Era um menino. Seu cotidiano era correr pela rua de areia, perseguir os gatos, empinar pipa, caçar corujas, jogar carreira com os cães, pular poças de água, jogar amarelinha. O momento mais tenso era o ir para a escola. Fechava a cara, resmungava renitente e seguia pela estrada afora, carregando, mal-humorado, a velha sacola dos livros. Não lhe agradava aquele tipo de lugar. Muitas regras, muita atenção, muito cuidado com coisas desinteressantes. Assim, àquelas horas da manhã era puro aborrecimento. Passava a maior parte do tempo olhando para a janela, como se o simples fato de ver o “lá fora” trouxesse a liberdade. E o tempo ia escoando, enquanto ele contava os minutos para sair feito um bólide, perseguindo alguma borboleta.
Ele não lembra bem quando ela chegou, como foi, o que aconteceu, sequer o seu nome. Só sabe que aos poucos, aquela mulherzinha pequena foi prendendo sua atenção. De alguma forma ela colocou mágica nos aborrecidos deveres de matemática, os números passaram a fazer sentido, dançavam, coloriam, inventavam mundos. Seu cheiro de hortelã, sua risada sapeca, e aquela piscadela marota quando queria convencer que a coisa mais bela do mundo era a tabuada, tudo somava para enreda-lo numa deliciosa rede de descobertas. Quando a sineta batia e ele arrancava para fora da escola, a rua ia assumindo outros contornos e ele se via fazendo contas. Uma borboleta, mais uma joaninha, mais uma cigarra eram três integrantes da banda de música do jardim. Bem assim ela ensinava. E ele ria o riso cristalino de quem estava a descortinar as coisas importantes da vida. A rua e a escola agora combinavam. Conhecer era isso: combinar, sem alienar a fantasia.
O tempo passou, o menino cresceu. E por mais que a turba de alienados fosse grande ao longo de toda sua vida escolar, aquela mulherzinha pequena que lhe ensinara matemática nunca saíra de sua cabeça. Fora por ela que seguira a louca ideia de ser cientista, de arranjar-se com números a descobrir os segredos do universo. Vez ou outra, quando as coisas embaralhavam ele sentia o cheiro de hortelã, e mergulhava outra vez. Nas manhãs de outono, quando fraquejava diante de uma equação insolúvel, podia ouvir a risada de cristal anunciando que bastava olhar para a vida mesma que ali estariam as respostas. Os números voltavam a dançar e tudo clareava.
Ontem, de inopino, ele prestou atenção ao filho pequeno que ruminava pragas enquanto se arrumava para ir à escola. Era um pequeno homenzinho, sem rua de areia, sem pés descalços, sem nariz ranhento, sem borboletas. Seu mundo era o quarto, onde visitava universos inóspitos através do vídeo game. “Conte-me sobre os teus professores... Existe algum que faça os números dançarem? Alguma que tenha riso de cristal e cheiro de hortelã?” O guri olhou de revés. “Bebeu, pai? Na escola só temos regras, e ordens, e gente chata”. E saiu, emburrado, carregando o mundo nas costas. O homem ficou, perplexo, dando-se conta que a escola já não é mais espaço mágico onde a rua combina com os saberes formais. Mudou o tempo? Mudou a escola? Não existem mais mulheres que conseguem ser meninas de riso solto, saltitando pela fantasia, apesar de já serem gente grande?
Sentiu pena do filho e de todos os outros que não se encantarão com números, ou letras, ou fórmulas, ou fatos. Pensou que é preciso que haja mais gente capaz de entender, de fato, de almas de meninos, como aquela mulherzinha pequena, de tantos anos atrás...
Um comentário:
Belíssimo texto vc. escreveu.Adorei tê-la visitado.--Valeu-- Bjsss-- JAL.
Postar um comentário