte ou do sul decidir
ver um filme no CIC, está frita. Com a sessão terminando perto das onze da noite,
a pessoa corre o risco de não conseguir pegar um ônibus para chegar em casa.
O mesmo acontece com o Teatro Pedro Ivo, construído na sede do governo
estadual que fica na SC 401. Uma pessoa ônibus-dependente não pode desfrutar
dos eventos teatrais ou dos shows musicais. Certamente não chega em casa por
falta de mobilidade. Assim, a geografia da cultura em Florianópolis está toda
preparada para uma pequena parcela que pode se deslocar de carro e pode pagar
caro para usufruir dos bens culturais.
Os eventos que acontecem no centro da cidade ou no mercado público são
muito esporádicos e, por conta disso, não conseguem criar vínculo com as
pessoas. A sede por cultura é grande e isso pode ser notado em momentos como o do Festival Isnard de Azevedo, que leva o teatro
para a rua, para os bairros, gratuitamente. As pessoas participam, gostam, se
deixam ficar. Mas, isso só acontece uma vez ao ano, quase como um evento
ritual. Não se vê, no cotidiano da cidade, o teatro pelas ruas. Até porque,
como também não há uma política de incentivo à arte por parte do poder local, os
artistas tampouco conseguem oferecer espetáculos á maioria da população . É um
triste círculo vicioso que não encontra paradeiro. Os realizadores culturais
precisam se virar nos 30 para conseguir montar uma peça, fazer um show, montar
uma exposição. É tudo muito difícil. Para complicar, também não existe uma
organização ativa dos artistas e gente da cultura. Cada um batalha por si e a
força se esvai.
Algumas ações isoladas sempre acontecem nos bairros. Na região de
Santo Antônio de Lisboa, o Baiacú de Alguém, por exemplo, que era só um bloco de carnaval,
hoje também se dedica a promover outras formas de cultura. Ou o Cine Dona Chica,
no Campeche, que busca levar o cinema para a comunidade, bem como a discussão
dos temas importantes da vida cultural do bairro. Há a ação da Banda da Lapa,
no Ribeirão da Ilha e a quase heroica resistência de Valdir Agostinho, na Barra
da Lagoa, a Barca dos Livros, na Lagoa, entre outras experiências semelhantes.
Mas, são ações que estão sempre dependendo dos fluxos e refluxos dos
financiamentos, patrocínios ou doações das comunidades. Não estão unificadas
nem tampouco fazem parte de uma política clara de promoção cultural da cidade.
Assim, nessa geografia que privilegia os mais abastados e isola cada
vez mais as práticas locais mais tradicionais, a cidade segue seu curso,
enchendo-se de prédios, afogando-se no cimento, perdendo dia-a-dia a sua beleza
natural e o patrimônio cultural de extrema riqueza. Não é sem razão que nas
tardes de outono, quando baixa o vento sul, as pessoas que ainda podem ouvir o chamado telúrico desse
belo lugar,escutem a gritaria das bruxas, resistindo na pedra grande do Morro
das Pedras. Elas embaraçam os cabelos das gentes e lhes sopram no ouvido a verdade inabalável: se esquecermos nossas
raízes, ficaremos à deriva no mar da vida. Ainda há tempo para a cidade, através
das forças vivas que atuam politicamente nas lutas gerais, assumir a batalha
pelo direito à cultura. Faz-se a luta por parques, pelo plano diretor, por
mobilidade e tantas coisas da vida prosaica. Mas também é hora de brigar pela
cultura, essa coisa aparentemente inefável e etérea, mas que, na sua
concretude, torna as gentes sempre melhores do que são. Todos os seres precisam
ter o direito de desfrutar dos bens culturais.
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