sexta-feira, 10 de maio de 2019

Os espaços da cidade



A cidade é coisa que se nos vão tomando. De repente, quase sem que percebamos, alguma parte dela nos é tirada para sempre. E ainda que exista, não cabe mais em nós, nem nas nossas memórias afetivas. Anos atrás era impensável ir ao centro e não sentar na ponta do mercado público, gritando por um chope ao Marcelo ou ao Neto, no Bar do Alvim. Hoje, aquela ponta amada já não me diz nada. E não consigo sentar ali, porque sei que não tem mais Alvim, que o Mosquito não vai sentar trazendo alguma notícia bomba e nem o Ubby vai passar com seus poemas. Não há mais. Não há nada a não ser um chope ruim e garçons desconhecidos. 

O próprio mercado se gourmetizou. Sua copa genérica, tomando todo o espaço com as cadeiras Coca-Cola e aquela infinidade de gente puxando a gente para um prato de comida de 40 reais. Tão fora da ordem. Não sei. Não gosto. Passo por ali, olho com olhos de ontem e choro, sempre choro. 

Ainda assim o centro é um espaço mágico, porque outros espaços vão se abrindo para nós. Gosto de seus caminhos intricados, das ruelinhas, do sobe e desce das calçadas mal havidas, das gentes que ainda insistem em viver ali e daquele universo tirar seu sustento. As trabalhadoras do sexo, os ambulantes, os cantores, os pintores. Com eles faço a via sacra, parando ali para comprar algum badulaque dos haitianos, dos africanos, dos equatorianos, dos lageanos. Paro para ouvir o canto doce de uma mulher que acompanha um violeiro na entrada do ARS, dou um trocado para as estátuas vivas, afio um canivete de unha no moleiro, pego um sapato no sapateiro. O centro me completa. 

Agora que perdi o mercado achei outro espaço para meu nada fazer. É um quiosque que fica bem na em frente da saída do terminal. Ali podemos beber um caldo de cana, uma água de coco ou uma cerveja. Depende do dia. A maioria tá na cerveja e passa do ponto. São os famosos “mamaus”. Mas não incomodam. Também têm os conquistadores passando a conversa nas senhoras solitárias e os desocupados, esperando que alguma coisa lhes caia na cabeça. Tem três mesinhas colocadas bem de frente para a profusão de gente que cruza a rua em direção ao terminal ou  na direção do mercado. É como um vulcão sempre em erupção. Gente, gente e gente. De todo tipo, cores, sorrisos, amores. Gente no vai e vem da cidade. 

Sentada ali me encanto com a alegria do jovem cantador que se se apresenta no vão do cruzamento. Ele tem uma pequena caixa de som, um microfone, e ali fica praticamente o dia todo cantando reggae e outras belezuras da música popular. No geral ele canta para si, poucos param, mas se diverte tanto, que deixa a gente enfeitiçada. Está sempre sem camisa e de chinelo de dedo, o corpo suado pela dança que acompanha o ritmo da canção. Ele canta e sorri para as pessoas.  Parece estar pleno de felicidade. Ele me emociona. Gosto de ficar ali, vendo ele cantar. Depois, discreta, passo e dou minha contribuição. Ele agradece, simpático.

Penso que ele, como eu, deve ser um desses que insiste em viver a cidade, seja do jeito que for. A rua, livre e coletiva, existe para nós, pessoas, gente que ama a cidade. Roubam-nos quase tudo, nos tiram os lugares tradicionais, derrubam prédios históricos. Mas, a gente cava no meio do cimento, com as unhas, com o riso, com a alegria. E ainda que ninguém queira, a gente faz nascer a flor. Aquele guri cantando e dançando no vão da rua é um grito de resistência, assim como eu, lentamente sorvendo meu caldo de cana com os “mamaus”. 

Eu amo essa cidade, e dela nunca vou sair. 

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