segunda-feira, 13 de abril de 2015

Histórias de um pescador



Renata, filha de Alfredo, entre os editores








Seu Alfredo fazendo rede


Quem esteve na barqueata promovida pelos pescadores da Ponta Coral, em Florianópolis, sabe muito bem das dificuldades que esses trabalhadores enfrentam na dura lida de tirar do mar a comida do dia. Com a sistemática destruição do ambiente, os pescadores artesanais estão perdendo o seu “escritório”, seu lugar de trabalho, o mar. Expulsos das praias, eles acabam tendo de abandonar a profissão ou virar empregado de barcos pesqueiros comerciais. Os jovens já não sonham mais em domar o mar, como nos tempos mais antigos.
“No meu tempo, o jovem carregava no sangue um forte desejo de se tornar um homem do mar. Logo que completava 16 anos, ele tirava sua matrícula na Capitania dos Portos e já se embarcava. E por que este desejo? Porque o mar tem seus encantos naturais. Uma noite de lua cheia em alto-mar é de uma beleza fascinante! Olhar o céu, em uma noite estrelada, com cometas cruzando para todos os lados, é inesquecível! Quem não se entusiasmaria com grandes lances de sardinha que chegavam a atingir 100 toneladas? Eu não fui diferente...”
Essas são palavras de um pescador das antigas, lá da praia de Penha, que, preocupado com a destruição da profissão de pescador, decidiu escrever suas memórias para que a lida no mar ficasse eternizada em palavras. Seu nome é Alfredo José Rosa, nascido e criado no vilarejo de Armação de Itapocoroy, onde viveu da pesca desde os anos 50, sustentando com o braço firme uma família de sete filhos. Aposentado nos anos 80, passou a registrar suas histórias, que viraram crônicas, algumas publicadas na Revista Pesca e Navegação, do jornal Diarinho, de Itajaí.
O material escrito por Alfredo foi reunido por sua filha, a jornalista Renata Rosa, e se transformou num livro que, além de contar das belezas e agruras da vida do mar ganha importância histórica uma vez que a cidade de Penha, onde fica a Armação de Itapocoroy, vive hoje um outro ciclo econômico baseado muito mais no turismo do que na pesca, iniciado com a chegada do Parque Beto Carrero. Assim, as palavras do velho pescador se concretizam em memórias de um tempo que se esboroa, uma vez que a juventude do lugar já não sonha em “embarcar”.
Alfredo morreu no ano de 2009, aos 74 anos, vítima de câncer cerebral, mas a vivência de mais de 30 anos no mar hoje se fazem eternas no livro editada pela editora itajaiense Ipê Amarelo, que, além das crônicas já publicadas no Diarinho, oferece outras seis histórias inéditas. “Alfredo, um pescador” é um documento de memória importantíssimo para quem vive no litoral, pois, na medida em que cristaliza a vivência de um único pescador, acaba oferecendo a visão de toda uma atmosfera universal que perpassa a lida diária dos pescadores da nossa terra.
O lançamento do livro em Florianópolis está sendo organizado pela jornalista Renata Rosa, que além de proporcionar a beleza das memórias de Alfredo, oferecerá aos que vierem celebrar esse momento, a tradicional “concertada”, uma bebida ancestral, típica do litoral catarinense. E, assim, entre um gole e outro de pura vida, os relatos de Alfredo navegarão pela sala, embalando os leitores numa jornada úmida, no caminho do mar, trazendo o passado para o hoje e evocando a possibilidade da resistência da pesca artesanal. Porque enquanto houver um pescador na beira do mar, o chamado das ondas despertará a canoa.
Que venham todos os pescadores ouvir as crônicas do velho Alfredo. Porque ele é cada um, na esperança da pesca farta que ainda resiste nas velhas canoas de tronco de Garapuvu. O lugar não poderia ser mais propício: à beira da lagoa da conceição, no centro cultural.

Serviço
O quê? Lançamento do livro “Alfredo Pescador”
Quando? Dia 24 de Abril de 2015, às 20h30
Onde? Centro Cultural Bento Silvério, a rua Henrique Veras do Nascimento, 50, Lagoa da Conceição.


Quanto? R$ 30,00


domingo, 12 de abril de 2015

João Cândido - o almirante negro


 João, ao centro, de riso largo



Salve, o navegante negro
que tem por monumento
as pedras pisadas do cais.




















O menino João Cândido era negro, mas nasceu livre, em 1880, num lugar que já anunciava seu destino: Encruzilhada, nas planuras do Rio Grande do Sul. Cresceu gaudério, afeito as lides do campo. Sua iniciativa e capacidade de trabalho atraiu a atenção de um político local, capitão de fragata, Alexandrino de Alencar, que foi um dos comandantes da Revolta da Armada, uma revolta de oficiais contra a pouca atenção dada à Marinha pelo então Presidente da República, marechal Floriano Peixoto. Alencar era comandante do encouraçado Aquidabã na última batalha, próxima à ilha de Anhatorim nos arredores da cidade de Desterro, hoje Florianópolis. Com o fim dessa rebelião, que foi derrotada, ele chegou a ter de se exilar. Mas, retornando, viu no garoto João, um líder, e o recomendou à Marinha quando este completou 13 anos de idade.

Assim, enquanto a maioria dos marinheiros era recrutada à força pela polícia, João fez-se aprendiz na Marinha de Porto Alegre, sendo transferido para o Rio de Janeiro, como grumete, em 1895, então com 14 anos. E o guri, que nascera no solo firme da campanha gaúcha, se fez homem do mar, predestinado a cumprir um destino que mudaria a vida de todos os marinheiros. 

Nos caminhos do mar, João Cândido conheceu muitos lugares, onde pode aprender sobre seu ofício e sobre a luta dos trabalhadores. Numa das viagens que fez à Grã-Bretanha, em 1908, ficou sabendo sobre a revolta dos marinheiros russos( do Encouraçado Potemkin), acontecida em 1905, na qual reivindicavam melhor alimentação e condições de trabalho. João atentou. Ele já era uma liderança entre os colegas, justamente por sua preocupação com a situação dos marinheiros e por sua qualidade como timoneiro.  

Naqueles dias era ainda bastante comum o uso da chibata como castigo dentro da Marinha brasileira, mesmo já tendo sido legalmente abolido. Isso não era incomum visto que 90% do quadro era formado de negros e mulatos. O tempo passara, a escravidão já fora abolida, mas o tratamento com os negros permanecia igual. E esse tema do castigo era muito presente entre os marinheiros. À boca pequena se discutia e se conspirava contra as chibatadas, e João Cândido estava no centro desses debates. Conforme consta na sua ficha, nos quinze anos em que permaneceu na Marinha, foi castigado com a chibata em nove ocasiões, preso entre dois a quatro dias em celas solitárias "a pão e água", além de ter sido duas vezes rebaixado de cabo a marinheiro. Ele organizava as lutas e bem sabia o que eram os maus tratos praticados pela Marinha.

No ano de 1893, na canhoneira Marajó, um grupo de marinheiros já havia esboçado revolta contra o excesso de castigos físicos, exigindo a troca do comandante, mas não ousavam pedir o fim do castigo. Foi só depois do retorno da Grã Bretanha, em 1908, com as notícias da revolta dos russos, que a coisa começou a esquentar por aqui. No começo, a luta dos marinheiros se fez no campo institucional. Muitas audiências foram realizadas com políticos e até com o então ministro da marinha, o protetor de João Cândido, Alexandrino de Alencar. Toda essa movimentação contra os castigos corporais e melhores condições de trabalho junto aos parlamentares e dirigentes das forças armadas foi capitaneada pelo marinheiro João Cândido, de formidável figura. Negro, alto, forte, alegre, de olhar penetrante e risonho. Não havia dúvidas com relação a sua liderança entre os marinheiros.

As negociações não deram em nada e os marinheiros decidiram então que era chegada a hora de uma revolta. Marcaram o dia 25 de novembro como o dia da sublevação. Mas, no dia 21, um fato antecipou o plano: um marinheiro de nome Marcelino Rodrigues de Menezes foi punido com 250 chibatadas, que não pararam nem quando o jovem já havia desmaiado. Indignados, os marinheiros decidiram começar a revolta no dia seguinte. 

A revolta

E assim foi. A ideia era o tomar o navio Minas Gerais naquela noite, visto que o capitão dormiria fora. Eles pegariam as armas, dominariam os oficiais em seus camarotes, assumiriam o controle do navio e, depois, de todos os outros que estavam na Baia da Guanabara. Mas, o destino conspirou contra. O capitão voltou mais cedo para o navio, e um marinheiro atacou um oficial de serviço, provocando a reação de todo o comando. Arma-se uma escaramuça e um dos marinheiros é ferido pelo comandante, que insiste em controlar a rebelião. Isso provoca a ira dos trabalhadores que partem para cima do comandante, até que ele é atingido por um tiro na cabeça.

Naquela noite de luta morrem no Minas Gerais, o comandante, dois oficiais e três marinheiros . Também acontecem mortes em outros navios e, assim, começa a rebelião que mobilizou 2.379 homens. João Cândido é escolhido para ser o comandante-em-chefe de toda a esquadra revoltada, composta por 4 navios, incluindo os dois encouraçados fabricados na Inglaterra, considerados os mais potentes do mundo à época: Minas Gerais e São Paulo.

João assume o comando, controla os motins e inicia negociações com a marinha exigindo o fim dos castigos corporais. Enquanto isso mantém os canhões dos navios apontados para a capital. Chega a disparar um tiro contra o palácio do governo, enquanto passa um rádio para o presidente da República. É enfático: "Nós, marinheiros, cidadãos brasileiros e republicanos, não podemos mais suportar a escravidão na Marinha brasileira... Vossa Excelência tem o prazo de 12 horas para mandar-nos uma resposta satisfatória...". Ali, falava já como almirante, o comandante da revolta. Na praia, o povo acompanhava, maravilhado, o balé dos navios amotinados. 

Com os marinheiros dominando os mares, as conversas evoluíram e foi fechado um acordo no qual o governo se comprometia a acabar com o uso da chibata na Marinha, bem como a anistiar a todos os revoltoso.
Mas, como costuma sempre acontecer, os governantes não cumpriram a palavra. Quando todos os rebeldes depuseram as armas, no dia 27 de novembro, e entregaram os navios, tiveram uma surpresa. O governo promulga, no dia seguinte, um decreto que permite a expulsão dos marinheiros que "representassem risco para a marinha". Era a artimanha para trair a lei aprovada no senado da República e sancionada pelo presidente Hermes da Fonseca. 

O governo também mantinha presos, apesar da anistia, muitos marinheiros que haviam participado da rebelião da chibata. Todos estavam confinados na Ilha das Cobras, onde eclodiu, em janeiro de 1911, um motim de fuzileiros navais. Nesse motim não havia uma pauta em questão, apenas era uma pré-defesa diante de boatos que diziam que o Exército iria atacar navios em represália por conta da revolta da chibata. Eram dias de muita confusão na Marinha. O governo foi implacável e bombardeou a ilha, onde estavam pouco mais de 200 homens. Depois, usou o motim na ilha como desculpa para proclamar estado de sítio e lei marcial. 

Era a vingança de Hermes da Fonseca sobre os marinheiros. Depois do motim na Ilha das Cobras centenas de marinheiros foram mortos e outros dois mil foram expulsos da Marinha. Onze foram fuzilados a bordo do Navio Satélite, que levava 105 marinheiros rebeldes para serem jogados nos seringais do Acre, destino dos 96 que lá ainda chegaram vivos.

O fim do almirante negro

João Cândido foi um dos que acabou expulso, acusado de favorecer os fuzileiros rebeldes. Foi preso em 13 de dezembro no quartel do exército, e transferido no dia de natal (24 de dezembro de 1910) para uma masmorra (a cela 5) na Ilha das Cobras, onde 16 de seus 17 companheiros de cela morreram asfixiados. Mais tarde ele contaria que 29 marinheiros e fuzileiros navais foram submetidos ao cal em duas celas da Ilha das Cobras. João é transferido em abril de 1911para o Hospital dos Alienados, como louco. Chegou a voltar para a Ilha das Cobras de onde foi solto em 1912. Apesar de livre das acusações, João foi banido da Marinha e acabou no cais, trabalhando como estivador, descarregando peixe. 

Sua figura valente sobreviveu na memória dos marinheiros, que sempre lhe renderam glórias, mas para a Marinha e para o resto do país, seu nome se esfumaçou, esquecido dentro da história oficial, sempre contada pelos vitoriosos.
Muito tempo depois, em 1933, João Cândido foi procurado pelo líder da Ação Integralista Brasileira, Plínio Salgado, para se incorporar às fileiras desse movimento nacionalista de inspiração fascista. E o velho guerreiro acabou liderando um núcleo do movimento na Gamboa, bairro portuário do Rio de Janeiro. Segundo ele, entrou para o grupo de Plínio porque este possibilitava a filiação de negros e de mulheres. Naqueles dias o integralismo aparecia como uma novidade e muitas figuras importantes caíram no canto da sereia de um nacionalismo regenerador. 

Mas, nem a aproximação com essa vertente bem à direita da política nacional fez com que a Marinha esquecesse o comandante da revolta que humilhou o governo de Hermes da Fonseca. Até uma homenagem que João Cândido receberia no Rio Grande do Sul em 1959 foi suspensa por interferência da Marinha. Foi perseguido até o final da vida, mesmo com a gradativa recuperação de sua heroica trajetória através de artigos de jornais e livros de história. 
Morreu aos 89 de idade, de câncer, muito pobre em São João de Meriti, interior do Rio de Janeiro.
A memória recuperada

Nos anos 70, João Bosco e Aldir Blanc imortalizaram o velho "almirante negro" com a música "O mestre-sala dos mares", hoje um clássico da música popular brasileira. Em 1985 o historiador Hélio Leôncio Martins escreve "A revolta dos Marinheiros - 1910" e em 2003 o cinema mostra sua história no curta "Memórias da Chibata". Em 2005 um projeto de lei propõe inscrever o nome de João Cândido no Livro dos Heróis da Pátria. Em 2007, João teve uma estátua inaugurada  no antigo Palácio do Catete, que foi bombardeado durante a revolta. A estátua, de corpo inteiro, mostra João Cândido com as mãos no leme, de frente para o mar e de costas para o palácio do governo brasileiro, que traiu sua própria palavra quebrando a anistia aos marinheiros rebeldes. 

Em 2008, 39 anos depois de sua morte, finalmente foi publicada no Diário Oficial da União, a lei que concedeu anistia ao líder da Revolta da Chibata e a todos os seus companheiros, mas não o reincorporou à Marinha, como era o seu desejo acalentado até a morte.

Em 2008, a estátua de João foi transladada até a Praça XV de novembro, no centro do Rio, num evento grandioso que contou com a presença do então presidente Lula. O representante da Marinha não compareceu. Em 2010, Lula batiza com o nome de João Cândido o primeiro petroleiro produzido no Brasil após um intervalo de 13 anos. 
Em 2012 começa a ser produzido o longa metragem "Chibata", com patrocínio da Petrobrás, que contará a saga de João Cândido e seus companheiros na histórica revolta que aboliu o uso da chibata e marcou a vida nacional.

O negro bonito, de riso largo, que saiu da campanha gaúcha para o mar não está esquecido. Ele vive e viverá. E ainda há uma longa luta para travar que é a reincorporação de João à Marinha, tal qual ele sonhava. Enquanto isso não acontece o veremos nas tardes modorrentas do Rio, mão no leme, olhando atrevido para a terra, com os canhões engatilhados. Salve, almirante, nós não te esquecemos...

quarta-feira, 8 de abril de 2015

Sindicalismo e consciência de classe


Um belo momento da greve pelas 30 horas

Durante dez anos estive em um ou outro cargo de direção do Sintufsc - o sindicato dos trabalhadores da UFSC. Nossa proposta era, além de travar a luta corporativa, absolutamente necessária, preparar os trabalhadores para grandes debates da vida nacional e internacional. O ponto central era, a partir das atividades de formação, incentivar o despertar da consciência de classe.

Marx diz, no Capital que a consciência de classe - o entendimento de como funciona o sistema capitalista, formado por uma classe que explora e outra que é explorada - brotaria no trabalhador na medida em que a classe operária estivesse cada vez mais disciplinada, unida e organizada. Saber como funciona o sistema, tirar o véu que cria a alienação, eram condições necessárias para isso. Daí o trabalho de formação que os sindicatos precisavam desenvolver.  

Ter uma consciência de classe consiste em discernir as relações de produção capitalistas e defender os interesses de sua classe - a dos trabalhadores - contra o capital. Pressupõe ainda uma postura solidária com todos os seus iguais  - trabalhadores explorados -  e uma ação coletiva diante do inimigo comum.  

Conferências, seminários, cursos, tudo era organizado para que os trabalhadores da UFSC pudessem desvelar a realidade e adquirir essa consciência de classe revolucionária, capaz de atuar no sentido de destruir o sistema capitalista, solidariamente unida com os demais companheiros na mesma situação . De certa forma, isso não funcionou. Apesar de durante essa década termos conseguido aglutinar novos trabalhadores nesse caminho, com o passar do tempo eles foram se afastando e alguns chegaram abandonar totalmente o campo da luta de classe.

É fato que algumas pessoas mantiveram o rumo, mas foram poucas. Não conseguimos envolver a categoria no projeto de mudança de mundo. E aí aparece uma questão que tem me ocupado nos últimos tempos. O trabalho de informação sobre como funciona o sistema foi feito.  Não há como dizer que os trabalhadores desconhecem que existe um sistema capitalista, e que, nele, há os que exploram e os que são explorados. Todos sabem disso. Também sabem que na sua relação com o empregador eles são os explorados. Ainda que os trabalhadores públicos sejam pagos pelo dinheiro dos impostos, logo, pelo povo,  é o estado que assume o papel de patrão. Como o estado existe para atender os interesses da classe dominante  - os exploradores - também os trabalhadores públicos estão imbricados nessa equação de dominação trabalho x capital. E as pessoas sabem disso. Então por que não têm consciência de classe?

São históricas - e algumas até bizarras - situações em que os trabalhadores da UFSC mostraram sua face mais conservadora e egoísta na relação com outras categorias e mesmo com estudantes.  Pedidos de ajuda que foram negados, houve rejeição à lutas conjuntas e até a negativa de um prato de comida. Discursos dos mais venenosos contra o MST e até mesmo contra os palestinos ou iraquianos. Por quê? Se ao longo da vida laboral e sindical a categoria teve a possibilidade de conhecer a realidade, saber como funciona a sociedade, sair da caverna da ignorância, por quê?

De certa forma o pensador polonês Zygmunt Bauman apresenta alguns elementos para refletir sobre esse questionamento. Segundo ele, os tempos vividos hoje são outros, líquidos, no qual nada mais é feito para durar. A sociedade da produção foi substituída pela sociedade do consumo, logo as respostas para os problemas atuais precisam estar ancoradas na realidade presente. O trabalhador, ao que parece, já sabe que é um explorado, tem clara consciência disso, mas aparentemente ele não se importa, desde que possa estar incluído no mundo do consumo.

O próprio sistema capitalista - sempre se renovando - oferece ao empobrecido a possibilidade de estar na mesma órbita que o explorador. Ou seja: o rico tem um celular de mil dólares, mas ao pobre também é dada a possibilidade de ter um celular. Custará mais barato, será uma imitação, mas as funções estão ali. Terá acesso à internet e ao uatizapi. Logo, que se dane a exploração, estamos no fluxo. Nesses novos tempos já não basta  "desvelar" ao trabalhador a realidade, pois a ideologia já não está mais na consciência. A ideologia está na coisa. Daí que é preciso trabalhar com outras categorias, ligar o contexto da exploração - que é ruim e destruidora do humano - com o mundo de hoje, com os desafios de hoje e com as alienações de hoje.

Se a ideologia está na coisa, no objeto que é vorazmente consumido, é a partir daí que temos de começar a pensar. Os trabalhadores,  seja no trabalho formal ou informal, que conseguem garantir recursos para viver no mundo das coisas maravilhosas, não se importam que esse mundo venha a conta gotas, ou em imitações baratas. Eles querem comprar e participar. É o cidadão cliente, aquele que só é, se compra.

Esse é, então o desafio do sindicalismo. Debruçar-se sobre a realidade. Não dá para ficar choramingando que as pessoas não querem lutar, que não vêm para as manifestações. Há que entender por que isso acontece e traçar novas respostas para esses novos desafios. Ou faz isso, ou estará fadado à morte, ou a indiferença, que é também uma espécie de morte.

No campo do serviço público o desafio é ainda maior. Os salários são seguros, os empregos estáveis. Assim, mergulhar no mundo das coisas, do consumo, é bastante fácil. Nos últimos anos, os ventos foram favoráveis. A economia estabilizou, o crédito fluiu, foi possível comprar muitas coisas, viajar, consumir à larga. Agora, se anuncia um tempo de arrocho. Os preços vão subir, o crédito escassear. Haverá desconfortos. O que não sabemos é se, acostumados com a ilusão do consumo, os trabalhadores terão forças para escapar a esse canto de sereia. Por isso, os sindicatos continuam sendo necessários. Para que a luta contra a opressão e alienação não seja uma batalha solitária. Mas, se os sindicalistas não estiverem preparados, teórica e politicamente, perderão a batalha.

Nesses dias de paralisação do serviço público federal, a UFSC se apresenta como um palco privilegiado desse debate. Setores fecharam as portas atendendo ao chamado do sindicato de "cruzar os braços". Uma resposta oca, a um chamado oco. Respostas velhas para novos desafios. Não há movimento, não há debates, não há reflexões.

Basta lembrarmos que no ano passado, a nova safra de trabalhadores, que entrou no serviço público nos últimos anos, apresentou uma proposta de greve original e novidadeira: uma greve de trabalho. Não fechar as portas, mas abrir. Aquilo foi uma proposta brilhante. Novas respostas para novos tempos. O resultado dessa novidade foi um golpe dado por parte da categoria - direção sindical, aposentados e alguns ativos da velha guarda - que boicotou o movimento e, em uma assembleia melancólica, acabou com a greve que durou quase três meses, cheia de atos, movimentos e atividades culturais e políticas. O golpe, desagregador e inusitado, veio por conta da incapacidade de compreender os novos tempos, as novas respostas. Trabalhar, em greve? Como assim? Nunca foi assim? O velho sindicalismo, cego, prisioneiro do passado.

Mas, o que apareceu como uma derrota pode ser também o germe de uma mudança. Aquela brisa novidadeira não se dissipou. Ela vive, nos corredores, nos bares do campus, nas paradas de ônibus. A juventude observa, estuda, se encontra e debate. A última batalha ainda não foi travada.

Eu tenho muitas esperanças...


Festa indígena na UFSC





Momentos da vida nesses quatro anos



















Das entranhas dos estados de Santa Catarina e Rio Grande do Sul vieram para dentro da Universidade Federal, como alunos, os Guarani, Kaigang e Xokleng La Klanõ. Professores já em suas aldeias, ensinando coisa de juruá e de índio, buscando acompanhar a vida educativa, ora integrado, ora fora. Uma batalha cotidiana já que os indígenas, como qualquer outro grupo social, não conseguem preservar seu modo de vida sem território. São milhares ainda as famílias indígenas que não têm um pedaço de terra onde possam aportar e pensar a vida. Muita luta ainda se faz nas beiras de estradas, nos acampamentos improvisados, em terras alheias. Tanta coisa para re-conquistar, visto que o índio é o verdadeiro dono da terra. Mas, desde 1500 tem sido usurpado, invadido, roubado. Uma longa história de tragédias e resistência…

Na noite deste dia 8 de abril de 2015, às 19h, no Centro de Eventos da UFSC, essa resistência/luta mostra um dos aspectos de sua face. Mais de 100 representantes das três etnias que vivem em Santa Catarina – com alguns vindos do Rio Grande do Sul - recebem seu diploma de graduação na Licenciatura Intercultural Indígena do Sul da Mata Atlântica, curso criado na UFSC para garantir formação aos povos originários, dentro da nova política de educação que promove a inserção de negros e índios nas universidades.

Desde o começo o curso foi um desafio. Primeiro, para que existisse de fato, com toda a discussão necessária junto às aldeias e o difícil processo de busca de recursos. E, depois, para que não se tornasse só mais um curso de graduação dentro da universidade, sem levar em conta a especificidade do mundo indígena. Foram quatro anos de batalha. Dos trabalhadores, que precisaram aprender a viver com uma outra forma de organizar a vida e o tempo. Dos professores e coordenadores, que tiveram de encontrar caminhos nos quais o saber pudesse ter duas vias. E dos próprios alunos, que precisaram enfrentar um ambiente totalmente hostil, desde o eterno preconceito até na organização do espaço.

Muitos desses desafios foram vencidos pouco a pouco, outros ainda subsistem. Mas, para os alunos que conseguiram terminar suas monografias, a vitória está estampada nos rostos satisfeitos pelo trabalho criado. Praticamente todos os trabalhos finais versaram sobre a cultura indígena. Família, ervas medicinais, território, mitos, histórias. Conforme aponta o coordenador pedagógico do curso, Rivelino Barreto, que é da etnia Tucano, da Amazônia, os alunos decidiram pensar a própria vida na própria cultura. “Até então, os indígenas que entravam na faculdade tinham de seguir a regra de pensar os trabalhos de conclusão de acordo com o que certo autor pensou, reproduzindo apenas um saber que não era nosso. Nessa licenciatura os alunos puderam colocar na mesa da universidade os conceitos indígenas. Trouxeram eles as suas teorias, os seus saberes e os expuseram. O indígena não tem o hábito de ler um autor e o reproduzir. Nós pensamos e vivemos a partir do que vemos, do que ouvimos, do que vivemos na prática. Nossas referências são nossos velhos, nossos pajés. Esse curso foi, de fato, um diálogo”.

Hoje à noite, quando receberem o sonhado “canudo” os jovens indígenas que caminharam pelo campus da UFSC durante quatro anos, levam um pedaço de papel que é importante na cultura não-índia. Mas, muito mais do que isso, eles deixam nas prateleiras da biblioteca um saber que até então estava restrito a eles mesmos ou um que outro estudioso. A cultura Guarani, Xoklen La Klanõ e Kaigang pode ser visitada, e é contada pelos próprios índios. Não é um falar sobre um “outro”, distante. É um dizer de si mesmo, com toda a delicadeza/força de uma cultura que, a despeito de tantos massacres, sobrevive e ocupa os espaços. Não como coitadinhos tutelados, mas como uma gente que tem o que dizer.

O mundo indígena é constituído de uma episteme que se diferencia do mundo criado pela cultura ocidental cristã. Diferencia-se nos conceitos, nos mitos fundadores, na forma de organizar a vida. Durante centenas de anos essas episteme foi negada, excluída, ridicularizada. Mas, tal como a boa semente, não esterilizada pela Monsanto, os povos originários seguem fazendo brotar, nos minúsculos territórios livres do saber, a sua palavra.

Hoje, meus parentes vivem um momento de alegria. Logo depois retornam para suas aldeias, na dura batalha por um tempo que ainda não chegou. Mas, que chegará!


Parabéns, vida longa e próspera (para ser intergaláctica)!  Eko Porã!
    

terça-feira, 7 de abril de 2015

Greve dos professores cada vez mais forte




















Professores não esmoreceram no dia de hoje e fizeram uma vigília durante a sessão ordinária da Assembleia Legislativa. Casa cheia nas galerias e no saguão de entrada.  Havia a possibilidade de ir à votação uma contraproposta do governo para a questão dos professores temporários.  Mas, nada disso aconteceu. O governo decidiu chamar os líderes das bancadas para uma reunião amanhã de manhã, na qual será apresentado o ante projeto que pode contemplar algumas das propostas dos professores em greve, como a manutenção da equivalência salarial para os temporários e da licenciatura curta. Por outro lado os professores mesmos não sabem o teor do anteprojeto. Tudo está em aberto.

O que botou fogo na sessão dos deputados catarinenses foi o vídeo de uma fala do secretário de Educação, Eduardo Deschamps, que, durante uma vídeo conferência com diretores de escola exige "fidelidade" à moda dos antigos coronéis e ainda ameaça os professores. Segundo ele, os que fizerem greve e estiverem em estágio probatório serão demitidos - o que é uma ilegalidade. A greve é um direito do trabalhador. Ele também diz que os diretores devem servir ao governo, mesmo tendo sido eleitos pela comunidade.

Vários deputados se remeteram à fala do secretário e alguns chegaram a pedir a exoneração de Deschamps, com o entusiasmado aplauso dos professores que acompanharam a sessão. "O governo nega que estejamos em greve, mas manda o secretário ameaçar os diretores para que ameacem os professores. É uma vergonha!".

Amanha nova batalha será travada pois o governo vai tentar passar seu anteprojeto. E novamente os professores prometem uma vigília, contando ainda com a parceria dos estudantes que, a cada dia, engrossam o coro de apoio ao movimento.  Afinal, a discussão sobre os direitos dos contratados temporários é só uma parte da pauta da greve. Ainda há outros temas para serem tratados no campo das negociações do movimento. De qualquer forma, uma vitória com a pauta dos ACTs pode dar fôlego à luta dos educadores catarinenses que estão há quatro anos esperando que o governo seja consequente com suas promessas.

Hoje, enquanto acompanhavam a fala dos deputados, os professores que não puderam entrar no plenário se espalhavam pelo saguão onde também estavam expostas telas com representação de rostos humanos. Nada poderia ser tão ajustado. Nas telas, a imagem da amargura, da dor, do desassossego, expressões muito parecidas com as das pessoas que - a duras penas - fazem a educação pública caminhar. Mas, no rosto dos professores, além da amargura por precisar parar as aulas para garantir direitos, também podia se ver a garra que os torna tão especiais. Se ainda há educação para os filhos das famílias desse estado é porque esses homens e mulheres tiram leite de pedra. Uma categoria valente e de qualidade. 

Que venha a vitória.

segunda-feira, 6 de abril de 2015

Fórum sobre o Processo de Paz na Colômbia



Acontece em Florianópolis, no dia 15 de abril , às 19h, no Auditório Henrique Fontes, CCE/UFSC, a conferência de Sérgio Quintero, da Marcha Patriótica, da Colômbia. A atividade faz parte do processo de discussão que culminará em junho, no Uruguai, no II Fórum pela Paz na Colômbia. Esse pré-fórum que tem por tema “Processo de Paz, Diálogos, Lutas e Contradições” é organizado por uma série de entidades sindicais, populares e políticas da cidade e visa informar com mais segurança sobre o processo de paz desencadeado há três anos, envolvendo o governo colombiano e as Farcs, mediado pelo governo cubano.

A Colômbia vive uma guerra civil que teve seu estopim em 1948, com o assassinato de Jorge Gaitán, então candidato progressista às eleições presidenciais. Amados pelas gentes, sua desaparição violenta desencadeou um processo de rebeliões e violências estatais que se aprofundaram nos anos 60, com o fortalecimento de grupos organizados visando a libertação nacional, tais como as FARCs e a FLN. A guerrilha sobrevive apesar de todos os ataques dos paramilitares e dos mercenários a soldo, financiados pelos Estados Unidos.

Por outro lado, décadas de resistência e de luta tem envolvido a população em um redemoinho que parece não ter fim. Há um desejo de paz, uma vez que ao longo dos anos o país tem perdido seus melhores filhos em ações que podem ser caracterizadas como “terrorismo de estado”. Incontáveis são os estudantes, sindicalistas e líderes populares que são assassinados e desaparecidos por obra do exército colombiano ou de grupos mercenários que representam ora os interesses do estado, ora os interesses dos narcotraficantes. O resultado desse processo ultrapassa os quatro milhões de pessoas desalojadas de suas terras, expulsas de seus lugares de moradia, que vagam pelo país ou migram para outros espaços na América Latina. Os que não tem como se mover acabam morrendo nos fogos cruzados.

Em todo o mundo, lutadores sociais se juntam aos esforços de paz. A chamada “mesa de conversação” está em andamento, embora lenta. As FARCs já mostraram sua boa vontade e definiram um cessar fogo, mas as ações de governo e paramilitares continuam. É um tabuleiro delicado que exige confiança de todos os lados, coisa difícil de lograr, uma vez que as experiências passadas não são boas. Em duas ocasiões, quando guerrilheiros entregaram suas armas, foram depois perseguidos e assassinados. E ninguém quer que isso se repita, por isso os passos são dados de maneira muito cuidadosa.

Enquanto a mesa segue, em todo mundo são realizados encontros que visam conhecer a realidade e prestar solidariedade ao povo colombiano. É o caso desse pré-forum. Para quem está nas mesas de negociação e na luta cotidiana, esses apoios são como um vento fresco na fervura da batalha e ajudam na correlação de forças, daí a sua importância.

A Colômbia quer a paz, mas ela não pode ser uma imposição governamental. Ela tem de ser uma construção firme e segura, que garanta a segurança de todos os envolvidos nas lutas.

Conferência com Ségio Quintero – Marcha Patriótica
Onde: Auditório do CCE/UFSC
Quando: 15 de abril - 19h


domingo, 5 de abril de 2015

Palestina - a violência cotidiana


Entrevista com Emad Burnat, diretor do filme "Cinco Câmeras Quebradas", sobre a luta do povo da Palestina, singularizada num pequeno povoado, que sofre cotidiana agressão israelense.