domingo, 31 de janeiro de 2021

Sobre os trabalhadores, a Comcap e a cidade

 


Não faz muito tempo, durante a ditadura militar, que foi até 1984, lutar por direitos dava cadeia na certa. E dando cadeia podia dar em desaparecimento, tortura e morte. Era um tempo duro e muitas das batalhas tinham de se fazer clandestinamente. Depois, com a tal da democratização lenta e gradual, as lutas puderam acontecer à luz do dia. E foram tantas, e tão imensas, e tão massivas. As greves reuniam milhares de trabalhadores e nasciam as Centrais Sindicais para organizar e impulsionar os movimentos em nível nacional. Tempo de profusão, de levantes e grandes conquistas. O medo ficara para trás e os trabalhadores diziam a sua palavra. Quem tinha medo então eram os patrões, acossados com tanta mobilização.

Depois, com a conquista de direitos, as coisas foram se acomodando, a tal ponto de o sindicalismo virar uma espécie de repartição, na qual a vida acontecia em horário comercial. As grandes greves foram rareando, as movimentações passaram a ser pontuais e o que eram batalhas passaram a ser mesas de diálogos, notas de repúdio, passeatas pacíficas, marchas festivas. Do lado de lá da luta, os patrões observavam, agora já sem medo. De certa forma tinham vencido.

Agora, atravessamos uma longa tormenta ultraliberal. Os direitos foram se perdendo, os salários baixando, os empregos desaparecendo e em meio a tudo isso o que se vê é um mundo sindical bastante domesticado e apático. Atravessamos um ano de pandemia sem que se visse qualquer ação mais efetiva por parte das grandes centrais sindicais, dos grandes partidos ditos de esquerda, e poucas foram as entidades que ousaram sair de seu conforto para exigir direitos aos trabalhadores. Sim, aconteceram lutas, aqui e ali, muito localizadas. Nem mesmo com a ação da ceifadora, colhendo vidas sem parar houve levantes. Apenas os gritos prisioneiros das redes sociais, praticamente inúteis.

Hoje, um ano depois do início da pandemia temos mais desemprego, pequenos negócios fechados, trabalhadores perdendo os poucos direitos que ainda tinham e vem aí o anúncio de mais reformas para destruir o serviço público que ainda resta. Tudo em nome do lucro de uma parcela muito pequena da população. Na desgraça, essa gente ganhou muita grana e continua ganhando. Não há misericórdia para os trabalhadores. Ninguém se importa. Que sobreviveu, sobreviveu. É o cada um por si e deus por ninguém. E o mais dramático é que essa tendência para o matadouro se expressou de maneira avassaladora nas eleições municipais, com a vitória de pessoas vinculadas às políticas de morte e de destruição.

Em Florianópolis não foi diferente. A capital catarinense sempre pendeu para o conservadorismo e nos últimos anos não fugiu do script. Foi capaz de eleger Angela Amin, por dois mandatos, Dário Berger por dois mandatos, depois César Souza, e por fim Gean Loureiro, reeleito com larga vantagem ainda em primeiro turno. O Gean que já vinha entregando a cidade para as empreiteiras, para o cimento, para o turismo predador. O Gean que assedia trabalhadoras, que usa o gabinete como motel, que maquia a cidade com asfalto ruim, que não constrói uma casa popular sequer. O Gean que trata mal os professores e os demais trabalhadores públicos. O Gean que sonha em lotear cada pequeno pedaço da cidade para grandes condomínios de luxo, tornando a nossa linda paisagem e a natureza que nos abençoou espaços de especulação, completamente vedados aos moradores menos endinheirados.

Agora, em pleno janeiro, ele enviou à Câmara de Vereadores um projeto que fatia a Comcap, autarquia municipal de limpeza. Na prática, abre portas e janelas para a privatização. Em pouco tempo algum edital amigo será anunciado e alguma empresa amiga será vencedora para cuidar do lixo da capital. E todo o saber fazer de uma vida, de gerações de trabalhadores, se perderá. Pagaremos mais por um serviço ruim. O argumento é de que a empresa dá prejuízo e os trabalhadores tem muitos privilégios. Cabe perguntar: empresa pública é para dar lucro ou para atender com qualidade a cidade? Investir numa empresa pública não é gasto, é justamente investimento em vida boa para todos. Também cabe perguntar: em que planeta trabalhadores têm privilégios? Trabalhadores são seres que vendem sua força de trabalho por muito menos do que ela vale. Qual é o privilégio que poderiam ter os trabalhadores da Comcap, esses que começam seu dia na madrugada, recolhendo lixo alheio e limpando a cidade? Uma gratificação? Um bônus? O quê?

Certamente que os garis da capital não recebem auxílio moradia, nem auxílio terno, nem verba para gasolina de seus carros particulares, muito menos passagens aéreas para visitar parentes. Não. Se têm algumas diferenças em seus contracheques são conquistas garantidas em longas e dolorosas lutas. Porque os trabalhadores não recebem nunca nada de graça. Tudo precisa ser arrancado no braço.

Pois esses mesmos homens e mulheres que durante todo esse ano de medo e pandemia estiveram nas ruas mantendo a cidade limpa, como anônimos heróis, agora são esculachados como se fossem os responsáveis pela drenagem do dinheiro público que sangra das veias abertas dos contribuintes. Alto lá, senhores e senhoras! Se querem saber quem são os vilões procurem nas pastas da Justiça, em operações da polícia federal, nas investigações de corrupção, que apontam claramente os nomes de “respeitáveis” empresários,  vereadores da cidade e até mesmo o do senhor prefeito. Nomes esses que com bons advogados se safam e seguem fazendo a sangria. Então, quando o sangue encharca as vias, eles procuram rapidamente algum bode expiatório. Por vezes são os professores, ou os eco-chatos, os trabalhadores do executivo, e agora os trabalhadores da Comcap. Essas acusações bem urdidas servem para desviar o rastro de sangue que deixam nos seus passos.

Assim, camuflados pela mídia comercial entreguista e boca-alugada, esses nobres ladrões vão espalhando as mentiras e criando uma realidade paralela. Uma realidade fantástica na qual trabalhadores são monstros cheios de privilégios. Agora, por conta de greve, legítima e justa, o prefeito tem o apoio do judiciário - sempre célere quando é para julgar a favor dos graúdos - e já deu início a um processo que pode acabar com demissão por justa causa dos “monstros privilegiados que deixam a cidade suja”. A notícia é dada na mídia como se fosse a salvação da lavoura. E a plebe rude grita “oba, oba” e “Pau no cu dos trabalhadores privilegiados”, bem ao estilo do elegante presidente da nação.

Enquanto isso, nos piquetes, nas assembleias e nas passeatas, os trabalhadores tentam passar a verdade dos fatos, sem conseguir. Não se espantem se vier a prisão de lideranças, a destruição financeira do sindicato e a demissão de alguns trabalhadores para servir como modelo à massa. Esse é o modus operandi da chamada classe dominante.  Empunham o medo e tratam de sacrificar os corpos dos trabalhadores no altar do capital. Abrem suas entranhas e dizem: olhem aí as vísceras dos privilegiados. E as gentes ao redor olham, sem nada ver, mas fingindo ver.

A verdade sobre a Comcap é uma só: esta é uma empresa pública que presta um serviço de alta qualidade, com trabalhadores qualificados que conquistaram direitos ao longo dos anos, justamente por sua qualidade e por sua capacidade de luta. O quadro da Comcap é um quadro temido pelos dirigentes, porque os trabalhadores são organizados e conscientes do seu papel. Essa é uma gente perigosa para os que dominam, e por isso precisam ter a crista abaixada. Portanto, o que vimos agora é mesma velha luta entre aqueles que sugam a energia das pessoas para enriquecer sem esforço, e os que vendem sua força de trabalho por não terem como seus, os meios de produção. A luta de classe. Isso não é uma ciranda. É peleia dura e tem consequências. Ora a gente perde, ora a gente ganha.

Os trabalhadores esperam que a prefeitura apresente uma proposta nessa segunda-feira. Talvez essa proposta não venha e venham as demissões. Talvez a batalha seja perdida e a Comcap seja privatizada. Se isso acontecer os trabalhadores, com muita dor encontrarão novos caminhos. Mas, a cidade, essa não. Essa perde para sempre e com ela, todos nós.

Por isso que conhecer a verdade é importante. Para que a cidade possa se juntar à essa luta e não permitir a destruição da Comcap. O serviço público, com todas as suas mazelas, ainda é o que temos de melhor e é o que garante que tanto o milionário da beira-mar, quanto o morador da comunidade empobrecida que fica lá onde o judas perdeu as botas, tenham seu lixo recolhido. Pensem nisso antes de acreditar na histeria borra-botas dos colunistas da televisão e das redes sociais.

A verdade está lá fora. A verdade está na assembleia dos trabalhadores, no sindicato, na boleia e na traseira do caminhão do lixo.

Todo apoio aos trabalhadores e trabalhadoras da Comcap. A luta é sempre vitória. É justamente nessa hora que nos transformamos no corpo necessário, o corpo da classe trabalhadora, que é nossa mais legítima morada. A caminhada desse domingo reuniu mais de cinco mil pessoas. Assim, unidos, vencemos.



2 comentários:

Tiago disse...

Ótima análise! Precisamos ter esperança e lutar sempre.

Vera Bazzo disse...

Excelente texto. Disse tudo e algo mais. Obrigada pela aula de política e de humanidade.
Todo o apoio à luta dos companheiros e das companheiras da Comcap.
Florianópolis precisa de seu competente trabalho. Nós precisamos de cada um e de cada uma de vocês.Somos grat@s por seu trabalho!
Por uma Florianópolis limpa e humana - A Comcap precisa continuar pública e de qualidade!