domingo, 23 de maio de 2021

Estar presente, no presente


 Lidar com  a demência requer entrega. Não é sem razão que muita gente não dá conta. A pessoa velha já requer cuidados, mas se tiver demência complica um pouco mais. Porque cada minuto é um minuto. A pessoa pode estar de boa e num segundo, virar o humor para a ultraviolência. É um caminhar sobre ovos, todo o instante.  

Digo isso porque a minha própria vida se transformou, nessa tarefa do cuidado. E, no começo, foi difícil. Primeiro, porque bagunçava totalmente minha rotina tão cuidadosamente prezada. Sou uma mulher de rotinas cristalizadas. E, com o cuidado do pai, tudo ficou “patas arriba”. Nada pode ser planejado e nenhum dia é igual ao outro. 

Mas, com o andar da carruagem descobri que era melhor seguir o conselho de um  compa cubano que ensina: “sobre la vida hay dos cosas que se pode hacer: enfadarse o desenfadarse”. Decidi pelo desenfadarme. Então percebi que se eu me entregasse para cada instante, com absoluta entrega, não haveria sofrimento. E é assim que tem sido. 

Sou uma mulher das manhãs. Acordo cedo e gosto de escrever nesse período do dia quando as ideias parecem estar mais claras. Então, sigo minha rotina de pular da cama às seis horas, passe o que passe durante a noite. Porque, assim, tenho um tempinho até umas nove, nove e meia, quando o pai desperta. Depois que ele levanta da cama, o tempo é dele. Há todo um ritual a cumprir, sempre repleto de surpresas, porque como já contei aqui, o pai tem pavor a trocar de roupa. E essa é uma novela mexicana protagonizada a cada manhã. 

É preciso todo um ritual, desde a chegada ao quarto. Geralmente entro dançando e fazendo graça, para ele desenferrujar a cara. Quando ele sorri eu corro para o abraço e nesse abraço vou puxando para o box, onde tento dar o banho matinal. Geralmente dá certo, mas têm dias que não. Ele foge da água como o diabo da cruz. Aí é outro roteiro a cumprir, até que ele deixe a fúria de lado. Depois é hora de ir tirando a roupa da noite, geralmente molhada. É um parto com fórceps. Feito isso, vem a cueca, valamideuzi... Aí o bicho pega e há que ter muuuuita paciência. 

Vencido o tirar, vem o botar. Outra novela. Nisso o tempo vai passando. Novamente há que distrair com cantorias, brincadeiras e todo um arsenal teatral que só mesmo o Eduardo Bolina poderia me valer. E me vale. Vestido meu velhinho é hora de sair do quarto para tomar café. Outro momento demorado. Brinca com o pão, brinca com o café, faz traquinagem de todo o grau. Geralmente acaba tomando o café sozinho, mas muitas vezes tenho de interferir. Então, esse é um tempo que é só dele. Se ele toma o café sozinho aproveito o momento para fazer a limpeza inicial do quarto. Tirar os lençóis, as roupas sujas, enrolar a fralda, colocar os paninhos de limpeza de molho no tanque. Uma azáfama.

Tomado o café vem a hora dos remédios, vencida também sempre com muitas performances. Finalmente ele está pronto para o dia. Passaram-se ai quase duas horas. E nada mais importa além desse tumultuado ritual. Hoje consigo cumpri-lo sem sofrimento, totalmente mergulhada nessa função. Fica muito mais fácil vencer cada dia quando a gente está presente no momento presente. Sem pensar no trabalho a fazer, no compromisso que foi para o pau, nas coisas que se poderia ter feito e tal. Nada disso. Só esse sincero e comprometido carpe diem. Ele fica mais feliz, eu fico mais feliz e o dia segue sem grandes dramas.

Quando por fim, volto ao computador para terminar as tarefas, ali está o meu companheirinho, parado em frente a mim, esperando paciente que eu termine mais essa jornada para, de novo, mergulhar no seu mundo. 

Estamos indo bem...

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