Como Marco Polo, no século XIII e Ítalo Calvino, no século XX, eu também tenho esse encantamento pelas cidades invisíveis, aquelas que a maioria não vê, mas que se apresentam, tão intensas diante dos nossos olhos. Gosto de andar pelas ruas, observando os cantos escondidos, os ângulos inauditos, as frestas da vida dos lugares, me assombrando com a beleza. Boca aberta, olhos perplexos, coração aos saltos.
Assim foi em Porto Alegre, capital dos gaúchos, dia desses. Cheguei cedinho, no raiar da manhã. As janelas ainda se guardavam, fechadas, escondendo as pessoas que possivelmente se arrumavam para o turbilhão. Nas calçadas, os corpos retorcidos dos sem-teto, buscando aquecimento nos papelões, ou em algum cobertor velho. Um ou outro cachorro passeava, feliz, nas ruas ainda sem tráfego. Uma cerração pesada tornava tudo branco, dando um ar de sonho.
O mercado público reinava, imenso, inaugurando a algaravia do dia. A praça ia se enchendo, com o vai e vem apressado das gentes até o terminal de ônibus. Era uma visão de sonho. O mercado, a prefeitura, o bulevar. Quase uma Porto Alegre de outros tempos.
Mais alguns passos e chegamos à Rua da Praia, estranho nome para um espaço que está razoavelmente longe do rio Guaíba. Mas, é que andando até o final indefectivelmente chegamos ao rio, que se descortina em profunda beleza. É uma rua que remonta minha primeira infância. Tinha 12 anos quando ali pisei pela primeira vez e, assim, na manhã despertando, parecia tão igual. As mesmas pedras do calçamento, o prédio da antiga CEEE, a empresa de Força e Luz, as galerias com suas lojinhas fulgurantes e estranhas. Logo à frente, a Praça da Alfândega, lugar das maravilhas, no qual os velhos hippies ainda sobrevivem, expondo e vendendo sua arte. Hoje dividem a calçada com bolivianos, peruanos, haitianos, gente que busca sobreviver, e tudo parece ser uma grande família. O chimarrão corre de mão e mão e um vai ajudando o outro a montar a barraca. Os que já se instalaram tocam algum instrumentos ou leem um livro. Há um cheiro bom de incenso no ar.
Na praça, Mario Quintana conversa com Drummond, poemices talvez, bem em frente ao imponente prédio do Clube do Comércio. Mais a frente, Osório, o general dos farrapos, montado em seu cavalo, crava os olhos no horizonte, no qual também assomam os velhos e magníficos prédios onde hoje estão um museu e um centro cultural. Assim, na bruma da manhã, tudo parece tão mágico e tão antigo. Quase posso ver Getúlio Vargas, passando devagar, com seu terno de linho branco e bengala.
Dando a volta, indo outra vez para o mercado, paro para uma conversa com um velho amigo. Meu amado general Artigas, Dom José, o homem que caminhou com os livres da banda oriental. Ali está, com sua cara marcante, nariz adunco e olhos de eternidade. Toco sua fronte de bronze, e fico ali, sorrindo, enquanto os passantes me olham como se louca fosse.
A cerração se dissipa, a cidade vai ganhando seu ritmo de metrópole. Perde a aura. Somem os fantasmas do passado e assomam as gentes comuns, apressadas, teclando alucinadamente seus celulares. Não chegam a perceber as maravilhas que se apresentam todos os dias em diferentes facetas.
Uma Porto Alegre vai sumindo, vem a cidade real, com as obras da Copa do Mundo ainda inacabadas causando transtornos e mau humor. Buzinas, olhares fulminantes, ou a indiferença de quem não tem poder. Nada mais há fazer. Sigo para um café. Sento em frente ao mercado e espero o garçom. Faço o pedido e sorrio, pois é só nessa incrível cidade que a gente pode comer um "farroupilha" com café com leite. Comer mesmo, pois farroupilha é o nome do sanduiche comum, com mortadela. Leva o nome da maior revolução desse estado, que o fez uma república em 1835, e também do guerreiro farrapo que é quem dá dignidade a essa briga de fazendeiros. Mastigo o farroupilha e fecho os olhos, ouvindo o tropel.
Essa cidade me emociona.
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