domingo, 27 de agosto de 2017

Morreu o Birigui


            


Conto escrito nos anos 90, baseado numa notícia de jornal...




A notícia chegou sem muita surpresa no morro do Tico-Tico. Tinham matado o Birigui. No armazém do seu Antão, a rapaziada tomava sua caninha e discutia o assunto de forma acalorada. Gervásio ria alto, com sua boca sem dentes, dizendo a toda hora: “bem feito, bem feito!”. Maria Antônia, quieta no seu canto, perto da caixa registradora, lembrava o dia em que Birigui lhe cercara na boca do morro. Ele a tinha encostado ao muro, enquanto falava baixinho que ela era uma “nega” gostosa. Foi enfiando as mãos pelas pernas acima, apertando, apalpando e o cheiro de pinga que saía de sua boca ia penetrando nela com mais força que o dedo do invasor. Não tinha como gritar e, mesmo que gritasse, quem iria ajudar? Então, o jeito foi deixar-se ficar, muda, enquanto ele brincava nela até cansar. Depois do serviço, Birigui foi embora, assobiando um pagode do Aragão, sem nem sequer olhar para trás. Por isso, ela também repetia, no silêncio de si, “bem feito, bem feito”.

            Cada um naquele bar tinha uma façanha do Birigui para contar. Era nêgo ruim, vagabundo. Nunca ajudou a mãe, que vivia abraçada nos santos, pedindo proteção para o “pobre filho”, como ela o chamava. E o “pobre” estava sempre encrencado com a polícia. Tinha assaltado um mercadinho lá para os lados de Coqueiro, e acertou, sem dó, a cabeça do dono, só porque ele demorou-se em abrir a caixa onde estava o dinheiro. Traficava drogas e estava sempre aprontando. Isso sem contar o número de mulheres que ele havia estuprado ali mesmo, no morro.

            Ninguém, em sã consciência, gostava do negro agigantado, com aquela marca de queimadura no lado direito da cara. A mãe dele contava que o acidente, responsável pela cicatriz, tinha acontecido nos tempos de criança. Ele havia queimado a cara no dia em que botara fogo num gato, que tinha amarrado vivo, numa espécie de pau-de-arara. Era nêgo ruim o Birigui. 

            Quando trouxeram o corpo para o morro, a correria foi geral. Todos queriam ver a cara daquele a quem nunca tinham ousado desafiar. Antes, ele era o dono do morro, agora estava ali, servindo de piada para todo mundo. Até os garotos menores, vinham e tocavam, sem medo, na queimadura da cara, puxando para ver se era real. Depois, riam, riam muito e berravam, “olha a cara do negão, olha a cara do negão”, numa espécie de cantiga de roda.

            O seu Antão, satisfeito, ofereceu o espaço do bar para fazer o velório, afinal, no barraco da velha não iria caber toda a gente que queria olhar para o Birigui inerte, morto, sem perigo. Assim, a notícia do velório no bar logo se espalhou. Foi colocada uma cartolina branca, com enormes letras vermelhas, bem na porta do armazém. “HOJE PROMOÇÃO: CERVEJA GELADA SÓ UM REAL”.

            Quem subia o morro, na volta do trabalho, via a placa e ia ficando. Era o velório do Birigui. Farra total. Na pequena sala, de chão de madeira, colocaram o caixão aberto. As cadeiras ficaram encostadas no lado direito da sala, para os parentes. Mas de parente mesmo, apareceu só a mãe. Ela chegou cedo, na mesma hora em que chegou o caixão. E ficou ali, sentada, quase sem se mover. Só os lábios mexiam num sussurrar sem sentido, talvez numa língua desconhecida, destas dos orixás que enchiam que enchiam seu congá. Não tinha lágrimas a velha. Todas já haviam secado, ao longo dos oitenta anos de vida.

            E enquanto ela adormecia o filho bandido com suas rezas, em volta o clima era de festa. Seu Antão ia e vinha na velha geladeira, buscando a cerveja gelada. Os filhos da nega Carlota enrolavam um cigarro de maconha e já tinha gente por perto querendo ajudar a “puxar”. As meninas foram chegando com roupas de domingo, os cabelos amaciados com manteiga de karité. Juvenal trouxe o violão e logo Maneco mandou buscar o pandeiro e o cavaco. A galera se assanhou e, em dois toques, o pagode correu solto. Algumas mulheres, vizinhas do barraco do Birigui, trouxeram linguiça para fritar, e logo um cheiro gostoso invadiu o velório.

            No pique do samba, decidiram afastar o defunto para o lado, quase colado à parede. A velha mãe seguiu junto, com suas lamúrias, parecendo não notar a festa que rolava ao seu lado. Quando o samba parava para a rapaziada descansar, a mãe Mariana vinha com seus causos de assombração. Nesta hora, todos davam uma espiadinha no morto. Manezinho, chapado, levantou com fúria e, sem mais delongas, acertou a cara de Birigui.

            - Reage agora, vagabundo – berrava com a voz pastosa, os olhos vermelhos feitos brasas. A galera ria e aplaudia.

            Quando o dia clareou, encontrou a velha ainda ao lado do caixão, ela também um pouco morta. As portas do bar estavam fechadas e, do lado esquerdo, perto do balcão, saíam gemidos. Era Eneida, que se enroscava no corpo do Dagoberto, numa dança de pernas e bocas. Estava acabado o velório. Dali a pouco seria hora de enterrar o morto. E quando o casalzinho afogueado saiu do bar, o velho Biga gritou, do barraco da frente.

            - Festa boa, heim?

            E Daboberto, ajeitando as calças, retrucou:
            - Boa demais para um safado feito o Birigui.  
                   
            A nêga sorriu e foi se afastando, subindo o morro com o passo cadenciado de velha passista.  

            Ninguém acompanhou o enterro de Birigui, só a mãe. Afinal, aquela gente ali tinha muito mais o que fazer na vida.


Um comentário:

Gilberto Motta disse...

Sensível, mirada profunda e humanidade exposta feito entranhas. Gratíssimo, querida Elaine.