sábado, 1 de outubro de 2011

Comunidade do Campeche faz ouvir sua voz: cai a passarela


De repente, no meio das dunas, entre o verde da mata e o amarelo da areia começou a crescer um monstro de pau. Misteriosamente vinha de um condomínio de luxo, construído na beira da praia. Por dias, o que se via da areia era uma profusão de madeiras, pregos e homens. A comunidade espiava, no seu jeito ilhéu, cismando. E o monstro vindo.

Então, numa manhã, aquela língua de madeira chegou à praia, destacando-se nas dunas como uma ferida aberta, uma grotesca chaga, um manifesto separatista. Desembocava cinicamente, e sem pudor, no exato lugar onde por anos vicejou o bar do Chico, espaço solidário da comunidade do Campeche, lugar das conspirações, das lutas e das festas populares. O bar que foi derrubado numa manhã chuvosa e gris, sem que as gentes do lugar pudessem fazer nada, depois de levar anos em luta para mantê-lo onde estava. Vieram as máquinas e os homens do poder. “Está sobre as dunas, tem que cair”, diziam.

Agora, o Condomínio Essence, um pequeno monstrengo moderno, de dezenas de apartamentos espremidos entre si, mas de alto padrão, reafirmava seu poder, tripudiando da comunidade na qual pretende incluir mais de mil moradores. O monstro de madeira era uma passarela que ia desde a saída dos prédios até a beira da praia, serpenteando por entre as dunas. Um refúgio seguro para os privilegiados moradores. Uma caminhada de 300 metros sem colocar o pé no chão. A natureza servindo utilitariamente apenas como paisagem.

A comunidade que cismava, decidiu agir. Vieram reuniões, idas aos órgãos ambientais, prefeitura, secretarias. Se o bar do Chico caíra, porque a passarela haveria de ficar nas dunas? “Vai proteger”, alardeavam alguns defensores da natureza. Mas, quem vive no Campeche sabe muito bem o que é que protege as dunas e a natureza. É a gente do Campeche, pessoas que amam o lugar e que amam viver num bairro jardim, onde a natureza não é coisa, é parte de cada um. Esse povo não protege a natureza porque é bonito ver o verde, as dunas e a praia. Protege porque o verde, as dunas, a praia estão entranhados no modo de ser de quem vive nesse lugar, nativo ou não.

Todos os caminhos institucionais foram trilhados, mas ninguém ouviu o clamor. O secretário do “desenvolvimento” ainda ameaçou: “Isso é o futuro. Virão outras”. Isso porque o projeto dessa gente que administra a cidade é fazer uma Florianópolis só para quem pode pagar bem caro por ela. E isso inclui a natureza. Nos enormes cartazes das construtoras, a praia, a areia, o sol, tudo está à venda, incluído no preço. E com um sabor a mais. A pessoa ainda não precisará viver o incômodo de sujar o pé. Pode pegar sua cadeirinha na porta de casa e ir até a beira do mar protegida pela passarela. Haverão de banhar-se?

Na última sexta-feira (30) o povo protestou. Nada aconteceu. No dia seguinte, voltaram as gentes. Desta vem em maior número. Sábado de sol. Praia bonita. Passarela terminada, bem nos destroços do bar do Chico. Era coisa demais. Uma instalação artística re-construiu o velho bar, com uma foto do seu Chico. Alguns choravam. Outros reclamavam, indignados. Então alguém gritou: “ao chão”. O mesmo grito dos homens do poder ao histórico bar numa manhã chuvosa. Mas, nesse sábado, não teve máquina. Teve gente. Teve comunidade. Uma a uma, unidas em pequenos grupos, as pessoas foram arrancando os paus, na mão mesmo, puxando, quebrando, libertando a duna do monstro de pau. Em pouco tempo já havia uma montanha de madeira e o malfadado “deck” já era. Ouvia-se o riso, corriam as lágrimas, palmas. “Foi um dia histórico. A comunidade mostrou que, unida, pode fazer valer a sua voz”.

A passarela foi arrancada da duna, mas a luta não acabou. Essa é uma queda de braço entre dois projetos muito claros: um deles prega o desenvolvimento predador, ainda que só de alguns, os clientes. O outro insiste em manter um modo de vida que avança com o tempo, mas que não destrói. Que preserva cultura, jeito de ser, simplicidade e harmonia com a natureza. É uma batalha titânica que cabe agora ao sul da ilha. O norte já passou por isso e perdeu. Aqui no Campeche, agora que é noite e cai uma chuva fina, as pessoas estão em casa, cismando e fazendo planos. Conheço meus vizinhos e sei: se depender de cada um, a passarela não volta mais.

9 comentários:

Tijoladas disse...

Não tem como não se emociaonar com o teu texto.

Vida longa - Que falta faz o Bar do Seu Chico

Bjs.
Mosquito

Cleandro Boeira disse...

Nossa, emocionante. Embora não more mais em Fpolis (gostaria de voltar, creia), tive muito orgulho do que li. O preço que a cidade está pagando por causa destes predadores é alto demais: montes de excluídos, pedintes cercando o Rita Maria, natureza depredada... Se o povo não se insurge, nada vai acontecer. Pena que, o ano que vem, nas eleições, o perigo é a continuidade desta canalha.

cinthia disse...

lindo elaine! minha solidariedade, aqui do morro das pedras. a cada dia vejo um pedaço de verde ou da praia ser tomado por um novo empreendimento. na minha rua, ha uma pracinha, abandonada pela prefeitura. quem faz a manutençao dela e da rua é um vizinho. nas ruelas que deixaram os condominios,obrigados pela lei, deixaram para ´passarmos mato e lixo. aqui vai meu puxao de orelha as pessoas . o lixo nao nasce na restinga tambem. SIM UNIDOS SOMOS FORTES

Sandra disse...

O norte da ilha não teve a fibra que precisava. Agora vemos o que acon tece no sul....e sinto orgulho de vocês!

Márcio Pereira disse...

Discordo desta visão romântica sobre o modo de vida ilhéu "original"... Afinal, um dia foram índios que viram seus espaços de convivência caírem para um modo de vida que - perdoem a franqueza - polui e degrada, sim - basta pensar na baía norte destruída, nas canelas e palmitos hoje extintos na Ilha, nas toninhas massacradas pelas redes da pesca artesanal. O texto é belo e bem escrito, mas precisa atentar para a objetividade da situação: se trata de mera luta por território a partir de contextos culturais diferentes - um mais antigo, outro mais recente. Mas não dá para acusar o condomínio de ser o único "ganancioso" nesta história - ele certamente comprou a terra do "invasor original", que embolsou uma bela fortuna com isso.

http://colunas.epoca.globo.com/planeta/2010/02/17/como-salvar-os-golfinhos-do-sul-do-brasil/

Cida Dani disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Zélia Viana Paim disse...

Emocionante, contagiante... Já morei em Florianópolis, tenho raízes aí, os avós paternos da minha filha. Quando volto nos verões, vejo as passarelas se alastrando, tanto na ilha quanto no continente. Parabéns a vocês do Campeche.
Beijos
Zélia

Cláudio disse...

Sem a passarela, cada morador do condomínio que for a praia, vai fazer sua própria trilha sobre a areia, e a destruição será maior.
Aliás, os novos moradores, agora também são donos da praia.

Cláudio disse...

Outras praias tem passarelas iguais, porém, a comunidade não destruiu nenhuma.
Se cada morador do condomínio, quando for à praia, sem a passarela, vai fazer sua própria trilha. Serão centenas de trilhas. Afinal, a ilha é dos Pinguços do Bar do Chico ou de todos nós???