Há muito tempo, na minha infância, quando morava em São
Borja, a sexta-feira santa era dia de acordar muito cedo para colher marcela.
Tinha que ser antes do sol nascer, pois a erva tinha de ser colhida orvalhada. A
mãe dizia que o orvalho representava as lágrimas que Jesus derramara quando
morrera na cruz. E assim a gente saia, em bandos, pelos caminhos, sempre mais
fora da cidade que era onde as plantas nasciam em abundância.
Voltávamos para casa com os cestos cheios das florezinhas
que a mãe guardaria em potes de vidro, para durarem o ano todo. Na verdade a
marcela era um remédio que se tomava quando acometia alguma dor de barriga,
cólicas de menstruação, ou qualquer outro mal-estar. Por serem bentas pelas
lágrimas de Jesus, valiam para quase tudo. Geralmente tomávamos o chimarrão
sempre com algumas flores de marcela, o que lhe dava aquele gosto peculiar.
Aqui na ilha não sei onde tem marcela. Mas, mesmo assim
acordei cedinho, antes do sol nascer, e colhi algumas folhas de limão. Servirão
para cumprir o mesmo papel da marcela, guardadas para que se transformem em
folhas bentas pelas lágrimas do homem que andava com as putas, com os ladrões,
nos caminhos vicinais. Aquele carinha que pregava o amor, a solidariedade e a
compaixão.
Gosto do cumprir algumas tradições da infância, mesmo que
reinventadas. É uma maneira de sentir, outra vez, aquele oceânico sentimento de
pertencimento e de amor. Uma forma de caminhar, de novo, com a mãe, e sentir o
seu toque, ouvir sua voz ou a risada cristalina.
Como dizem os contadores de história, não importa que no
caminho da vida, a história mude. O que importa mesmo é o que ela significa. E,
sexta-feira santa, para mim tem esse rosto: infância, mãe, marcela, e essa
absurda certeza que só existe na fé, de que tudo o que vive é sagrado.
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