Devo dizer que ao longo desses mais de quatro anos tentei de tudo e ele passou por todos esses remédios que são ministrados para pessoas com Alzheimer. Psicotrópicos, calmantes, antidepressivos, ansiolíticos, uma infinidade. E a cada um desses remédios eu observava uma reação diferente. Acontecia de tudo, menos o sono. Em alguns casos vinham as alucinações, o desespero, a agitação desenfreada, a loucura desatada, levantando no meio da noite, querendo sair, batendo portas e forçando o portão, gritando sem parar. Em vez de melhorar, piorava. Outros o deixavam completamente dopado durante o dia, prostrado numa cadeira, com a boca torta.
Participando de grupos de ajuda de familiares com Alzheimer fui conhecendo os casos de pessoas que iam ficando com os músculos rígidos, paravam de andar, problemas para engolir, tudo aparentemente efeito colateral dos remédios. Uma aflição dos diabos vai tomando conta da gente porque não queremos ver a pessoa sofrer, e esse troca-troca de remédios ia me parecendo uma experiência meio desumana. Sabe-se que não há um remédio para o Alzheimer, o que os médicos podem fazer é ir tentando resolver os problemas que a doença causa. Eu entendo isso, mas os experimentos com o pai me causavam muito sofrimento também.
A gota d´água pra mim foi uma noite em que ele apareceu na porta da cozinha com a cara lavada de sangue. Eu havia dado um desses remédios para ele dormir e estava na minha cama, no meu quarto, dormindo. Pois ele havia acordado em surto e caído, abrindo um corte na testa. Aquela cara ensanguentada, aquele olhar de desamparo acabou comigo. Decidi mudar toda a minha abordagem.
A primeira coisa que fiz foi tirar os remédios. Mais nada. Depois, me mudei de mala e cuia para o quarto dele. Iria dormir com ele e observar sua noite, dando suporte para o que fosse. Antes, ele tomava o remédio e ficava sozinho, com a luz acesa e a televisão ligada. Não me deixava desligar. Ficava brabo. Percebi então que ele levantava várias vezes durante a noite e com a luz ligada, pensava que era dia, queria sair. Com muito carinho e tato fui mudando essa rotina. Apaguei a televisão depois de certa hora, depois a luz, e fui criando um ambiente aconchegante, mas penumbroso.
Hoje estamos assim. Ele janta as seis e lá pelas sete e meia vai para o quarto ver a novela. Assistimos juntos. Depois vimos as notícias e lá pelas nove já preparo tudo para o dormir. Ajeito a cama e vou insistindo com ele para deitar. Ele deita, eu apago a televisão, desligo a luz e o quarto fica silencioso e escurinho. Ele apaga na hora. Dali até o amanhecer acorda mais umas quatro vezes para fazer xixi, mas eu estou bem ali do seu lado. Limpo a bagunça, seco os pés e indico a cama para que ele volte a dormir. No geral dá certo. Há dias que ele está bem consciente e fica rindo por eu estar feito um fantasma ao seu lado. E quando está meio viradinho, resmunga um pouco mas volta pra cama. Há dias, é claro, que ele está bem mais agitado. Não deita, fica mexendo nas cobertas, tiras as coisas do guarda-roupa. Eu mantenho a luz apagada, só com a claridade do banheiro e fico quieta, esperando. Seus agitos podem durar duas horas seguidas na madrugada, mas depois disso ele cansa, aí eu venho e digo: vamos dormir agora? Ele deita e apaga.
Claro que isso é bem mais custoso e cansativo pra mim. Mas, percebo que é o melhor pra ele. Nenhum medicamento causando efeitos ruins, só a fixação sistemática da rotina. Tudo é feito na mesma hora, do mesmo jeito. Isso tem me custado as noites e toda a minha rotina de escrever e ver filmes nessas horas de calmaria. Isso se foi. Mas, por outro lado, quando ele desperta de manhã está mais descansado, e com o descanso também ficam mais raros os seus momentos de descontrole.
Tenho aprendido que essa doença danada tem pouco controle. E que o melhor remédio mesmo é a atenção e cuidado sistemático. Durante o dia uso um óleo natural abençoado por deus que o deixa lépido e falante e também garanto uma boa dose de nicotina – receita médica contra a agitação. Ele caminha bastante, come muita fruta, ajuda na horta, “trabalha” com seus papeizinhos, ouve música. E, de noite, na caminha. Não é coisa fácil mudar toda a vida da gente, mas foi o caminho que encontrei. Espero poder levar essa rotina até o fim. É só o que peço ao universo.
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