médico cubano: está onde ninguém quer ir
Eu aprendi com Enrique Dussel que talvez o único imperativo
ético universal seja a vida. Mas, não uma vida qualquer. A vida daquele que é
vítima do sistema que o oprime e o envilece. É esse ser que temos de defender
com unhas e dentes, para o que vier. Todos os dias, nos deparamos com ele, na
televisão, na rua de casa, no mercado, ao virar a esquina. O caído, o desgraçado,
o fugitivo, o assustado. A maioria das pessoas faz como naquela linda parábola de
Jesus: olha, e passa adiante. Poucos são os que se curvam e acolhem o que está
no chão. E é bom que se diga que os empobrecidos da terra não o são por sua
culpa. A maioria está nessa condição porque alguém está lhe sugando a vida.
Alguém está enriquecendo a custa do outro. É a máxima do capitalismo. Só que é
mais fácil permanecer com o véu da alienação. Conhecer dói.
Noite após noite a televisão – esse olho insone - joga na nossa cara a dor do mundo. Mas, de
maneira espetacular, consegue virar o jogo. Os meninos negros, que são
assassinados como moscas nas periferias das grandes cidades, não aparecem como
vítimas. Eles são os “monstros” que andam por aí a fazer maldade. Ninguém diz o
porquê deles ficaram assim, se é que ficaram mesmo. E os bons cristãos fazem o “pelo
sinal” e agradecem pela polícia nos livrar dessa “corja”. Também vemos os “terroristas”, que podem ser
os palestinos, os sírios, os iraquianos, os afegãos, sempre serão aqueles que estarão
vinculados a algum plano do império estadunidense para vivenciar a “plena
democracia”. Não importa se para isso for necessário promover farsas macabras
como a do 11 de setembro ou o assassinato de crianças inocentes com armas
químicas. Tudo vale a pena porque a “democracia” não é pequena. E a classe
média, aquecida em seus cobertores, esfrega as mãos e agradece pelo império
fazer a defesa de seu castelo de sonhos, “o mundo livre”.
Esses mesmos falsos burgueses, que pensam estar seguros com
seus planos de saúde, agora se levantam contra a vinda dos médicos cubanos.
Acreditam na revista Veja. Creem firmemente que essa gente solidária nada mais
é do que um povo escravizado que teme desobedecer a Fidel. Não
sabem nada de Cuba, de sua história, da coragem de seu povo em estar há mais de
60 anos enfrentando o maior império da terra, e vencendo. Não sabem que na ilha
socialista qualquer pessoa que queira, pode ser médico, engenheiro ou padeiro. Depende
apenas de sua vontade. Não sabem que são esses profissionais que se formam na
solidariedade ao caído, ao oprimido, que se deslocam para os mais terríveis lugares
da terra unicamente para salvar e acolher. São esses jovens médicos cubanos os
que estão no Haiti, curando feridas, enquanto os nossos jovens vão para lá de
arma em punho, servir de cão de guarda ao império.
Agora vem essa polêmica por conta da vinda dos cubanos. De novo
o véu da alienação. Ninguém se pergunta por que um país como o nosso, tão rico,
tão cheio de bênçãos, precisa desses abnegados cidadãos? Se os médicos cubanos
são aqueles que partem para os confins do mundo, onde a dor do outro é tão
intensa que mais ninguém quer ver, por que precisariam vir para o Brasil? Que
porcaria de país é esse que arrota caviar, mas precisa dos médicos cubanos,
esses que vão aonde ninguém quer ir?
Pois esse é um país no qual boa parte dos médicos sente nojo
dos pobres, sente medo, sente asco. E por conta disso os deixam morrer nas
ruas, sem ajuda. Ou olham, sem sequer levantar da cadeira, uma pessoa ter um ataque
do coração. Ou são aqueles que sequer levantam os olhos para o doente à sua
frente num posto de saúde. Os que não
apertam a mão, os que não tocam, não examinam, não reconhecem o enfermo como
ser humano precisando de consolo.
Esse é um país aonde os jovens recém-formados se recusam a ir
para o interior, para os lugares longínquos, para as selvas, para as favelas,
os bairros de periferia. Nem mesmo altos salários os comovem. Deve ser,
portanto, um problema de origem. Talvez um problema de classe. Quem é que nesse
país pode se formar em medicina? Como pode um jovem da periferia ser médico se
o curso exige tempo integral e custa os olhos da cara, mesmo numa escola
pública? Pois esse é um país que forma médicos, dentistas, engenheiros, na sua
maioria de classe alta. É, portanto, bem diferente de Cuba, que incentiva e
garante o ensino dessas profissões, e por ter tantos profissionais pode mandá-los
pelo mundo para que ajudem quem nada tem.
Assim que a vinda dos queridos irmãos cubanos para o Brasil,
em vez de causar tanta indignação, deveria suscitar um alerta. Se temos tantos
médicos como ficou parecendo nas passeatas dos “de branco”, por que não os
encontramos onde eles têm de estar? Por que precisamos da ajuda dos cubanos, se
eles estão acostumados a atuarem em lugares perdidos de toda a esperança, como
os confins do continente africano, ou as aldeias andinas, ou os empobrecidos
países do Caribe, como é o caso do Haiti? Em que medida o país do pré-sal, a
quinta economia do mundo, se compara a esses tristes lugares onde só a solidariedade
cubana é capaz de chegar?
Essas perguntas é que deveriam ser feitas por nós. O que é a
medicina num país capitalista? Ela existe para salvar a vida, para dar conforto
ou apenas para fazer girar a roda do lucro das farmacêuticas e dos mercadores
da saúde? Por que não temos uma medicina preventiva? Por que não há médicos nos
postos de saúde? Por que não estão eles nos hospitais, nas emergências, nas
pequenas cidades do interior, no campo?
Onde se esconde toda essa gente que agora anda a vociferar nas ruas?
Sim, nós não deveríamos precisar dos médicos cubanos. Nossa
juventude deveria ter acesso às escolas de medicina, de odontologia, de
veterinária. Deveríamos formar milhares e milhares de profissionais da saúde,
para que cuidassem das gentes de todo o país. Deveríamos ter universidades de
massa, nas quais os filhos do povo pudessem se formar com qualidade. E qualquer
guri, mesmo aquele que vive lá no interior do Acre, deveria poder fazer realidade
o sonho de ser “doutor”. Mas, não é assim. Os médicos que temos são esses que
vemos na televisão dizendo que se vierem os cubanos eles não vão ajudar quando
eles errarem. Ou seja, que morra o vivente, apenas para provar que estão
certos.
É certo que temos também muitos profissionais médicos que se
assemelham aos cubanos, que dedicam suas vidas ao juramento que fizeram de
cuidar, acolher, curar. Esses, sabemos reconhecer de apenas uma mirada. Mas,
ainda são minoria. Para nossa desgraça, o que aparece são esses que vemos na TV
a bradar contra os cubanos, mas não contra o estado de abandono que está a
população. E é isso que torna tudo ainda mais sórdido. Porque pessoas há que
lhes dão razão, e não são poucas. Essas mesmas pessoas que, portando um plano
privado de saúde, acreditam estar a salvo. Não estão. Mas, ainda assim,
compactuam dos preconceitos, dos absurdos, da alienação e da mentira.
Eu realmente não queria que os médicos cubanos viessem para
cá. Queria ter um país que não precisasse dessa ajuda solidária. Mas, ocorre
que, em alguma medida, e em tantos lugares, somos tão desprotegidos como os
irmãos do Haiti ou de alguma longínqua aldeia africana. É certo que os médicos
cubanos são só pessoas, não fazem milagres. Mas, não há dúvidas de que a
medicina que se ensina e pratica na ilha caribenha se difere em muito da nossa.
Ela pensa o ser como uma vida integral, alguém que tem nome, sobrenome, sonhos,
esperanças. Não é um dado na ficha, um inoportuno, um zé ninguém. E é por conta
disso que quero receber essa gente única com todo o amor que há nessa vida.
Eles saem de suas casas para fazer o que nossos profissionais deveriam fazer.
Rogo a todos os deuses que eles tragam, mais do que essa solidariedade abissal,
também o germe da rebeldia, para que nosso povo possa compreender que já é
chegada a hora de fazermos a transformação. E que a gente avance para um país
que não precise dos cubanos, um país que possa ser ocupado por nós mesmos. Mas,
para isso, haveremos de mudar a universidade, mudar o país, e sair desse
sistema que mercadeja com a saúde e a vida.
Os cubanos podem até não salvar todas as vidas, mas, não duvido,
eles serão capazes de segurar a mão do que padece e dizer: “não tema, eu estou
aqui”. Porque são feitos de outro barro. Socialista.
8 comentários:
Lamentavelmente foi jogada a responsabilidade do caos da saúde pública no Brasil nas costas unicamente dos médicos. Além do mais a solidariedade não vai durar para sempre e não vai fazer mudar as condições degradantes de acesso à saúde para a população. É um paliativo com efeitos colaterais que sentiremos em breve. Aguardemos.
Até quando a idéia de que saúde é tomar remédio, ir no hospital, fazer exames caros, etc. etc. Temos que entender que fazer saúde é evitar justamente que as pessoas precisem deste tipo de serviço. No Brasil a 500 anos foi feita uma política de saúde pra beneficiar grupos ligados a multinacionais de medicamentos e aparelhos médicos só pra ganhar dinheiro com a desgraças de muitas famílias e, sim os médicos brasileiros foram formados com este pensamento, por isso não querem ir para o interior e periferia, preferem ficar em grandes centros esperando as ambulâncias levarem os desesperados a eles.
Elaine, obrigada por este maravilhoso post. Eu postei no meu blog em Português, porque não me atrevo a trair o seu espírito. Vemo-nos em pachakuti.
http://islamiacu.blogspot.com/2013/08/precisamos-dos-cubanos.html
Parabéns Elaine. Seu texto é perfeito!
http://www.americalatindo.blogspot.mx/2013/08/ritalina-vitimas-de-nos-mesmos.html
Belissima!
A vinda dos médicos arrematados em Castro & Castro Cia. Ltda. permite compor um catálogo de transgressões aos princípios da liberdade individual, da dignidade da pessoa humana, da justiça, da equidade, da proporcionalidade, do valor do trabalho. Repugna toda consciência bem formada a ideia de que um país possa alugar seus cidadãos a outro, enviá-los aos magotes como cachos de banana, beneficiar-se financeiramente dessa operação em proporções escandalosas e ainda fazer reféns as respectivas famílias por garantia da plena execução do mandado. E há quem afirme que toda oposição a uma monstruosidade dessas é "preconceito ideológico"! Pois eu digo diferente: acolher como louvável semelhante anomalia política é coisa que só se explica por desvio do juízo moral.
Dilma e os seus gostariam de dispor dos brasileiros como coisas suas, assim como os Castro dispõem dos cubanos. Sendo impossível, buscam-nos lá, do mesmo modo como, antigamente, eram trazidos escravos das feitorias portuguesas no litoral africano. Escrito por Percival Puggina
Texto irretocável! Perfeito! Lamentável é ler na mesma página um comentário deplorável como o desse pulha que atende por "vinicios moura".
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