Imaginem um hospital no interior, pequeno, privado, com uma
pequena ala do SUS, esse incrível sistema de saúde criado no Brasil, que permite a qualquer pessoa ser atendida
gratuitamente. Mas, que, por conta de maus administradores municipais ou de
outros âmbitos, acaba sendo no mais das vezes o saguão do inferno. Pois, ali
estava eu, num desses hospitais. Poucos médicos na ala SUS, poucas enfermeiras,
poucos técnicos e muito doentes. Muitos. Na emergência chegam os estropiados,
os quebrados, os urgentes. Os poucos leitos vivem lotados e os que chegam ficam
nas macas, nos corredores. Não por maldade dos médicos ou atendentes. Não há
vagas mesmo. E se a pessoa não tem dinheiro para um atendimento particular tem
de se submeter.
Meu pai foi um desses tantos urgentes que amargou um dia
inteiro, entre delírios e fraquezas, deitado numa maca no meio do corredor por
onde entram as emergências. Só no segundo dia conseguiu leito, depois de
diagnosticada uma infecção renal, coisa que, em velho, tem todas as chances de
ser fatal.
O quarto onde agora se trata é simples e coletivo. As coisas
estão velhas, mas parece limpinho. Há que destacar o trabalho quase desumano a
qual estão submetidas as assistentes de enfermagem. Garotas guerreiras que
seguram na força do braço um andar inteiro de gente para trocar, medicar e
cuidar. É de emocionar, e algumas ainda conseguem ser humanas, engraçadas e
gentis.
Junto com meu pai estão mais outros dois doentes. Um deles é
o senhor Brasil, ele está com o pé necrosado e precisa do oxigênio para
respirar. É o que está melhor dos três, podendo falar e andar. Negro, pobre, ele
não sabe muito bem o que tem. “O médico vem, mas não explica direito, ou eu é
que não entendo, não sei”. O que sim, sabe, é que lhe falta o ar e lhe explode
o coração. Sem outro recurso, tem de confiar no tratamento que lhe dão.
O outro companheiro de quarto chama-se Marco, é um jovem que
está morrendo. “A médica veio aqui e já desenganou ele”, conta a mãe, dona
Maria, uma mulher de uns 60 anos que parece ter 80. O corpo magrinho se debruça
sobre a cama e ela reza, entre lágrima, ao longo do dia e da noite. Há três
semanas ela está ali, acompanhando o filho. E como no quarto coletivo não tem
lugar para o acompanhante descansar, ela se encolhe na cadeira fria. Diz que já
não há lugar no corpo que não doa. Está sozinha no cuidado, não tem como
compartilhar a dor. Quando fala é para reclamar do tratamento do pessoal do
hospital. “É triste ser assim, pobrezinha, feínha e velha. Eles tratam mal.
Ontem eles me tiraram do quarto pra limpar meu filho. Mas chegam com brutalidade,
dizendo sai, sai, como se a gente fosse lixo. Será que eles não têm mãe”.
Na noite de vigília que compartilhamos, chovia à cântaros, e
ela se sentiu ofendida com a maneira da enfermeira falar e foi ficar lá fora do
hospital, no meio da rua, chorando e clamando aos céus. Uma cena de cortar o
coração. As assistentes, penalizadas, tentaram trazê-la de volta, mas ela não
quis, preferindo a chuva a ser maltratada. Só no comecinho da manhã, quando o
filho gritava por ela, sem parar, é que as jovens conseguiram fazê-la voltar,
toda molhada. Ela veio, e ali ficou chorando, chorando, sem parar. Nenhum consolo
parecia possível.
Em parte dona Maria tem razão. Há certo descaso com os
pobres. Os médicos falam como se estivessem fazendo um favor e, se as perguntas
são muitas, fazem cara de irritação e respondem sem paciência. Não explicam.
Falam na língua de médico e esperam que as pessoas apenas confiem. Por vezes
não é suficiente. Um pouco de ternura com uma mãe, ou um filho, ou uma esposa
que cuida do parente, poderia ser muito producente. A gente confia, não há
saída, mas custava ter um pouco de compaixão? Parece que eles aprendem na
faculdade que não é para ter “envolvimento” com o doente, mas nada impede um
pouco de humanidade. “É porque a gente é pobre, com os ricos não fazem isso”,
insiste dona Maria. Vai saber, nenhum de nós nunca foi rico.
Outro aspecto alucinante é o barulho durante a noite. Os
trabalhadores passam pelo corredor conversando alto, riem, gritam, arrastam
máquinas, tonéis de lixo, escadas, pouco se importando se os doentes estão
querendo dormir. Parece que eles, os pacientes, ficam invisíveis, e aí se pode
entender o significado literal da palavra “paciente”. Não há saída. Estão ali
prisioneiros da situação, sem força para sequer reclamar. Há uma perplexidade
no olhar de cada um, que já estão assustados pela morte que espia nas portas, e
ainda tendo de se submeter a situações tão constrangedoras.
Por isso que a madrugada acaba sendo também um espaço de
solidariedade. Os doentes que podem ficam andando de quarto em quarto,
procurando saber como está o colega de infortúnio, contam histórias, procuram
ajudar. Os familiares que ficam como cuidadores, porque não há serviço de
enfermagem, também buscam puxar conversa, se confortar mutuamente, encontrar
algum olhar de ternura, de compaixão. É um momento no qual a humanidade se
expressa, viva. A tal ponto que alguns fazem a ronda junto aos que estão nas
macas e cadeiras, nos corredores, procurando apoiar, levando um café, um pão,
para os que ficam esperando quarto, sem apoio de ninguém. É de enternecer.
Assim, os corredores do SUS são universos de tristeza, de
abandono, de desespero, de repulsa, mas também são territórios da beleza, da
solidariedade, da ternura. Tudo está ali, ao mesmo tempo. E o que sustenta
aquele que está parado ao lado da cama do seu familiar é justamente o terno
compartilhamento da dor e do sentimento de abandono. Parece que assim, juntos,
todos conseguem atravessar, com certo consolo, o caudaloso rio da doença.
Como são longas, tristes e inacreditavelmente belas as
madrugas nas alas do SUS.
Nenhum comentário:
Postar um comentário