domingo, 16 de junho de 2019

A Maria Fumaça

A Maria Fumaça

O minuano

A estação de São Borja

Corriam os anos 1960, finalzinho já. Meu pai ainda não tinha comprado seu primeiro carro, que foi um fusca branco, e só chegou em 1972. Então, a única maneira de viajar para Uruguaiana, onde íamos ver os avós, era de trem. Quando o pai avisava sobre a viagem, o mundo vibrava em mim. A viagem era alguma coisa mágica, indescritível e, hoje, penso que vem daí essa minha fome por horizontes. 

Chegar à estação era como descortinar outro mundo. Nos trilhos, fumegava a Maria Fumaça, negra como a noite, com suas bolas de fumaça ora brancas, ora pretas, e nos embalaria por horas a fio naquele tranquito familiar, troc, troc, troc, nos trilhos. Pela janela passavam os campos sem fim e, neles, as emas, com sua correria louca, tentando vencer o trem. E a gente passava de vagão em vagão, imitando as emas, no saltitar. Era uma festa. Lembro que meu coração parecia bater no mesmo compasso que a enorme Maria Fumaça e curiosa, me postava no caminho dos homens que enchiam sua boca enorme de carvão. Era uma aventura épica.

Quando vieram os anos 1970, a Maria Fumaça deu lugar ao Minuano, um trem moderno, construído lá na Alemanha. A enorme máquina vermelha já não comia carvão, era movida à diesel. A magia da viagem já não era a mesma. Lembro que toda a gente saudou a chegada do Minuano, pois a viagem ficaria mais rápida. Eu chorei. Desde pequena avessa ao progresso. E na primeira viagem que fizemos no novo trem o meu coração já batia no descompasso. Sem a fumaça, sem os homens do carvão, sem o troc, troc, troc, até as emas pareciam desencantadas. Eu também perdi o gosto. 

Pouco tempo depois o pai comprou o fusquinha e nossas viagens passaram a ser de carro. Outras miradas, outras paisagens se descortinavam. Mas, quando chegava à ponte do Rio Ibicuí, meu coração sangrava. Ali permanecia intacta a imagem da velha Maria Fumaça, fosse na enorme armação de ferro, ou nos trilhos que ainda riscavam toda a extensão da ponte. E da janela do fusca eu quase podia ver a velha máquina gigante e negra, fumegando desesperada enquanto sacudia a velha estrutura sobre o meu rio do coração. 

Hoje já não há mais nem mesmo o Minuano e nas quebradas da fronteira poucas são as pegadas da velha ferrovia. Mas, mesmo assim, a Maria Fumaça ainda assombra minhas noites, quando seu apito me desperta, chamando para o embarque. Viajar, descortinar paisagens, encontrar as gentes e as histórias. Ah, que incríveis universos paralelos naqueles trilhos que cruzavam a pradaria, os campos sem fim da pampa. Maria Fumaça, companheira rumorosa das aventuras que começaram dentro do seu corpo agigantado e nunca mais se perderam de mim. 

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