quinta-feira, 23 de maio de 2013

A colônia ainda vive, aqui e lá



Chile. Era madrugada e um pequeno grupo saía em direção a El Tatio, um dos pontos mais altos da região da quebrada de San Pedro de Atacama, no deserto chileno, onde ficam os famosos gêiseres. Havia chovido na noite anterior e as estradas estavam ruins. O guia que levava o grupo era um legítimo representante dos Likan Antay, o povo atacamenho, originário do lugar. Seu nome: Getúlio. Homem de poucas palavras, com aquele silêncio pesado que precede tempestades, típico das gentes do Atacama que veem a cada dia seus espaços sendo tomados por empresários europeus.

Na Van seguia um animado grupo composto por brasileiros, chilenos, e um espanhol. Colocávamos nossa vida nas mãos daquele homem, pois o caminho era absolutamente invisível, tamanha a espessura da neblina. Nada se via e só o que se sabia era que de num dos lados da estrada se abria um precipício. Getúlio seguia impávido, conhecedor que era das milenares veredas.

Então, houve um estrondo e o carro caiu num buraco, pendendo para o penhasco. Pânico geral. Mas, todos saíram bem e Getúlio começou a tirar o carro da fenda. Foi aí que o espanhol surtou. Começou a gritar, xingando o índio de irresponsável, acusando-o de colocar sua vida em risco, e outras barbaridades impublicáveis. Getúlio ouvia com impassível paciência enquanto, sozinho, lutava para tirar o carro da vala. Dava para tocar o desprezo que o espanhol tinha pelo homem enlameado a sua frente. Os demais ouviam estupefatos.

Quando o carro saiu do buraco, a histeria do europeu obrigou todo mundo a voltar para a vila. Ele fazia ameaças e impedia o carro de subir a montanha. Para ele, o acidente era culpa de uma natural “burrice” de Getúlio. A situação foi tão tensa que todos decidiram descer e se livrar do cara, prometendo voltar na madrugada seguinte, sem o espanhol.

E assim, no outro dia partimos pela mesma estrada, com o mesmo motorista, vivendo a mesma aventura da neblina fechada. Lá em cima, a maravilha dos gêiseres pode ser vivida sem alardes. Na hora do almoço, comendo sanduiches preparados por Getúlio, pudemos conversar. “Esse povo é assim, acha que ainda manda por aqui”, disse ele. “Pensam que somos sua colônia. Não somos mais!”. Estava indignado, mas tranquilo. “Nosso trabalho é esse. Temos de aturar muita coisa”.

Voltamos crentes que estávamos livres do espanhol. Não estávamos. Ele tinha dado parte de Getúlio, na chefatura dos “carabinieri”, acusando-o de quase matá-lo. Fomos todos dar declarações, afirmando que o espanhol era quem tinha colocado todos em risco com sua histeria. Getúlio cuidara de tudo e sabia andar por aquelas estradas de olhos fechados.

Em São Pedro de Atacama é comum encontrar estrangeiros. Tudo parece ser deles. Na rua principal, os bares e restaurantes já não são mais dos locais, que sobrevivem na periferia da vila. No geral, os turistas, muitos desses tipos, tal qual o espanhol da excursão, fazem discursos sobre a América Latina, gostam de segurar indiozinhos no colo, visitar os pobres, percorrer favelas. Mas, quando colocados em situações limite, o preconceito assoma. É que, de fato, a colônia ainda vive, tanto em alguns deles, como por aqui mesmo, nessas terras abyayálicas. Procurando bem pode-se ver que a Espanha, por exemplo, ainda domina grande parte das terras de cá. Hoje, de um jeito novo, via empresas transnacionais. Controla minas, telefonia, bancos, comunicação, serviços estratégicos, no mais das vezes. É um novo jeito de colonizar, de manter sob o cabresto as gentes da grande américa. Governos latino-americanos há que ainda se submetem e baixam suas cabeças para esses interesses, espanhóis ou não. Mas, pessoas como Getúlio também há, que apesar do silêncio diante da agressão, sabem que essa terra tem dono. E que, um dia, por força da luta, tudo vai mudar.

Um comentário:

juliana aline Lehmen disse...

"pessoas como o Getúlio" jé devem entender, por experiência e observação, que essas agressões são manifestadas pela ignorância. Os condicionamentos "milenares" de re-ação precisam ser desmistificados para que gentes de todas as partes se entendam como semelhantes e então tenhamos uma vida tranquila. Entendo por "força de lutar" o despertar da consciência e a quebra dessas correntes. Aprendi mais uma com o teu relato: "não vou mais chamar a polícia"(que é um condicionamento). Vielen Dank!