domingo, 18 de março de 2018

Sergio Weigert, mestre


Trabalho como escriba desde os 12 anos praticamente. Comecei minha sina de contadora de histórias reescrevendo os contos de Simões Lopes Neto, adaptando-os para uma linguagem falada no rádio, para um programa que o meu pai tinha na Rádio Fronteira do Sul, em São Borja. Depois, o caminho natural foi o jornalismo. Na escola, nos movimentos sociais, escrever era comigo mesmo. Mas, comecei a atuar profissionalmente, como repórter, aos 21 anos, na TV Umbú, de Caxias do Sul. E, nessa lida, sempre andei ligada às causas dos trabalhadores. Eu vinha de uma militância já bastante consolidada, seja na luta contra a ditadura ou na batalha pela anistia. Consciência de classe não me faltava. Naqueles dias tentei fazer a faculdade. Mas, em Caxias, só havia universidade particular. Fiz vestibular, passei, mas não dei conta de pagar as mensalidades. À época, chorei demais, mas o tempo mostraria que aquele mal viria para bem.

Em 1985 tive a sorte de ir trabalhar na TV Passo Fundo, onde mergulhei de cabeça na realidade dos trabalhadores sem-terra. Cobrindo a primeira grande ocupação organizada do MST, na Fazenda Anonni, todas as minhas inquietações sobre a realidade brasileira foram se consolidando na certeza de que era preciso operar uma grande transformação nesse país. A democracia chegava capenga e todo o processo de luta e repressão vivido pelos acampados de Anonni reforçaram em mim o caminho que já havia escolhido desde pequena: o da classe trabalhadora, sempre, e sem concessões.

Minha vida de repórter, mesmo dentro de uma empresa comercial ultraconservadora como a RBS, foi sempre pautada pelo compromisso de garantir espaço para as vozes dos trabalhadores e trabalhadoras se expressarem. Sempre encontrava jeito de isso acontecer. E são muitas as histórias das minhas artimanhas. Mas, apesar de todas as minhas certezas consolidadas eu sentia que precisava estudar mais e mais. Sobre o jornalismo e sobre a política. Decidi fazer vestibular para jornalismo na federal de Santa Catarina. A prova era em Chapecó, perto de Passo Fundo. E para lá fui, na esperança de passar. Seria uma federal, eu não teria de pagar nada. Era minha chance de crescer intelectualmente depois de mais de dez anos fazendo jornalismo à facão, sem formação acadêmica.

Quis o destino que eu passasse no vestibular e fosse estudar na UFSC. Lá, encontrei o homem que daria sentido a minha vida de jornalista. Ele mudou minha vida inteira, balançou todas as estruturas, fortaleceu algumas certezas e abriu para mim um caminho que nunca mais teria volta: o da filosofia. Seu nome é Sérgio Weigert. Era professor de Realidade Brasileira. Chegava à aula com o cabelo desgrenhado, gritando feito louco, nos provocando, nos incentivando a ultrapassar a mediocridade. Mandava-nos ler os textos mais incognoscíveis. E exigia compreensão. Quantas noites de chimarrão e pipoca vivemos Roseméri Laurindo e eu, tentando decifrar Horkheimer. Era como o inferno na terra.

Um dia chegou com a máxima de que índio não tinha história. Pra quê? Foi o maior furdunço na sala. Eu o odiava. E discutia com ele que aquilo era um absurdo. “Prova pra mim, então”, provocava e eu corria para a biblioteca devorar Darcy Ribeiro e tudo mais que havia sobre índios. E quando eu voltava e discutia, argumentando com vários autores, os seus olhos brilhavam de alegria. “Muito bem, guriazinha”. Era um mestre, nos fazendo descobrir as coisas por nós mesmos.

Com o passar do tempo o ódio foi virando amor. E as aulas do Sérgio passaram a ser a razão de chegar à universidade. Na cadeira de Realidade Brasileira o trabalho final foi absolutamente instigante. A tarefa era de que cada aluno apresentasse uma proposta anti-hegemônica de nação. Pensa? E nós a fizemos. Outra cadeira que ele deu foi a de Estética. Era uma viagem alucinante de filosofia e arte. E tudo era passado com uma intensidade louca. Sérgio era ele mesmo um vulcão, alegre, festivo, devorador. Passava noites e dias lendo, estudando, e chegava desvairado tentando passar para nós tudo o que descobrira nas leituras. Suas aulas eram momentos estelares. E toda aquela beleza se espraiava para além da sala, quando desfrutávamos da sua incrível biblioteca caseira. Obras completas de Lenin, Marx, Adorno, Agnes Heller, Luckás e muito mais. Estudar com Sergio era mais do que aprender, era ser, inteira e total.

Por fim, ele nos apresentou Adelmo Genro Filho. Ai foi a cereja do bolo. Porque Adelmo é seminal. É rei. É único. É o que garante um jornalismo de qualidade, ao qual me agarrei para sempre. Sérgio e Adelmo ficaram desde então colados em mim.

A universidade acabou, e os caminhos do Sergio foram seguindo novos rumos. Ele foi estudar na França. Mas, apesar da lonjura, seguia perto, até porque parte de sua biblioteca ele tinha deixado comigo, e outra parte com minha amiga Catarina. Então, a gente continuava bebendo de sua sabedoria. O tempo passou, ele voltou e enfrentou toda a dureza da falta de solidariedade no Curso de Jornalismo, quando alguns colegas queriam exonerá-lo, chamando-o de louco. Naqueles dias estivemos por perto, vivendo com ele toda a dor. Depois, ele foi para Porto Alegre, já aposentado e veio a terrível agressão que o colocou em coma.

Acompanhamos de longe, sempre torcendo para que se recuperasse. Mais tempo passou e ele foi enfrentando suas limitações. Segue firme. Vivo e ainda sedento de saber, como sempre. E ainda que esteja longe, lá em Porto Alegre, para mim, ele é o mestre da vida. Em cada confusão intelectual, cada descoberta, eu sempre penso: que diria Sergio? E busco na sua alucinada alegria de saber a força para encontrar os caminhos.

Dia desses procurando por ele na Internet, a ver se tinha alguma notícia, me deparo com sua carinha sorridente e a notícia de que os professores Salo de Carvalho e Mariana de Assis Brasil Weigert haviam lançado um livro com alguns dos seus textos. Foi uma explosão de alegria. Saber que os escritos desse homem apaixonante agora estariam públicos e eternos. Liguei na hora para a editora para comprar o meu.

Pois ontem o livro chegou, "Marxismo e Modernidade - ensaios críticos sobre utopia e emancipação". Está entre minhas mãos, dormi abraçada nele e agora, nessa manhã de domingo, vim escrever, para dar vazão aos sentimentos. E a emoção que esse trabalho me provoca é tão intensa que não consigo parar de chorar. A alegria é oceânica.

Guardo até hoje o projeto anti-hegemônico de nação que fiz para a aula do Sergio, o qual contém um elogio e um A+. E a ele recorro sempre que preciso de força para seguir nas minhas reflexões filosóficas e na vida política. Meu mestre amado, sempre aqui. Mas, agora, com o livro, outros textos dele me acompanharão. E vou sorvê-los como se fora o chimarrão há tanto tempo esperado: devagarito, saboreando.

Obrigada por isso Salo de Carvalho. Obrigada Mariana. Sergio, agora, vive para sempre.


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