Sebastião, o homem!
Há quem diga que o mundo do capital traz, dentro dele, latente, o germe do socialismo. Porque afinal, um é contraposição ao outro. É como se, dentro do monstro, pudesse ir crescendo, devagar, um novo ser que, em algum momento vai conseguir vencer a batalha e tornar-se quem é. Pois o fato é que, vez em quando, a gente se depara com essas ilhas, nas quais a nova práxis é coisa cotidiana.
Foi assim neste final de ano quando vinha de uma interminável viagem desde Belo Horizonte até Curitiba. Faltava apenas uma hora para chegarmos quando o ônibus parou. Um caminhão carregado com produtos químicos tinha virado na estrada e uma longa fila foi se formando. Produtos químicos podem trafegar pelas rodovias sem qualquer problema, mas, a contar pelo tempo que tudo ficou parado, não há qualquer plano de emergência para acidentes com carga deste tipo. Não foi à toa que o tombamento aconteceu às três horas da manhã e a pista só conseguiu ser liberada às quatro horas da tarde.
Eram nove e meia quando alcançamos o trecho paralisado. Num outro absurdo da vida rodoviária do país, os ônibus agora não têm mais janela. Isso significa que numa situação como a que vivemos, só restam duas alternativas. Ou se morre sufocado dentro do veículo, pois ele parado precisa desligar o ar condicionado, ou se pega uma insolação do lado de fora, visto que, como já disse, não há nenhum plano de emergência para atender pessoas que são vítimas de acidentes como esse que aconteceu com o caminhão. Assim, lá estávamos nós, os passageiros, entregues a própria sorte, num trecho da estrada em que não havia uma casa sequer.
Do lado de fora, sob o sol, as dificuldades logo oportunizaram inventores. Alguém deu idéia de uma tenda e lá foi todo mundo buscar toalhas e cobertores que, amarrados, formaram um grande toldo que abrigou as mais de 40 pessoas que torravam ao sol. Nos carros de passeio que também estavam presos no engarrafamento, pessoas idosas e crianças vivam o tormento de não ter onde se esconder. Os mais próximos vieram descansar sob o nosso toldo. A dificuldade agora era a água. A sensação térmica no asfalto chegava aos 45 graus e havia muitas crianças. Era preciso encontrar alguma forma de buscar água.
Foi aí que passou um homem numa bicicleta. Era o sinal de que havia alguma casa por perto. Como nosso ônibus estava virado num acampamento e as pessoas logo o cercaram, ele parou. “Onde tem água?” Era a única pergunta com a qual bombardeávamos o pobre homem. “Não tem nada aqui. Minha casa fica a um quilômetro, pra dentro. Mas, fiquem tranqüilos, eu vou lá trazer água e uns queijos pra vocês”. Foi aquela algazarra, todo mundo deu risada e praticamente ninguém confiava que, sob aquele sol, ele fosse voltar e ainda trazer o prometido.
As horas se arrastaram e já passava do meio dia. Nada de liberarem a pista. As informações chegavam desencontradas e não havia sequer sinal de celular. Estávamos fadados a torrar no meio do asfalto. Então, lá longe, divisamos a figura do homem que passara de bicicleta. Vinha a pé, carregando um galão de água e uma sacola com queijos. Ninguém acreditou. Pois ele voltara e cumprira o prometido. De dentro do saco plástico tirou um copo, desses de massa de tomate, e a água se repartiu entre todos. Depois, foi cortando os queijos em pequenos pedaços e distribuindo também. Todos ficaram saciados, inclusive os “adendos” dos carros vizinhos que estavam sob o nosso toldo. Ali estava um homem raro, uma anomalia do sistema. Uma falha da matrix. Um socialista, e com certeza, sem sequer sabê-lo.
Sebastião é o seu nome e ele é o provedor de uma das duas mil famílias que moram na região da Barra do Turvo, atualmente ameaçadas de despejo por conta do fato de o lugar ter se tornado uma reserva ecológica, o Parque Estadual de Jacupiranga. “Agora com o parque, vieram aqui e disseram que a gente vai ter que sair. Pra onde? Estamos aqui há mais de 15 anos. É nossa casa”, conta, desolado, enquanto vai distribuindo o queijo. Ele não consegue entender como o governo pode proteger a mata, mas não se importar com as pessoas. Abrigado sob um chapéu de palha puído, ele sorri quando o pessoal pergunta o preço da água e dos queijos. “Não é nada não. Só tô ajudando, o rádio disse que isso aqui ainda vai demorar”. As pessoas se entreolham, envergonhadas. Por que, afinal, tudo precisa ter um preço? É incrível como quase ninguém acredita na gratuidade. O genuíno ato de amor.
Pois ali se fez, sob o sol. Sebastião, camponês, jesuânico, bom samaritano, socialista. Um homem capaz de um gesto poético, solidário, generoso. Um homem, Sebastião. Quando o ônibus voltou a andar, lá pelas quatro da tarde, o povo seguiu seu destino, quieto. Ninguém disse nada, mas dava para sentir que todo mundo naquele veículo havia sido tocado pelo amor. Se isso vai mudar a prática de cada um, não se pode saber. Mas eles experimentaram a gratuidade. E isso deixa uma marca indelével...
Há quem diga que o mundo do capital traz, dentro dele, latente, o germe do socialismo. Porque afinal, um é contraposição ao outro. É como se, dentro do monstro, pudesse ir crescendo, devagar, um novo ser que, em algum momento vai conseguir vencer a batalha e tornar-se quem é. Pois o fato é que, vez em quando, a gente se depara com essas ilhas, nas quais a nova práxis é coisa cotidiana.
Foi assim neste final de ano quando vinha de uma interminável viagem desde Belo Horizonte até Curitiba. Faltava apenas uma hora para chegarmos quando o ônibus parou. Um caminhão carregado com produtos químicos tinha virado na estrada e uma longa fila foi se formando. Produtos químicos podem trafegar pelas rodovias sem qualquer problema, mas, a contar pelo tempo que tudo ficou parado, não há qualquer plano de emergência para acidentes com carga deste tipo. Não foi à toa que o tombamento aconteceu às três horas da manhã e a pista só conseguiu ser liberada às quatro horas da tarde.
Eram nove e meia quando alcançamos o trecho paralisado. Num outro absurdo da vida rodoviária do país, os ônibus agora não têm mais janela. Isso significa que numa situação como a que vivemos, só restam duas alternativas. Ou se morre sufocado dentro do veículo, pois ele parado precisa desligar o ar condicionado, ou se pega uma insolação do lado de fora, visto que, como já disse, não há nenhum plano de emergência para atender pessoas que são vítimas de acidentes como esse que aconteceu com o caminhão. Assim, lá estávamos nós, os passageiros, entregues a própria sorte, num trecho da estrada em que não havia uma casa sequer.
Do lado de fora, sob o sol, as dificuldades logo oportunizaram inventores. Alguém deu idéia de uma tenda e lá foi todo mundo buscar toalhas e cobertores que, amarrados, formaram um grande toldo que abrigou as mais de 40 pessoas que torravam ao sol. Nos carros de passeio que também estavam presos no engarrafamento, pessoas idosas e crianças vivam o tormento de não ter onde se esconder. Os mais próximos vieram descansar sob o nosso toldo. A dificuldade agora era a água. A sensação térmica no asfalto chegava aos 45 graus e havia muitas crianças. Era preciso encontrar alguma forma de buscar água.
Foi aí que passou um homem numa bicicleta. Era o sinal de que havia alguma casa por perto. Como nosso ônibus estava virado num acampamento e as pessoas logo o cercaram, ele parou. “Onde tem água?” Era a única pergunta com a qual bombardeávamos o pobre homem. “Não tem nada aqui. Minha casa fica a um quilômetro, pra dentro. Mas, fiquem tranqüilos, eu vou lá trazer água e uns queijos pra vocês”. Foi aquela algazarra, todo mundo deu risada e praticamente ninguém confiava que, sob aquele sol, ele fosse voltar e ainda trazer o prometido.
As horas se arrastaram e já passava do meio dia. Nada de liberarem a pista. As informações chegavam desencontradas e não havia sequer sinal de celular. Estávamos fadados a torrar no meio do asfalto. Então, lá longe, divisamos a figura do homem que passara de bicicleta. Vinha a pé, carregando um galão de água e uma sacola com queijos. Ninguém acreditou. Pois ele voltara e cumprira o prometido. De dentro do saco plástico tirou um copo, desses de massa de tomate, e a água se repartiu entre todos. Depois, foi cortando os queijos em pequenos pedaços e distribuindo também. Todos ficaram saciados, inclusive os “adendos” dos carros vizinhos que estavam sob o nosso toldo. Ali estava um homem raro, uma anomalia do sistema. Uma falha da matrix. Um socialista, e com certeza, sem sequer sabê-lo.
Sebastião é o seu nome e ele é o provedor de uma das duas mil famílias que moram na região da Barra do Turvo, atualmente ameaçadas de despejo por conta do fato de o lugar ter se tornado uma reserva ecológica, o Parque Estadual de Jacupiranga. “Agora com o parque, vieram aqui e disseram que a gente vai ter que sair. Pra onde? Estamos aqui há mais de 15 anos. É nossa casa”, conta, desolado, enquanto vai distribuindo o queijo. Ele não consegue entender como o governo pode proteger a mata, mas não se importar com as pessoas. Abrigado sob um chapéu de palha puído, ele sorri quando o pessoal pergunta o preço da água e dos queijos. “Não é nada não. Só tô ajudando, o rádio disse que isso aqui ainda vai demorar”. As pessoas se entreolham, envergonhadas. Por que, afinal, tudo precisa ter um preço? É incrível como quase ninguém acredita na gratuidade. O genuíno ato de amor.
Pois ali se fez, sob o sol. Sebastião, camponês, jesuânico, bom samaritano, socialista. Um homem capaz de um gesto poético, solidário, generoso. Um homem, Sebastião. Quando o ônibus voltou a andar, lá pelas quatro da tarde, o povo seguiu seu destino, quieto. Ninguém disse nada, mas dava para sentir que todo mundo naquele veículo havia sido tocado pelo amor. Se isso vai mudar a prática de cada um, não se pode saber. Mas eles experimentaram a gratuidade. E isso deixa uma marca indelével...
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