quarta-feira, 5 de agosto de 2015

Enfim, abriu o mercado!







O Mercado Público sempre foi o coração da cidade. Por entre seus espaços a vida ilhoa emergia. Nasceu para o peixe, de frente para o mar. Depois, com os aterros, ficou ancorado no centro, vibrando de vida popular. As lojinhas de calçados, as panelas, as ervas-mate, as camisetas de cinco reais, a padaria, o artesanato, os bares "sujinhos" que reuniam os pobres, os sujos e os malvados, com uma boa pinga e a gelada barata. Pelo vão central corria o samba, feito pela gurizada local, e o sábado de manhã era pura festa. Conviviam os espaços mais refinados, como o Box 32 e os botecos da plebe. A divisão de classe demarcada, mas o espaço do mercado era compartilhado, aparentemente sem conflito.

Então, chegou o prefeito César Souza e o mercado fechou. A promessa era de uma reforma. Um novo projeto que tornasse o prédio mais seguro e reparasse algumas injustiças. Segundo diziam, havia gente ali que nem pagava aluguel, ou se pagava, era um valor irrisório e isso não podia ser assim. O espaço nobre era uma galinha de ovos de ouro e tinha de dar lucro para a municipalidade. 

Aí, foi feita uma licitação e muitos dos antigos comerciantes perderam seus espaços, afinal, como bem concerne a cultura ilhoa, eram negócios familiares, sem pretensões de globalização. Impossível esquecer a tristeza das senhoras da loja de panelas, que ali estavam há gerações. Ou o seu Alvim, com mais de meio século na porta leste. Não foi levado em conta a historicidade, a tradição, o costume. O mercado precisava se modernizar. Foi muito triste acompanhar o fechamento das portas, a despedida, o levantamento dos tapumes. Todos sabíamos que o mercado que voltaria não seria mais o mesmo. Até porque, quem ganhou a licitação foram "marcas" que certamente não teriam nada de característico da cultura local.

Quando a ala oeste abriu já vieram os primeiros baques. Sorveteria italiana, com a bola de sorvete custando seis reais. E na ponta principal um "Bobs", marca transnacional que vende hambúrguer e coca-cola. Um restaurante chique, de comidas caras, cervejarias, bistrôs. Nenhum boteco, nenhum espaço acessível ao bolso das gentes. O mercado gourmetizou. Já não precisava ser muito esperto para saber que a ala faltante não seria diferente. 

A obra seguiu seu curso, os milhões chegaram via PAC, o Plano de Aceleração do Crescimento, da Dilma. Mas, apesar dos recursos em profusão, a coisa andava devagar. A previsão era de tudo estar pronto em 19 de julho de 2014. Não ficou. Precisou passar mais um ano. Na propaganda da prefeitura a explicação foi de que o mercado era muito antigo e precisava fazer tudo bem devagarzinho, para não dar erro. Mas, ao fim e ao cabo, o que era para custar cinco milhões, custou 10. O dobro. 

Então, nesse dia cinco de agosto, a ala leste ficou pronta. Era o lugar onde antes ficavam as peixarias e, segundo o prefeito, demorou a terminar por conta de obras de segurança. Enfim, sabe-se lá. O fato é que a cidade esperava com ansiedade pelo fim dos feios tapumes e pela volta do resplandecente mercado.

A cerimônia de reabertura estava marcada para as 11 horas. Eu cheguei antes. Queria ver tudo sem as gentes. E lá estava o mercado, com seu amarelinho queimado, as portas verdes, novinho em folha. O coração até deu aquele pulinho, de puro amor, de alegria extrema. O mercado sempre foi o centro dessa alma ilhoa, da cultura mané. Muitas pessoas fizeram como eu, chegaram antes, para olhar com vagar, deliciando-se com a paisagem sem tapumes ou entulhos. Quem ama a cidade sabe bem o que aquele lugar representa. "Ficou muito lindo", dizia um. "Valeu a pena esperar", dizia outro, encantado com o cuidadoso acabamento.

No vão central, onde antes se misturavam as cadeiras de plástico, brancas e amarelas, com guarda-sóis multicores, agora estavam mesas uniformizadas, marrons, com os guarda-sóis da mesma cor. E as cadeiras também, todas homogêneas, iguaiszinhas, com uma acintosa marca da coca-cola. Poderia ser uma praça de alimentação de um xópin qualquer. Bonito, mas sem alma.

As peixarias, todas muito limpinhas, de azulejos brancos, luzindo ao luminoso sol da manhã. Os peixes fresquinhos, como sempre estiveram e os vendedores com seus costumeiros chamados de clientes. Os boxes frigoríficos tiveram seu número aumentado. Isso achei legal. Mais a frente, o espaço do Box 32, que sempre foi um lugar mais requintado. Agora, ficou ainda mais chique. Bancos vermelhos, estilosos, balcão mega-moderno. Um típico lugar para turistas ricos, desses que existem nas grandes cidades do mundo e que dão familiaridade. Pode-se estar no Egito, na Grécia, na China ou em Florianópolis e a impressão é de que se está em casa, considerando que a casa é lugar de conforto e luxo.

Alguns boxes ainda permaneciam fechados, mas dava para entrever que seriam também todos no mesmo naipe. Espaços mais requintados, com preços salgados. Cerveja de marca, long neck ou latinha, preços nas alturas. "Antes os preços eram baixos porque os caras não pagavam aluguel, agora esses pagam e tem de tirar o lucro. É claro que tem de cobrar caro", justificava um jovem bem vestido, agarrado a uma Heineken.

Não vi a cerimônia de reabertura, nem ouvi os discursos das autoridades. Por certo seriam odes a si mesmos. Preferi passear pelos boxes, mirando as gentes. O mercado estava cheio de gente bonita, bem vestida e disposta a gastar uns cobres. Num instante toda a área central se encheu e foi a festa da praça da alimentação. 

Mais a frente um palco estava montado para as apresentações culturais e, fora do espaço do mercado, do lado da Praça dos Bilros, estavam os mais pobres. Ali, reuniram-se os negros, os mendigos, os trabalhadores, os desassistidos. E por toda a beira do chafariz abundavam os vendedores ambulantes com seus isopores cheios de cerveja gelada a quatro reais. Churrasquinho, pipoca, algodão doce, caldo de cana. A festa dividia bem as classes, embora todo mundo parecesse se divertir. Para quem não tem acesso à cultura a não ser assim, quando ela se oferece de graça, a coisa toda estava muito legal. Havia anos que não via a região do mercado tão cheia. E, lá de longe, as gurias olhavam o mercado e diziam com os olhos brilhantes: Tá bonito.

A festança se estendeu até tarde da noite. Eu saí lá pelas seis da tarde, depois de me deliciar com a Escola Livre de Música, acompanhando o chorinho do Geraldo Vargas, com a alegria do Boi de Mamão, o Nilera e suas música de mar, os bonecos do Berbigão do Boca. A festa foi bonita mesmo e encheu de alegria as gentes. O mercado estava vivo outra vez.

Agora é esperar para ver a vida real, cotidiana. E observar como se comporta o lugar na relação com o povo local, a gente comum. Os peixes seguem com seus preços baixos, mas os demais espaços parecem inacessíveis para muitos de nós. O ar de xópin é concreto e não consegui ver nada que tivesse muito a ver com a nossa cultura gastronômica e cultural. Há um espaço para o trabalho das rendeiras, mas também achei que ficou meio sem alma.

Existe ainda um projeto, que está em andamento, de fechar o vão central, o que pode tornar a coisa muito ruim, ainda mais xopinizada. Imagino que estejam pensado até em colocar ar-condicionado. Pessoas há que gostam disso, mas a mim parece uma perda completa da aura, da beleza. O mercado, que nasceu peixeiro e depois abrigou um entorno popular, agora parece que se descola da essência ilhoa. Está tudo muito artificial, muito homogeneizado.

O mercado é um desafio. Pelos preços das coisas, a tendência é que fique um espaço para turistas e abonados. Mas, tudo pode acontecer. Quando os vestígios da festa sumirem, voltarão os capoeiras, com seu gingado, os negros do samba, os trabalhadores, os desgarrados. E aí pode ser que toda essa gente que sempre fez do mercado seu chão ocupe a área, introduza sua alma, seu jeito, sua cultura, desfazendo o ar esnobe e "global".

Eu me permiti estar no mercado. Porque o mercado é meu. E eu estarei sempre por ali, ainda que tenha de comprar a cerveja com o carinha do isopor e me sentar, faceira, como hoje, nas chiques cadeiras coca-cola. Sempre é possível subverter a ordem das coisas.

A cidade amanheceu feliz. O mercado estava, enfim, aberto. A vida pulsou, o riso se abriu. Agora cabe aos frequentadores habituais recuperarem o mercado. Não vai ser fácil, porque as pessoas tendem a se acomodar com as coisas que pensam não poder mudar. Mas, quem sabe? 








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