segunda-feira, 3 de outubro de 2011

Povos da amazônia boliviana não querem uma estrada cortando suas terras



Quem conhece a história da Bolívia sabe: o povo é de luta. E se singularizarmos nos indígenas isso fica ainda mais claro. Desde os tempos mais remotos, as comunidades se expressam e definem o que é melhor para elas. Basta que a gente lembre que em 200 anos de república já passaram mais de 180 presidentes no país. Então, o que isso pode significar? Que quando os que mandam não fazem o que parece ser certo à maioria, ela os derruba do poder. René Zavalleta já bem definiu esse processo de rebeliões sistemáticas que parece singularizar a realidade boliviana. O que talvez seja difícil de entender aos não-índios é que os conceitos que regem a vida liberal burguesa no mais das vezes não se enquadram no mundo quéchua/aymara/guarani, e é por isso que para eles a dicotomia esquerda/direita não tem qualquer significado.

Hoje a política boliviana está enredada na luta que as comunidades fazem para que não seja construída uma estrada por dentro de uma área de preservação, o Território Indígena Parque Nacional Isiboro Sécure. A estrada, diz o presidente Evo Morales, vai levar o progresso, o desenvolvimento e, ele, assim como uma boa parte da população da Bolívia, não consegue entender porque os indígenas não querem a obra. A explicação mais crível parece ser a de que os indígenas do TIPNIS (moradores do parque) estejam sendo financiados ou manipulados por forças que querem desestabilizar o presidente. O próprio Morales tem dito que isso é coisa das ONGs ligadas aos Estados Unidos.

Essa explicação não é coisa para ser descartada. É bem possível que Ongs estejam se aproveitando do momento para fomentar uma desestabilização do governo, coisa que seria muito boa para o imperialismo central. Mas, a realidade boliviana não é tão simples assim. Os indígenas têm outra forma de organizar a vida, pensam com outra lógica. E o que pode parecer progresso e desenvolvimento para alguns, pode significar destruição, saque, mudança radical na cultura e na vida.

O Território Indígena Parque Nacional Isiboro Sécure é um espaço de terra de 12.363 quilômetros quadrados, onde ainda está protegida grande parte da flora e da fauna da região da Bolívia amazônica. Ali está também a Laguna Bolivia, um dos lugares mais incríveis para observação da vida silvestre. No território vivem 63 comunidades que mantêm sua cultura e tradição autóctone. São pelo menos 12 mil almas dos povos moxeño, yurakaré e chimane. Agora, com o argumento do desenvolvimento, o governo boliviano, financiado pelo BNDES brasileiro, quer construir uma estrada, que pretende ligar os Departamentos (províncias) de Cochabamba e Santa Cruz. O caminho terá 306 km e já teve as obras iniciadas em junho deste ano. Ela deve custar 415 milhões de dólares e o Brasil financiará 322 milhões. O caminho traçado pelo governo boliviano prevê a passagem por dentro do Parque Nacional, num total de 177 quilômetros.

Essas etnias que vivem na cuenca amazônica não são tolas. Elas sabem muito bem o que significa a passagem de uma estrada pelo meio do parque. Com a estrada vão os povoados, a colonização, a ocupação desordenada, o progresso predador. Essa história já foi vivida milhares de vezes pelos povos indígenas da América latina e todos sabem bem que com a ocupação chegam as doenças e a destruição. Hoje, a região é utilizada pelas comunidades com um alto grau de segurança alimentar e preservação, feita a maneira indígena.

A obra que deve cruzar o parque foi tratada em 2008 pelo governo Evo Morales sem qualquer consulta prévia aos povos moradores da região e é isso que eles questionam na marcha que realizam desde seu lugar de moradia até La Paz. Os povos do TIPNIS realizaram eles mesmos uma assembléia extraordinária onde debateram e deliberaram pela não autorização da construção da estrada. Decisão que é soberana e respaldada pela Constituição. Como o governo não deu ouvidos a isso eles deliberaram pela luta que se expressa historicamente na marcha. Por isso partiram no mês de julho em direção à capital.

Desde aí, o país tem vivido momentos de grande apreensão, pois o governo permanece com a intenção de passar por dentro do parque com a malfadada estrada. Na última semana de setembro o clima esquentou quando os caminhantes foram brutalmente agredidos pela força policial. O presidente Evo Morales afirma que jamais mandaria bater em seus irmãos, mas o fato é que a polícia bateu e deixou muitos indígenas feridos, provocando indignação mundial.

O presidente fala em armação imperialista e ele pode estar certo, mas essa armação pode ter mais a ver com a proposta de integração da Bolívia ao modo de produção globalizado do capitalismo. Por isso todo esse investimento em comunicação, energia e transporte que vem sendo feito sob a batuta do governo brasileiro, através dos financiamentos e da ação de mega empresas como a Odebrecht, Andrade Gutiérrez, OAS e outras. Segundo denúncias dos movimentos sociais bolivianos, essa estrada estaria sendo financiada pelo governo brasileiro como uma primeira abordagem para uma ocupação maior na região amazônica para a construção de novas barragens. Logo, o que está em jogo nessa batalha não é coisa pouca. Caminha aí também o sub imperialismo brasileiro.

Assim, a crise estabelecida hoje na Bolívia envolve múltiplas facetas. A queda de braço que as comunidades estabelecem com o governo diz respeito a pratica real do “estado plurinacional”. Se a Constituição boliviana, feita na luta e na esperança, afirma o direito dos indígenas sobre seu território, e se a decisão é de que a estrada não passe por lá, porque não se acata e pronto? Por que o governo insiste em passar o caminho por dentro do parque? Que interesses obscuros se escondem por detrás dessa decisão?

A marcha que os moradores do parque realizam até La Paz, onde pretendem chegar em 12 de outubro, não é para desestabilizar Evo Morales. É para garantir seu direito constitucional, conquistado com muita batalha e muito sangue boliviano. Acusados de intransigentes quanto ao progresso pela direita, e de “pachamanismo” pela esquerda incapaz de compreender a cosmovisão indígena, as comunidades seguem seu passo lento, no ritmo histórico das suas reivindicações. E chegarão a La Paz e se farão ouvir. Eles reivindicam o direito de viver como decidiram. Se parece atrasado, se parece insensato, se parece loucura, isso é coisa que as comunidades devem discutir. O estado plurinacional conquistado na luta define que os povos originários têm o direito de decidir sobre suas vidas. Se decidirem errado, que mal pode haver? Uma boa olhada no desenvolvimento capitalista dependente que toma conta da América Latina prova que as comunidades brancas e desenvolvimentistas não têm acertado nas escolhas. Que deixem então, que as comunidades indígenas definam suas vidas. Com todos os riscos que isso possa significar.

Evo Morales, para não dar chance ao imperialismo, tanto dos EUA como do Brasil, deveria ter ouvidos de ouvir.