quarta-feira, 12 de setembro de 2012

Do passado e das palavras...




Para Ana

Remexendo nas gavetas do passado andei a me procurar. Era preciso saber quem de fato era essa mulher que, assombrada, me olha no espelho. Enrodilhada nos tormentos, não dava conta, até que me aventurei nas brumas. Voltar, ano a ano, caminhar para trás, olhando pelas frestas da vida que já havia escorrido pelas mãos. As primeiras lembranças foram os livros, essa paixão. Enciclopédias compradas pelo pai, da mão dos vendedores ambulantes.  Mundos distantes, coisas estranhas, descobertas, desejos. As páginas consumidas com voracidade no quarto da vó, enquanto ela bordava seu ponto cruz.

Depois, as primeiras letras. Ler já não parecia suficiente, havia que me aventurar pelo mágico mundo que era possível formar com as palavras. Seguindo os passos do pai no contato com a vida mesma. Meu primeiro colégio, bem longe de casa, no bairro do Passo, para onde eu ia, de ônibus, com a professora Maria Helena. Lugar da beleza, da partilha, começo desse amor insano por “nuestra América”. Perdida, bem longe do centro, encravada na periferia, a Escola Municipal chama-se Francisco de Miranda, um dos gigantes da pátria grande. Não é por acaso, então, em mim, essa mistura argentina, campeira, índia, abyayálica. Vem desde a infância, inoculada nas salas de aula cheias de desenhos de Bolívar e San Martín ou na beira do Uruguai, cercada de paisanos de todos os credos, com sua língua argentina.

Há alguns anos passei muito rapidamente por São Borja. Estava levando minha mãe para o rio Ibicuy, sua última morada. Não havia tempo para visitas, mas, meu coração pediu para ver a pequena escola onde aprendi a formar as primeiras palavras. E lá fui eu, carregada de emoções. Era janeiro, férias, fazia calor. Tanto tempo se passara, nem sabia se a encontraria. Mas qual, lá estava a Francisco de Miranda, não mais tão modesta como a das minhas lembranças. Uma esquina antes do rio, formosa e impávida, formando novas cabecinhas no amor à América Latina, às letras. De fora, impedida pelas grades naqueles dias de férias, reverenciei o lugar por alguns minutos, ouvindo nítidas as vozes da minha infância. Do outro lado da rua encontrei, ainda firme, o casarão onde comprávamos picolé na hora do recreio, misturadas às gentes do lugar.

E então ali estava eu, uma mulher que escolheu viver das palavras, as quais nasceram naquele bendito lugar, no intrigante bairro do Passo. Como num encantamento essas mesmas palavras me acenavam, das brumas da minha meninice. Aquilo que eu sou se forjou nas salinhas, outrora de tábua, do Francisco de Miranda. Dali eu parti para o mundo tal qual Juana Azurduy, bramindo minhas espadas. Como o tempo se esvaia, e era preciso seguir no rumo do Ibicuy, no umbral da escola deixei uma flor e me fui, nascida de novo, embriagada de risos e recordações.

Bem mais tarde, guiada no passado pela mão da Ana, compreendi que nada no mundo poderia mudar aquela garotinha que desenhou suas primeiras letras no Francisco de Miranda, entre os filhos do povo das barrancas ribeirinhas. Indefectivelmente, passe o que passar, eu andarei sempre em luta, grávida de palavras e, com elas, esgrimindo o mundo...