Uma das táticas infalíveis do processo de produção de
consenso é a repetição contínua e sistemática de mentiras. São tantas vezes
ditas que viram verdades. Nelas, também é bastante comum as coisas trocarem de
lugar. A vítima vira o vilão. É batata!
Assim tem sido com os estudantes que ocupam escolas. De repente,
aqueles garotos e garotas, que se aborreciam nas salas de aula, decidiram tomar
o presente à unha. E diante de uma proposta que os governantes chamaram de “reestruturação”
resolveram se levantar. A gurizada não é burra. Logo se deu conta que a
reestruturação queria dizer destruição. Na época, o governo paulista, de
Geraldo Alkmin (PSDB) decidiu fechar escolas onde achava que não eram “rentáveis”.
Como se uma escola tivesse de ser lucrativa.
A gurizada teria de sair do seu bairro, viajar quilômetros
para chegar noutra escola, com salas de aula ainda mais cheias, com professores
massacrados e mal pagos. Então, não houve dúvidas. Começaram a ocupar suas
escolas para impedir que fossem fechadas. Que crime é esse? Um guri, uma guria,
fincar pé na sua escola, porque que quer aprender, conhecer, se instruir, isso
é irregular?
As ocupações em São Paulo, em Goiás, no Rio Grande do Sul,
em Minas, mostraram que algo estava acontecendo, e que era grave. Naqueles
dias, o assunto foi parar na mídia e até certo ponto os estudantes foram
respeitados na sua luta. Depois, quando o processo se espalhou, a classe
dominante viu que era preciso parar com a “brincadeira”. Veio então a ordem
para desocupar com a força policial. E todo o Brasil acompanhou a retirada da
gurizada, com a velha violência de sempre. A coisa parecia superada.
Com a consolidação do golpe parlamentar, as forças
conservadoras, que já arreganhavam os dentes desde 2013, assomaram, ganharam
musculatura, se fortaleceram e começaram a impor suas pautas ao país. Veio
então a reforma do ensino médio, assim, por decreto, sem sequer passar pelo
legislativo. Acabava com a obrigatoriedade do ensino de matérias universalistas,
fundamentais para a formação de um pensamento crítico: sociologia, filosofia,
artes. Nada disso na escola pública. Essas cadeiras que fazem pensar só nas
escolas privadas, onde se forma a classe dominante. De novo o velho refrão: “Pobre
tem de ficar no seu lugar”.
Então, a gurizada se levantou outra vez. E os secundaristas
voltaram à tática de ocupar escolas. Porque ali é o lugar onde passam grande
parte do seu tempo, no mais das vezes, tentando, com muito esforço, manter a cabeça
de fora do poço de mediocridade e superficialidade que o ensino formal no geral
propicia. Poucos professores conseguem garantir uma aula crítica, cheia de
motivação. Afinal, a maioria deles precisa correr de uma escola a outra, dando
dezenas de aulas, para garantir um salário mais ou menos capaz de suprir suas
necessidades vitais. Ainda assim, por conta da bravura e do compromisso
político com os alunos, boa parte dos educadores supera as dificuldades e rema
contra todas as forças do atraso. Os alunos sabem disso. Reconhecem os que
lutam. Não é sem razão que quando tem greve, apoiam e lutam junto.
E os alunos apoiam as greves, quando as aulas param, porque
sabem que param para que possam continuar. Para que possam melhorar. E quando a
mídia e os governos gritam que os professores são vagabundos porque saíram da
escola, porque pararam as aulas, os alunos sabem que não é assim. Porque estão
ali, cotidianamente, vendo o esforço que fazem para garantir um ensino de
qualidade na escola pública.
Por isso que agora, quando esse ensino sofre outro ataque –
além da já tradicional exploração do professor – os estudantes insistem em se
manter na escola. Dentro dela. Para que essa escola siga aberta, para que continue
resistindo no mar das dificuldades, preparando as cabeças para o enfrentamento
da vida.
O levante dos secundaristas brasileiros na defesa da
educação é de uma riqueza sem par. Não é uma luta pontual. É constituída pela
universalidade do problema educativo. Questiona tudo: as leis, os cortes de
verba, o sumiço das matérias de humanidades e a própria forma de ensinar. Há
uma coisa incrível aí nessas ocupações que vai contra tudo o que se diz do
jovem do século XXI.
“Só querem fumar maconha e ficar na internet”, insistem em
dizer os governantes sem moral e ética. Pois o concreto da luta desmente
cabalmente essa falsa informação. Os secundaristas querem a escola, querem
estudar, e querem que tudo isso aconteça de uma forma diferente da educação
bancária reservada para os pobres. Os secundaristas estão abrindo portas e
janelas, deixando entrar o ar do novo século. Eles ensinam sobre essa nova
escola, que tem de ser livre, participativa, motivadora, humana, cooperativa,
solidária. Quem tem olhos para ver, que veja.
O fato é que o levantes dos estudantes, independentemente do
que venha acontecer, com toda a truculência que está deflagrada, já venceu. Ele
é igual a flor do poema de Drumond:
“Uma flor
nasceu na rua!
Passem de
longe, bondes, ônibus, rio de aço do tráfego.
Uma flor
ainda desbotada
ilude a
polícia, rompe o asfalto.
Façam
completo silêncio, paralisem os negócios,
garanto que
uma flor nasceu.
Sua cor não
se percebe.
Suas pétalas
não se abrem.
Seu nome não
está nos livros.
É feia. Mas
é realmente uma flor.”
Podem vir as
bombas, os cassetetes, os fuzis, as prisões. Pode vir o que for. Já era.
Nasceu, e é uma flor. Ainda que tudo se acabe, ainda que as escolas sejam
retomadas e invadidas pelos ladrões de
futuro, pelos vilões do amor, a lição já terá sido aprendida.
Os estudantes
mostram, com essas ocupações, que a escola pode ser boa, bonita e capaz de
formar seres cheios de beleza e conhecimento transformador. Não tem retorno. O estopim
foi aceso e não há como parar. O projeto de escola de hoje para frente tem de
ser outro. E vai ser, a despeito de tudo. A história nos mostra que é assim.
Quando confrontados com a força da mudança, aqueles que querem conservar o
atraso usam de todas as armas. Violentam, humilham, tortura, matam,
desaparecem. Mas, ainda assim, as coisas mudam. E mesmo as leis que são criadas
para abafar, ou garantir o uso da força bruta e da tortura - como agora – também
são atropeladas pela vida que quer viver. Foi assim em Córdoba, em 1918, quando
os estudantes mudaram o jeito de ser universidade. Foi assim na França de 1968,
quando os estudantes acenderam lutas gigantescas junto com os trabalhadores,
foi assim no México em 1968, quando apesar do massacre que matou mais de300
estudantes, a universidade se transformou.
Hoje, vendo
os meios de comunicação silenciarem sobre essa flor que brota do “asfalto”, e
as forças conservadoras incitarem outros jovens e familiares a esmagar a
beleza, o que nos cabe é apoiar, proteger, regar. Porque essa gurizada está
fazendo história, mudando a temperatura do mundo. Eles sabem que a vida só tem
sentido no jardim. Por isso, plantam.
A vitória já
aconteceu.
Um comentário:
É isso, Elaine. A lição principal está sendo aprendida.Emocionei com o texto.
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