terça-feira, 18 de agosto de 2020

O pai, falando em línguas


As noites com o pai tem suas agruras, mas também os momentos de riso. Com algum custo tenho conseguido fazer com que ele cumpra uma rotina de sono que começa as nove horas da noite. Ele deita e dorme até umas dez e meia. Aí levanta para o xixi. Tudo bem rápido. Então vem a despertada da uma e meia da manhã. Ele acorda, faz xixi e volta pra cama, mas não deita. É quando começa uma algaravia indecifrável que eu chamo de “falando em línguas”. Pra quem não está familiarizado com isso é como se ele estivesse falando uma língua só compreensível para o criador. Ele fala por mais de uma hora, bem alto, como se discursasse, sentado na ponta da cama ou andando pelo quarto. Consigo entender no meio do palavreado apenas um lamentoso “santa maria”, talvez reminiscências de suas rezas, já que era devoto de Nossa Senhora de Fátima. Eu apenas observo. 

No começo me dava alguma aflição, agora acho engraçado. Tomei pra mim que essa hora é a hora da conversa com os espíritos, com seus sonhos passados ou com suas próprias memórias, numa língua que só ele mesmo pode entender. Então, eu fico silente, reverente, esperando que ele termine esse encontro insólito. Tudo termina como começa, do nada. Ele para de falar, levanta os pezinhos, entra pra dentro das cobertas e segue dormindo. Eu cubro com o cobertor, acarinho sua cabeça e peço aos deuses que cuidem dele no próximo bloco de sono. Ele ressona, como um anjo, até que lá pelas quatro e meia ressurja de novo em meio às cobertas, para mais um xixi. E valamideuzi que seja só isso... e não mais duas horas de algaravia pois, às vezes, parece que há muita coisa para conversar com os espíritos... <3  

sexta-feira, 14 de agosto de 2020

Vereadores de Florianópolis aprovam aumento de contribuição da Previdência

 

Como a mídia comercial realiza uma sistemática campanha contra o serviço público, a população sempre tende a concordar que os trabalhadores públicos sejam vagabundos, incompetentes, etc...  E, como muitas vezes também se depara com uma estrutura carcomida, o que leva a um mau atendimento, acaba fortalecendo a opinião de que o serviço público é ruim por conta dos trabalhadores que são ruins. Mas, na verdade, o que realmente acontece é que o serviço público é ruim porque os governos não dão a ele a devida atenção e muito menos os recursos necessários para que sejam bons. E quando as coisas dão certo, no geral, é porque algum trabalhador teve de superar toda a estrutura para garantir o atendimento. É assim nas escolas, nos hospitais, nos espaços de atendimento burocrático. 

Agora mesmo, durante a pandemia, quem efetivamente está se desdobrando para garantir o atendimento às pessoas doente? Médicos, enfermeiros, atendentes, técnico de enfermagem, agentes de saúde. Muitos sendo infectados, e outros tantos morrendo. E quem são essas pessoas? Trabalhadores públicos. Ainda assim, se algo dá errado em qualquer espaço público, a tendência é sempre colocar a culpa no trabalhador e não naqueles que estão fazendo a administração do setor tais como prefeituras, estados e governo federal. O culpado do mau atendimento, do mau serviço sempre será o que está na ponta, o visto, o trabalhador. 

Essa é uma realidade que as entidades tais como sindicatos e federações ainda não conseguiram mudar. E mesmo que se façam campanhas recorrentes de valorização do serviço público e do trabalhador público, o peso do sistemático ataque aos trabalhadores parece ser bem mais eficaz. Quando uma Rede Globo faz uma reportagem de longos minutos mostrando como o trabalhador público onera o estado, ela não revela três coisas básicas: que os altos salários são uma minoria no setor, e que o número de trabalhadores na ponta dos serviços sequer é suficiente para um bom atendimento. Mas, quando a notícia termina, o que fica é: os trabalhadores públicos são um peso para ao estado. 

É por isso que quando os governos arrocham a vida dos trabalhadores públicos a maioria das pessoas vibra. Porque realmente acredita que os trabalhadores públicos são uma vergonha nacional. 

É também por isso que quando os governos decidem tirar direitos - conquistados em longa batalhas – ou privatizar a previdência ou aumentar contribuições, pouca gente se importa. Ocorre o contrário, há uma aprovação geral, porque afinal, se os trabalhadores públicos ganham tão bem, eles que paguem mais. Solidariedade de classe passa longe. Não existe. A lógica é: “se eu não tenho direito, que ninguém tenha”. 

Vivemos isso agora em Florianópolis quando os vereadores da cidade votaram, em uma sessão controversa e cheia de irregularidades, o que o sindicato dos trabalhadores está chamando de “confisco de salário”. Pois em plena pandemia, num momento em que a cidade vive um alerta vermelho, os nobres edis (que são também trabalhadores públicos, embora regidos por outras regras salariais), aprovaram o Projeto de Lei que reforma a previdência dos trabalhadores municipais aumentando em 3% a contribuição. Não houve debate com a comunidade, não foram apresentados os cálculos atuariais, nem sequer passou pela tramitação correta nas comissões. A proposta que partiu do prefeito Gean Loureiro foi votada sem que sequer as emendas apresentadas fossem apreciadas nas comissões. Tudo muito rápido, para evitar protestos. 

Na mídia, a notícia é dada como só uma notícia a mais, sem qualquer questionamento sobre as irregularidades, sobre a pressa ou sobre a falta de debates. Afinal, mais vale tirar 3% dos trabalhadores do que taxar fortunas ou discutir as verbas parlamentares. Ou seja, a partir de um alegado déficit – sem comprovação – na previdência, tira-se dos que mesmo têm. A questão que fica é: até quando a sociedade vai se manter cega diante da injustiça? Por que sempre são os trabalhadores os que que pagam a conta de um suposto déficit que, no geral, nunca é causado por eles?

Os vereadores que votaram a favor do confisco do salário dos trabalhadores – entre eles os da saúde, que hoje se arriscam por toda a população – foram: Beibe, Claudinei Marques, Dalmo Meneses, Dinho, Edinho Lemos, Erádio Gonçalves, Fábio Braga, Gabrielzinho, Gui Pereira, João Luiz da Silveira, Marcelo da Intendência, Maria da Graça, Miltinho, Renato da Farmácia e Roberto Katumi. 

Guarde esses nomes. Eles sempre estarão contra os trabalhadores, hoje, os públicos, amanhã, tu. 


quarta-feira, 12 de agosto de 2020

Futebol: que parem os campeonatos

 

Eu sempre amei o futebol. Desde menina vibrando a partir das cadeiras vermelhas do estádio do Internacional de São Borja. O pai era radialista, então eu tinha aquele espaço de privilégio. Depois, quando os times se juntaram no Esporte Clube São Borja, lá segui eu o novo time, no novo estádio. A paixão mesmo era pelo que acontecia em campo, aquele bailado, os dribles, o gol.

Muitos anos depois tive a alegria de trabalhar como setorista no Figueirense, em Florianópolis, e foi daí que nasceu meu amor pelo alvinegro. Ainda assim era o futebol o meu encanto. Mas, na prática do trabalho também fui conhecendo a gurizada, os seres que fazem a festa acontecer. Nos clubes menores tende a não haver grandes estrelas. Todos estão no mesmo nível, sem altos salários e com trabalho duro. Todos os dias, o treinamento pesado. Muita academia, muito suor, muito treino tático, com o corpo sendo levado ao seu limite. Não é bolinho não. 

Foi aí que descobri que aquele bailado, os dribles e o gol não existem sozinhos, eles precisam ter corporalidade, nome, sobrenome. Vai daí que os jogadores acabam sendo o centro de tudo. Sem eles, nada. Eles são esse corpo coletivo que levanta as gentes nos estádios. Eles são parte constitutiva dessa belezura toda. 

Por isso me encho de ódio ao ver os cartolas dos times, como empresas patrocinadoras, e como redes de TV exigindo que os campeonatos recomecem. A cada notícia de mais um jogador infectado, mais meu ódio aumenta. Como é possível tanta maldade? Tanta desimportância pela vida do outro? Em cada treinamento lá se vão oito, nove, 12 garotos para o drama da Covid-19. Que insanidade! E o pior é saber que eles sequer podem dizer não. São trabalhadores. Estão sob o tacão do capital. Ou jogam fora. Esse é o tom.  

O futebol é um jogo coletivo, de muito toque e de contato. Não há como jogar sem o risco de se contaminar. Não é possível que os amantes do futebol possam querer que isso continue, como se fosse um combate de gladiadores. É preciso proteger os jogadores como se proteger os demais trabalhadores nessa hora de angústia e incerteza. Como torcidas organizadas, fazer protestos, gritar, impedir esse sofrimento generalizado para os jogadores e suas famílias, que acabam se infectando também. Nada justifica o retorno dos campeonatos se não há sequer como ver os jogos presencialmente. 

Para os donos dos times, a vida não importa. Se um jogador morrer, outro logo vem. Essa é lógica do capital. Mas, se o dinheiro não entrar nos seus bolsos eles podem repensar. Nessa hora os que pagam pelo futebol, os torcedores, os sócios dos clubes, têm poder. Há que impedir essa insanidade. Exigir que os jogos sejam suspensos até que haja segurança para os trabalhadores. 

Eu não mesma consigo ver nem ouvir a transmissão do jogo. Aperta-me o peito, me dói o coração. Coloco-me na pele daqueles homens que entram em campo, assustados, e que ainda precisam vencer. Não, não dá! Que parem os campeonatos. Que se protejam os trabalhadores. Boicote aos tempos, às Federações, às emissoras de televisão. Aquele que ama mesmo o futebol há essa clareza. E os que apenas dinheiro no processo, que se fodam!


sexta-feira, 7 de agosto de 2020

No Brasil, segue a procissão dos mortos

No quinto mês do ano da peste chegamos aos 100 mil mortos no Brasil, enquanto nos EUA são 155 mil. Pelo visto, já, já, o nosso paisinho ultrapassa a matriz, para alegria dos que governam. Enfim, poderemos estar na frente do “tio” Sam. Seguindo a risca a lógica do sistema capitalista, os mortos que se mantenham em silêncio, pois “há que tocar a vida”. Não há novidade ou assombro diante da declaração presidencial, afinal, assim tem sido desde sempre. Os empobrecidos, os trabalhadores, aqueles que têm de seu apenas o corpo nu, esses não têm a menor importância. Não há sequer que pranteá-los. Desde que a máquina de tear foi inventada e os camponeses ingleses foram expulsos do campo para se venderem na cidade industrial que tem sido assim. Sem qualquer meio para prover a vida, sem nem uma nesguinha de terra, os trabalhadores foram morrer nas fábricas. Ali trabalhavam 20 horas ou mais e acabavam morrendo moços, de tanta miséria. Não passava nada. Os ricos tocavam a vida. 

Para quem quiser saber em detalhes sobre como era a vida no início do capitalismo, basta ler o luminoso livro de Frederich Engels “A situação da classe trabalhadora na Inglaterra”, ou para os mais renitentes com a leitura, ver o filme “Germinal”. Os trabalhadores sempre morreram como moscas. E passados séculos, nada mudou. Talvez o cenário, apenas. Se não há pandemia, há exploração, miséria, assassinatos. Basta uma olhada nesses programas imundos do tipo Datena. Os corpos caem sem parar. Isso se naturaliza porque as mortes parecem acontecer devagar e espalhadas, então, aparentemente não guardam relação. E mesmo quando as mães pretas, de crianças pretas, saem em passeata pelas ruas do Rio de Janeiro, ou de São Paulo ou de Florianópolis, pedindo justiça pelo assassinato de seus filhos, a maioria olha insensível: “não é comigo”, ou então, pior: “Alguma coisa deve ter feito pra morrer assim”. 

Agora, quando o novo coronavírus surgiu, já se sabia: os que iam morrer seriam os empobrecidos, os trabalhadores. Sem cuidado com eles, pereceriam. E não deu outra. Para o sistema, a morte de 1% da população significa coisa alguma, nada, logo, não há o que prantear. Toquem a vida, dizem para os que sobrevivem, sigam trabalhando e nos enriquecendo. E os que ficam tocam a vida, de novo, sem guardar relação com a lógica que os domina. É um massacre, não apenas de vidas, mas de consciências, porque os que não são tocados pela ceifadora seguem caminhando sem compreender porque tantos morreram. “Foi o destino”, “deus no comando” ou pior: “malditos comunistas”. 

A verdade é que não foi o destino. Foi o descaso. O governo federal minimizou a doença, sugeriu que ninguém ficasse em casa, tripudiou do uso da máscara, incentivou a aglomeração. Não fosse isso, muito menos gente teria morrido. Cuba, a pequena ilha caribenha, socialista, é um exemplo disso. Com 11 milhões de habitantes teve 88 mortes. O governo cuidou de seu povo. A Bélgica, capitalista, com o mesmo número de habitantes (11 milhões), teve 9.800 mortes. Uma diferença abissal, sendo que a Bélgica é rica e Cuba é um país bloqueado. 

No Brasil, alegando que não era coveiro, o presidente da nação se recusou a dar um trato unificado à doença. Jogou a responsabilidade para cada governador, cada prefeito. E todos eles, pressionados pelos empresários, foram entregando, de bandeja, as cabeças e os corpos dos trabalhadores brasileiros. Que se salve a economia. Danem-se as pessoas. Outras sobrarão para substituir. Vamos tocar a vida. 

Há projeções de que até outubro o país chegue aos 200 mil mortos. Para o sistema, nada. 1%. E para os que sobrarem também parecerá que foi muita gritaria por tão pouco. Afinal, as novelas serão retomadas, as aulas voltarão, o comércio reabrirá todinho, será lançado um novo Ifone, as academias de ginástica voltarão a ser o templo do corpo, a Amazon divulgará seus lucros estratosféricos, os bancos abrirão linhas de empréstimos e tudo ficará no passado. O sistema capitalista segue vigoroso, até fortalecido, afinal, morreram tantos velhos, quantas aposentadorias que já não serão mais necessárias. Será então a hora de criar um novo imposto, aumentar o preço dos produtos, alguma coisa assim que leve as pessoas a trabalharem mais para poderem manter a existência. Marx já dizia isso lá no século XIX: “para o capital, os trabalhadores devem ganhar não tão pouco, para evitar que morram, nem tão muito que os leve a preguiça”. Manter o trabalhador no limite. É e será perfeito. 

Os mortos? Ah, os mortos. Esses estarão bem, na glória de deus, que foi quem quis assim. 


quinta-feira, 6 de agosto de 2020

Lino


Conheço o Lino faz tempo, desde que entrei na UFSC como trabalhadora em 1994. Desde sempre um professor pé-no-chão. Um homem que ensinava – e ensina – a arquitetura a partir da cidade real. Andando pelos caminhos, conhecendo cada cantinho, observando cada transformação, amando a cidade. Esse é Lino. Um cara cheio de amor pelo espaço urbano, espaço da vida das gentes. Um cara que vê a periferia não como lugar para ser melhorado, mas lugar para ser transformado porque todos têm direito a viver uma vida boa e bonita. 

O Lino é a reminiscência do antigo PT, aquele dos primórdios, da práxis, que juntava a teoria com a prática. O Lino é um homem extraordinário, ainda cheio de pureza. Muitas vezes, seus adversários dizem que ele é só um tarefeiro, e que isso é alienante, porque a luta política não é só estar fazendo coisas pelos empobrecidos. Mas, o Lino não é um bocó. Ele é professor universitário, bastante afeito à teoria. Só que ele sabe que existem coisas que precisam ser feitas e ele faz. Isso é o que me encanta e emociona. 

Agora, quando essa loucura da pandemia começou, lá estava ele no apoio concreto às ações de solidariedade, de manhã, tarde, noite e fim de semana. Carregando cestas básicas, produtos de limpeza, agindo. Ah, mas isso não muda nada. Muda sim. Muda a vida de algumas famílias. Isso significa que ampara dezenas de universos, porque cada ser é um. O Betinho dizia que a fome não podia esperar, e que pessoas mortas não fariam a revolução. Por isso criou a campanha contra a fome, e também foi criticado. Cristão, lhe xingavam. Pois é. O Lino é assim. 

Ele reúne os indígenas, os sem-teto, os moradores de rua, o povo de terreiro, o pessoal de ocupação. Ele caminha na cidade empobrecida, ele faz o que tem de fazer. E não é pra buscar voto, não. Porque ele sabe que nesse Brasil patriarcal, ainda uma fazenda, os empobrecidos acabam votando nos políticos que dão coisas urgentes como uma carrada de barro, ou telhas, ou alguns trocados. Ele não dá isso. Ele dá atenção, ajuda a organizar, discute em profundidade os problemas. Ele luta pelo dia em que as pessoas votarão num cara porque tem com ele um projeto. Mas, não é assim. Ainda não. Por isso ele trabalha com formação e seu gabinete de vereador tem sido esse espaço de estudo, de encontro, de construção de novo tempo. 

O Lino constrói com a gente um projeto de cidade, ele escuta, ele repensa, ele aprende. Eu, quem nem sou mais do PT voto nele e tenho vontade de vê-lo prefeito dessa cidade. Porque a cidade do Lino é a minha cidade. Essa que se vê desde o chão vivido e pisado. Sei que é difícil. São tantas as traições, as punhaladas nas costas, o abandono, o desdém. Mas, sigo crendo. Dia virá que os puros de coração comandarão a terra, dia virá a revolução.  Tô contigo, Lino. Sempre...


Inverno


É agosto. Os cachorros se movimentam mais, latem mais, perseguem espíritos. A lua cheia aparece na borda do meu muro lá pelas sete horas, imensa. Gosto de ficar parada, vendo-a subir, ficando cada vez maior e mais brilhante. Jacy. Repleta de bênçãos, movimentando nossas marés interiores.  Que espetáculo. Não canso de apreciar. 

E, nessas noites de inverno o céu parece que se mostra com mais esplendor. Tudo tão limpo. As estrelas bem próximas. Gosto de apagar as luzes da casa e sentar no jardim, em silêncio, só sentindo o roçar dos gatos nas pernas. É quando os cachorros se aquietam e ficam ao meu lado, reverentes. Então, fico buscando as constelações. O cruzeiro do sul assoma, Orion aparece com as três Marias em destaque, Antares, a vermelha, pisca, indicando o caminho de Escorpião.  Ah, o céu.  Logo me vem à mente o Sr Spock, capitão Kirk, capitão Picard, meus parceiros cotidianos de aventuras pelo espaço. Mando um beijo para Carl Sagan, esse homem incrível que tanto me ensinou. Chego a vê-lo galopado pelo céu estrelado, atado a cola de algum cometa. 

Busco os discos voadores, como desde menina. Um dia virão. Sejam de outro mundo ou de outros universos temporais. Caço buracos de minhoca para poder fugir. Aqui tá estranho. Mas, enfim, esse é o tempo que me tocou viver. O vento frio vai gelando o pé, mas não arredo. A noite do inverno é bonita demais. Só faltam as fogueiras para que a comunhão se faça, mas as árvores estão podadas, e os vizinhos espiam. Se pá, eu viro bruxa. Já sou “petista”, “comunista”, e se me veem dando pago à terra ou dançando para os deuses aí a parada fica sinistra. Melhor seguir no silêncio, dançando na mente, como se estivesse no meio da pampa infinita, de cara para o minuano. 

Fecho os olhos e deixo que passe a procissão dos mortos, os que eu amo e amarei, os que me ensinaram, os que me guiaram. Acaricio as cabeças dos bichos e espero, pela bênção, pela força atávica. Tudo me inunda. Estou pronta para dormir. Assim são os invernos aqui nesse sul de mundo, nessa vereda perdida do Campeche.


Dos que nos fazem ser o que somos


Hoje encantou minha tia Tereza, deixando uma profunda tristeza no meu coração. Partiu na cauda dessa dolorosa doença que assola nossos tempos. Velhinha já, ela morava numa casa de repouso junto com a irmã, que está com Alzheimer. Foi pra lá porque, sozinha, e com dificuldades para andar, já não tinha mais como viver autonomamente no seu pequeno apartamento no Bom Fim, em Porto Alegre.  Preferiu estar com a irmã. Agora se foi, sem abraço e sem despedida. 

Minha tia Tereza sempre foi muito importante pra mim. Na casa do meu avô era na estante de livros dela que eu me fartava. Quando viajava para Uruguaiana já ia animada para enveredar por aquelas portas de madeira e mergulhar na sua coleção de livros da espiã Brigite Montfort. Ela tinha às centenas. E foi com Brigite que aprendi a conhecer o serviço secreto estadunidense. Pois, apesar de ela aparecer como uma espiã “boazinha”, ali estava também narrada toda a trama da CIA contra os países do terceiro mundo. Aquilo me formou e eu sempre agradeci à tia Tereza por isso.

A tia Tereza também foi a principal responsável por eu ter lutado pela minha profissão de jornalista. Quando vim de Minas, com 20 anos, de volta para o sul, foi ela quem deu o suporte inicial para eu seguir a minha vida e buscar o meu sonho. Lembro como se fosse hoje: cheguei à Secretaria de Educação, onde ela trabalhava, em Porto Alegre e disse: “tia, preciso de 20 mil – acho que era cruzeiros – não pergunte pra quê. Eu preciso muito”. Aquilo era muito dinheiro na época. E ela, sem perguntar, me deu. Aquele dinheiro foi fundamental para o rumo que tomou a minha vida. Assim, por causa dela e da confiança que depositou em mim, eu segui em frente. Naqueles dias, amparada também pela minha prima Circe Maria e meu primo Paulo Roberto. Esse núcleo familiar amoroso me apoiou e eu superei um tremendo desafio. Também nunca esqueci esse gesto, porque ele definiu a minha existência. 

Poderia elencar tantas outras historias com a tia Tereza. Histórias de confiança, quando ela me contava seus mais íntimos segredos. Histórias de amor, confidenciadas entre goles de Martini com azeitona, seu drinque preferido. Histórias dos avós dos avós. Tia Tereza sempre serena, apesar de toda a triste batalha que deu a vida toda para viver em paz com seu amor. Tia Tereza sempre aberta para a acolhida.

Agora, nessa hora noa, em que eu faço minha despedida, sinto que todos os momentos que vivemos foram cheios dessa intensidade amorosa que me é comum. Eu disse milhões de vezes obrigada, eu lhe dei milhões de beijos e agradecia sempre que a encontrava pela alavanca que ela me proporcionou e que me fez seguir meu caminho original. Ela sempre soube o que significava pra mim e sempre soube o quanto eu lhe era grata.  Que bom que nunca faltaram as palavras. Digo adeus com tristeza, mas sei que ela viveu à plena. Fez suas escolhas, foi corajosa, se permitiu viver o que ninguém queria que ela vivesse, foi feliz. Foi absurdamente feliz. 

Hoje seu corpo virou pó, mas ela segue, imortal, na lembrança de todos os que a amamos. Obrigada, tia.