terça-feira, 23 de janeiro de 2018

Nove anos de parceria


Eu e minha velha Pana... - Foto: Rubens Lopes

Tem uma história andina, dos povos antigos, que conta sobre a revolução dos artefatos. Um tempo em que os humanos só guerreavam entre si, os artefatos utilizados por eles decidiram que era tempo de parar. Então, numa noite, eles se transformaram em gente e foram ensinar sobre a paz. As guerras pararam e houve um longo tempo de harmonia. Gentes e coisas, unidas, construindo o bem viver. Essa história sempre encheu meu coração de ternura pelos artefatos. As coisas sem fetiche, as coisas como parceiras de vida.

E era um pouco esse sentimento o que me unia a minha querida câmera de filmar. Comprei-a de segunda mão, já bem usada, e ainda assim ela estava comigo há nove anos. Nove longos anos filmando boa parte da vida da cidade, das coisas do IELA, da América Latina. Nunca me falhou. Minha mão já se moldava a ela, e era quase impensável sair para rua sem carregá-la comigo, na indefectível bolsinha vermelha, comprada na Bolívia.

Pois há pouco mais de 15 dias, indo para a Rádio Campeche, sábado pela manhã, em meio à chuva, minha bicicleta travou e eu caí. A magrinha tem uma cestinha onde carrego as coisas. E, sem que eu percebesse, a cesta se abriu e a bolsinha com a câmera deve ter rolado para fora. Chovia, e eu, na pressa de resolver as coisas, saí carregando a bicicleta de volta pra casa, para ter tempo de chegar à rádio no horário previsto. Foi uma correria e minha parceira ficou esquecida no chão da rua.
   
Só dei por falta dela na quinta-feira quando fui sair para uma atividade. Procura e procura e, ao final, a certeza. Ela só poderia ter caído na hora do tombo. Voltei ao local, falei com as pessoas que moram em volta, mas nada de encontrar. A rua é caminho de muita gente que vem de fora, no rumo da praia. Sabe-se lá onde ela foi parar. Estava cheia de material, grávida de matérias e belezas, das lutas das gentes.

Hoje, certa de que a perdi para sempre, me acometeu essa tristeza. Esse sentimento de ter falhado com ela, deixando-a caída numa rua qualquer. Ela, que me acompanhou em tantas aventuras, sempre firme. Fiquei pensando que se, por ventura, ela virasse gente numa revolução dos artefatos, não seria eu quem ela veria ao seu lado. Chorei.


A minha velha câmera se fez um ente para mim. Não é a coisa em si, mas significa a parceria de quase uma década. Espero que as mãos que a carregaram possam produzir belezas com ela, assim como eu o fiz durante tanto tempo. Perdão companheira, por ter te perdido. E obrigada por tudo que me deu. 


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