quarta-feira, 9 de julho de 2025

O futebol que não é mais


Eu lembro quando eu era louca pelas corridas de Fórmula 1. E atentem, sou do tempo do Emerson Fittipaldi. Era um tempo de grandes pilotos tais como o James Hunt, o Ronnie Peterson, Niki Lauda, o próprio Emerson, depois Piquet. Enfim, era um tempo em que o carro contava, mas o piloto fazia a diferença. Pois chegamos a ganhar com o nosso Coopersucar. Então valia a pena acordar cedo para ver uma corrida, porque tudo podia acontecer. Depois, quando a tecnologia passou a ditar os resultados, deixei de ver. Porque, afinal, não precisava nem saber o nome do piloto. Ou era a McLaren ou a Ferrari as que iriam vencer. Estava dado. 

O mesmo parece estar acontecendo com o futebol e essa tal Copa do Mundo dos Clubes mostrou claramente. O lance não é mais o futebol em si, mas a grana que pode comprar o que há de melhor no mundo. Veja o caso do Chelsea. Os caras compram jogadores de todo o planeta, basta o guri se destacar, chegando a ter jogadores que nem usam, só para concentrar o “pé-de-obra” (expressão criada por Nilso Ouriques). E assim fazem também alguns outros grandes times europeus. Então, o que faz a diferença em campo nem é o futebol, mas o dinheiro que conseguiu comprar o craque. Ou seja, o futebol é sequestrado pela grana. 

Dito isso, a parada que fica clara é que o futebol brasileiro não está em queda nem perdeu a qualidade. Ele apenas não consegue acompanhar os times ricos. O Fluminense ontem jogou valente, mas enfrentou os melhores do mundo. O time dos ingleses quase nem tem ingleses. E, como ironia maior, foi derrotado por um guri criado nos seus gramados. 

Definitivamente fica bem difícil a gente torcer e vibrar num campeonato no qual a gente já sabe de antemão que só um milagre pode fazer com que os times endinheirados não sejam os campeões. E milagres não acontecem assim... 

Eu um dia abandonei as corridas... Ontem abandonei o futebol. Essa porra do capitalismo é uma mão podre... Acaba com todas as nossas alegrias...

sexta-feira, 4 de julho de 2025

A banalidade do mal

A morte em Manaus, durante a Covid. Imagem: Paulo Desana/Dabakuri/Amazônia Real

Nos anos 1960, quando Ana Arent acompanhou o julgamento de Otto Adolf Eichmann, um dos principais organizadores do holocausto que vitimou judeus, ciganos e comunistas na Alemanha nazista, ela cunhou essa expressão de “a banalidade do mal”. Escrevendo para um jornal estadunidense ela fez o perfil do criminoso. Segundo Ana, não havia em Otto Adolf nenhum histórico sobre ser antissemita ou ser um psicopata. Não. Era um alemão comum que cumpria ordens superiores sem questionar, crescendo unicamente na carreira e se dando bem na vida. Mandava para a câmara de gás homens, mulheres, velhos e crianças sem qualquer sentimento de bem ou mal. Seguiu uma lógica burocrática estabelecida desde o topo até o ponto final. 

Não se discute o tema do mal e aponta que ele pode emergir a qualquer momento, desde que haja espaço para crescer. Avalia também que o mal não é uma categoria metafísica, religiosa: ele é político e histórico. É produzido por pessoas comuns em razão de uma escolha política. E, desde aí, a banalização da violência, do ódio, corresponde a um vazio de pensamento aonde o mal se instala e passa a comandar. 

Ana Arent escreveu sobre isso a partir da constatação dos horrores dos nazistas provocados nos anos 1940. Mas, e hoje, o que pode caracterizar esse momento no qual, de novo, podemos ver a face do mal tão abertamente nas redes sociais? 

Qualquer pessoa que tenha um mínimo de compreensão sobre as coisas do mundo pode visualizar esse mal, essa onda assustadora de vazio humano. Podemos falar do genocídio palestino. Há mais de um ano o estado de Israel bombardeia Gaza, matando gente sem dó, explodindo escolas, hospitais, zonas de refugiados. E as postagens nas redes sociais, tanto dos sionistas quanto de gente comum, são de arrepiar. Festejam, riem das crianças mutiladas, fazem piadas com as cenas de absurda dor. E a vida segue, sem que os que têm poder ajam. 

No Brasil vivemos a experiência do governo de Jair Bolsonaro. Durante uma pandemia, com gente morrendo como mosca, o então presidente fazia piadinhas, ria das pessoas sufocando nos hospitais, dizia que não era coveiro para dar conta dos mortos. E, por todo o país, senhorinhas simpáticas o idolatravam e riam com ele. Pessoas comuns, nossas tias, mães, avós, nossos vizinhos. O mal escancarando os dentes. E ainda hoje isso se expressa nas redes sociais sem pejo. O cara segue sendo chamado de mito.

Na Argentina, um cara com um programa que promete fechar universidades, hospitais, acabar com as políticas públicas, entregar o país, foi eleito por ampla maioria, com as pessoas gritando em delírio quando ele dizia que iria acabar com os comunistas em nome da liberdade. A liberdade de uma pequena fração da classe dominante do seu país. E lá embaixo, o povo, que iria se lascar com essas promessas, aplaudindo e celebrando. 

Em El Salvador, o presidente Nayib Bukele prendeu milhares de pessoas acusadas de criminosas. Prisões enormes foram erguidas e o povo aplaudindo. É fato que ele conseguiu destruir parte das famosas “maras”, bandas criminosas que assolavam o país. Mas, para além das maras agora ele vai trancafiar qualquer pessoa que o critique. A mão dura do poder chegando a qualquer um. E as gentes em festa. Seu modo de governar virou exemplo. E há outros presidentes copiando seus métodos. Ninguém chama isso de ditadura ou governo autoritário. Bukele é amigo do rei. 

E o rei, que são os Estados Unidos, o que faz? Governa de maneira absolutamente totalitária, fazendo coisas jamais pensadas. Ameaça universidades, manda prender estudantes que criticam seu governo, organiza uma caçada humana com os imigrantes, deportando cada um e cada uma que encontra, separando famílias. Um horror indescritível que não aparece na televisão. Mas, mesmo que pareçasse provavelmente não provocaria estupor. Como se vê nas redes, há uma multidão de gente aplaudindo e aprovando os horrores, como se nada. Tampouco se ouve falar que Donal Trump seja um louco, ou um ditador. Não! Nadinha. Fosse Nicolás Maduro que começou a prender gente, aí sim, teríamos o mundo inteiro protestando. 

O fato é que com esses seres nefastos e maléficos nada passa. Pelo contrário, quanto mais mal provocam, mais são incensados ​​e aplaudidos. A banalidade do mal. 

E não precisa ir muito longe. No cotidiano de nossas cidades pacatas esse vazio humano que gera o mal também vai se espalhando e se expressa no cara que mata o outro porque lhe cortou a frente do carro, no marido que mata a mulher que não o quer mais, no vizinho que joga veneno no quintal do outro para matar seus cachorros que latem demais. A hera venenosa vai se reproduzir e invadir todos os lugares. As pessoas não sentem nenhum prurido em fazer comentários maldosos nas postagens das redes. Tudo é permitido na banalidade do mal. E destruir o outro virou moda.

Karl Marx já disse em seus escritos de Paris que o capitalismo destruiria de tal maneira as pessoas com sua lógica de exploração, que o gênero humano seria esfacelado. Falou sobre isso há 200 anos. E agora está. Pessoas comuns, que apenas querem dar bem na vida, atuando como monstros. Uns estão bem visíveis na televisão, na tela do celular, outros estão do nosso lado na mesa do restaurante, no ônibus e até dentro da nossa casa. Tomados pelo vazio que o capitalismo gera, na busca desesperada pela vida, aliam-se ao mal.

O que fazer diante disso? É cada vez mais difícil encontrar uma resposta. Transformadas em zumbis, tal como anunciam os filmes apocalípticos, os tomados pelo mal avançam. O único que sei é que há que lutar contra isso. Há que agir na solidariedade, no amor, no cuidado, na bem-querença. Mesmo que pareça pueril e inútil. Esta é uma boa hora de seguir o conselho da mãe: não é porque todo mundo vai, que você também irá. Naqueles tempos do nazismo houve quem resistiu e perdeu. E venceram.

Nós também teremos de vencer botando abaixo do capitalismo, a cabeça do mal. 





quinta-feira, 26 de junho de 2025

O jornalismo morreu?



Nos contos de fada aparece muito essa cena. Uma princesa morre. Uaaaaaa... Tristeza! Depois, a gente descobre que não, não morreu. Ela só dorme. Então vem o príncipe e por conta de um beijo, ela volta à vida. Tirando a lança de príncipe ou princesa que é bem uó, a mensagem destes contos é bastante singela e bem bonita. Aquilo que parece morto, pela força do amor, volta a viver. 

Assim eu sinto o jornalismo. 

Hoje, conversando com um estudante de jornalismo me conta disso bem claramente. Olhando a realidade material, o que se vê é o jornalismo morto. Basta uma espiada num jornal das TVs, qualquer delas, ou folhear os jornais que ainda existem. Morto. O jornalismo está morto. Em Florianópolis, o tal do ND é uma folha de propaganda da prefeitura ou um boletim da polícia, dependendo do momento. As TVs são um apanhado de banalidades sem qualquer relevância pública. O jornalismo morto.

E quando falamos em jornalismo, estamos falando do que nos ensina Adelmo Genro Filho. Uma notícia que, amparada no singular, consegue transitar para o universal, trazendo o contexto do fato, a interpretação, a narração, a descrição. O jornalismo na sua missão pública é de bem informar a população. Assim é que este jornalismo não aparece nos meios comerciais. Morto. É o que se pode dizer dele.

Mas, se tirarmos nossa visão dos meios comerciais e começarmos a cavar no fundo do cemitério de sites que são a internet, ou em alguns veículos alternativos, comunitários, populares, podemos encontrar o jornalismo, vivo, respirando. Repórteres ainda há, sim. Textos bem escritos, contextualizados, com impressão, descrição, narração. São poucos, mas estão por aí, espalhados, escondidos. Há que procurar. E esse jornalismo que ainda respira, apesar das inúmeras camadas de mediocridade, tem a função de, ainda que lentamente, despertar o que dorme. 

Eu sou um pessimista com quase tudo na vida, menos com o jornalismo. Acredito na sua necessidade social. No mundo tal como está, globalizado, as pessoas precisam do texto de qualidade, precisam do texto que media, que analisa, que se espalha para além da mera informação. Não é possível que uma sociedade siga em frente sem ele. Por isso, apesar de observar o corpo inerte do jornalismo na TV ou nos jornais, sinto com profunda clareza que ele apenas dorme. E, nesse caso, não há príncipe, mas jornalistas, esses, de verdade, que ainda existem na resistência. Para que o jornalismo volte a viver há que ter jornalistas capazes de apagar ou vez a chama do texto que universaliza os fatos. 

Em algum momento esta estupidez generalizada que vimos e lemos nas redes sociais vai se esgotar. Então, o jornalismo ressurgirá das cinzas, porque as pessoas precisam dele. E, de novo, voltaremos a ver textos densos, bem escritos, normativos vívidas da realidade, interpretações inteligentes. A vida e sua imanência narrada com bossa, como dizia Antônio Olinto.

O jornalismo espreita, ali na esquina. Ele dorme, mas está vivo. Há que despertá-lo! Como bem disse o grande Marcos Faerman (na foto), "O povo não tem tempo de ler texto ruim. Se for bom, tem leitor".



sexta-feira, 16 de maio de 2025

O Figueirense empresa


Eu sou figueirense de um tempo em que o Figueirense era um clube de futebol. Sim, um clube, que vivia de seus sócios e das algumas outras transações menores. O Figueirense era a casa da gente. Quando entrávamos pelos portões com nossas bandeiras e camisas alvinegras, a gente se encontrava com os “irmãos” no amor. E as tardes de futebol nas arquibancadas eram de alegria, gritaria e cerveja. Uma festa, mesmo na derrota. O Figueirense era clube. Sabíamos que era preciso ir ao jogo, pagar o ingresso, para ajudar o clube a ir para frente. 

Até que então chegaram os “homens de empresa” com o papinho mosca de que o clube precisava se modernizar, levar mais a sério o “negócio” futebol. E que a única maneira era deixar de ser uma associação sem fins lucrativos e virar uma empresa. Seguiam a onda criada no Brasil todo que já engolia alguns outros clubes pelo país, a partir de uma proposta do deputado Pedro Paulo, do DEM do Rio de Janeiro. Virar empresa, virar negócio, bussines, ganhar dinheiro. 

Então, em 2017, o Figueirense que somava algumas dívidas, entregou o clube para uma empresa administrar, a Elefhant (olha o nome da coisa, elefhant). E lá se foi o nosso clube para o cassino do capital, dirigido por gente não muito séria, já que em menos de um ano o contrato com a tal empresa foi rescindido. Não sem antes ela afundar ainda mais o Figueirense deixando, inclusive, de pagar os salários dos jogadores, que obviamente entraram na justiça.  Daí pra cá só ladeira abaixo. Os empresários foram se sucedendo, contraindo mais dívidas. E nesse meio tempo fazendo campanhas junto aos seus sócios e aficionados para arrecadar dinheiro. E a gente dando dinheiro feito bobo para ver o clube afundar mais ainda. Até nosso estádio está penhorado, podendo a qualquer momento ser tirado do clube.  Os números estão aí, a dívida passa dos 200 milhões. Como pagar? Vendendo o patrimônio construído com o sangue e o amor dos torcedores? Hoje, para nossa tristeza, não há mais clube. Não há sequer futebol. Cá estamos na série C, lanterna das lanternas. Aquele trabalho de clube, de criar a gurizada local, não existe. Os jogadores não carregam o peso da velha figueira, desconhecem a história. O Figueirense é só uma empresa onde eles vendem a força de trabalho. Não os culpo, óbvio. A responsabilidade não está neles. Está nos vendilhões, nos que destruíram - e seguem destruindo - o clube. E precisamos desvelar essa gente, dar nome e sobrenome. 

A empresa Figueirense fez um acordo de recuperação judicial, mas a coisa anda capengando. Se o clube não pagar, corremos o risco de perder o estádio Orlando Scarpelli, uma espécie de joia no Estreito, por conta de sua localização estratégica. Numa cidade onde quem manda é bonde do cimento, imaginem a fome dos abutres... 

Enquanto isso, vamos perdendo nosso furacão, que nem ventinho mais consegue ser. E a maior dor é que time a gente não troca, não se abandona. É uma traição impossível, como explica Nilso Ouriques no livro que leva o mesmo nome. Por isso, a cada jogo, a gente fica esperando que aconteça um milagre, o qual, racionalmente, sabemos que não virá. Mas, quem pode controlar o amor? O Figueira se esfarela, mas vive em nosso coração. 

De minha parte, tenho ódio, ódio puro, contra os ceifadores da nossa paixão.




quarta-feira, 30 de abril de 2025

Resenha: Boa Noite seu Tavares


Na página do projeto “Narrar o Alzheimer”, encontro essa generosa resenha sobre o meu livro “Boa Noite, seu Tavares” pela lavra de André Carvalho.  

“Na resenha anterior, apresentei o primeiro livro de memórias brasileiro a tratar dos cuidados de uma pessoa com demência. Hoje, trato do mais recente, "Boa noite, seu Tavares", de Elaine Tavares.

Elaine cuidou do pai, Nelson Tavares, em Florianópolis por oito anos, desde o diagnóstico de Alzheimer em 2016 até 2024, quando ele faleceu. O livro é composto de crônicas sinceras e bem-humoradas escritas ao longo desse tempo, muitas delas publicadas na comunidade virtual Anjos que Cuidam, do Facebook. Temos acesso ao dia a dia de uma filha sensível, carinhosa, firme e corajosa durante o percurso da família através das "milhares de fases" que a doença desenrola.

Elaine é jornalista e escreve muito bem. Cada crônica é sucinta, mas densa. Mistura memória afetiva, informação de saúde e reflexão política, tirando da experiência própria lições para o comum. Aliás, um dos (muitos) méritos do livro, que o destaca dentre similares, é justamente a vocação política de compreender a doença e o envelhecimento no contexto de nosso capitalismo marginal. Assim, mesmo narrando a experiência familiar e doméstica, somos lembrados a buscar as causas para tanto apuro e desamparo, da falta de preparo dos médicos à infraestrutura de transporte público da cidade.

Outro destaque é a consciência das armadilhas de quem vive e narra o cuidado. Elaine não romantiza a doença: "é uma merda". Literalmente. Por outro lado, não existe uma página em que a tragédia domine. No final dos dias mais turbulentos, seu Tavares solta uma frase que derrete nosso coração e redime a penúria da filha. Sempre vale lembrar que Sublime virou marca de papel higiênico.

Há pelo menos outras duas diferenças marcantes com obras do tipo. Primeiramente, não encontramos a tentativa de reconstruir a vida e a identidade do pai, como em biografias tradicionais. A autora aceita plenamente quem o pai é em cada momento, e suas transformações ao longo dos meses e dos anos. O ato-reflexo de voltar à integridade da identidade fixa, segura, está ausente. Em segundo lugar, não existe no livro a cena tradicional do espanto e da crise desencadeados pelo não reconhecimento. Elaine aceita que às vezes seu pai não a reconheça "como filha", mas tem plena segurança de que existe um reconhecimento mais profundo no cuidado e no carinho diários. Juntas, essas diferenças apontam para uma fluidez que narradores/cuidadores de países mais desenvolvidos — leia-se, mais calvinistas e individualistas — raramente alcançam. É na brincadeira, no afeto, no apego à convivialidade e ao improviso de um modo mais humano de existir que Elaine Tavares descobre o caminho. Aqui, o livro realmente se parece com a troca em grupos de apoio de familiares: é gente cuidando de gente.

Se tivesse que recomendar um livro para cuidadoras e cuidadores que desempenham a função 24 horas por dia, seria esse.



sexta-feira, 4 de abril de 2025

A mais-valia ideológica explodiu


Lendo um artigo de Lucas Aguillera, no sítio Nodal, me deparo com a informação de que o argentino médio passa mais de oito horas com os olhos grudados no celular e que mais de 70% da população mundial já tem acesso a esse inoportuno telefone de mão, igualmente abduzido pelo rola-tela em horas a fio. Vejo isso aqui mesmo, na minha aldeia. Há, portanto, uma extraordinária concentração da vida nestes aparelhos que combinam trabalho, vida pessoal, lazer, espiritualidade, tudo ao mesmo tempo agora, desfazendo todas as fronteiras e limites. E, se até então, o capital consumia nossa vida apenas no horário de trabalho, roubando-a a partir da mais-valia, ele agora se imiscui em todos os espaços da existência, exigindo mais e mais, como o deus Moloc.

Com o telefone na mão as pessoas não têm mais horário para o trabalho. A qualquer momento uma mensagem exige algo, 24 horas pulsando. A pessoa está no ônibus e está trabalhando, não está no cinema e está trabalhando, está no parque e está trabalhando. Há quem criou que isso é um ganho, empreendedorismo.

Mas isso não é tudo. O celular também é espaço de roubo da mais-valia ideológica, para usar um conceito de Ludovico Silva. Esse pensador venezuelano, ao estudar a televisão, viu que o trabalhador quando chegava a casa (acreditando estar no seu momento de descanso) e ligava a televisão, estava igualmente capturado pelo capital. Na telinha, entre um programa e outro, as propagandas o incentivando a comprar, comprar, comprar, eram o capital concorrente, bem como as mensagens subliminares escondidas nas novelas, entretenimento etc… Nas palavras dele: “Assim como na oficina da produção material capitalista se produz como ingrediente específico a mais-valia, assim também na oficina da produção espiritual do capitalismo se produz uma mais-valia ideológica cuja finalidade é fortalecer e enriquecer o capital ideológico do capitalismo: capital que, por sua vez, tem como especificamente protegido e protegido o material de capital”.

Pois agora, com o celular, essa produção de mais-valia ideológica é colocada na enésima potência. Daí a importância de se voltar para Ludovico. As plataformas das redes sociais mudam a cada minuto os algoritmos que tentam empanturrar as pessoas com mercadorias para comprar e ideias de jerico para defender. É um carrossel alucinado. As informações são repassadas sem qualquer contexto virando uma algaravia sem sentido e, ao final de mais de 15, 20 horas de rolagem da tela, tudo o que fica é absoluta sensação de vazio e o desejo de comprar.

As plataformas não nos pertencem, então não dá para ter a ilusão de que podemos mudar por dentro. Não dá! O que nos leva ao óbvio. O problema não são as plataformas, mas o modo como o mundo se organiza neste modo de produção. As tecnologias só ajudam a fortalecer e manter essa barbárie. É na realidade material da vida, nas ruas, na luta política, na organização coletiva que pode haver alguma chance de mudar as coisas. É certo que as pessoas estão obnubiladas (cegas), anestesiadas pela luzinha azul da tela do celular, que incutem a ideia de que isto é o perfeito.

Mas, sempre é possível desligar o aparelho e olhar para a vida mesma. Quando a gente enxerga, a proposta de mudança é a única possível. Uma única!

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O livro de Ludovico Silva, “A mais-valia ideológica”, faz parte da Coleção Pátria Grande, do IELA, Volume 3, e pode ser encontrado em www.insular.com.br

quinta-feira, 3 de abril de 2025

Do horror


Sim, sigo despertando no meio da noite, assombrado pelo horror que vem sendo cometido contra o povo palestino, todos os dias, pelo estado de Israel. Vi, ontem, que os soldados de Israel mataram, um a um, no mesmo esquema de execução, 15 paramédicos e uma equipe de resgate. Ou seja, não satisfeitos em arriscar o mundo dos palestinos, querem exterminar qualquer um que resolva ajudar. Isso não é crime de guerra. Não há guerra. O que há é genocídio. Essa gente não pode seguir impune.... E o que me tira o sono é saber que sim, seguirão impunes, e a gente nessa impotência sem tamanho... Os governos que podem mudar isso, não fazem nada.. é aterrador!

domingo, 23 de março de 2025

os perrengues



A vida da gente é esse rodopio incessante de pequenos sobressaltos. Na última semana, por exemplo, num calor de mais de 30 graus, o sistema desintegrado de ônibus me deixou na mão duas vezes. Na primeira vez, calor dos infernos, carro sem ar-condicionado, cheio até a boca, veio pela Gramal sofrivelmente, fazendo um barulho estranho. “Essa porra vai parar”, eu pensei, e os usuários se olharam cada um torcendo para que o busão fosse o mais longe possível. Não deu. Umas quatro paradas depois do Hiperbom o ônibus parou. “Tem que descer, pessoal”. Putz! Tinha quase todo o Gramal pela frente e depois ainda o caminho vicinal até em casa. Toca andar porque até chegar o ônibus reserva passaria um dia inteiro. Sol na moleira lá fui eu, suando em bicas. Obviamente cheguei a casa praguejando. Maldito Topázio. 

Na segunda vez foi dentro do mesmo terminal. Cheguei da UFSC vindo por Tirio/Titri. Ninguém na fila. Glória a Deus. Poderia ir sentado já que o horário que sairia em seguida era o Eucalipto, que leva uns 40 minutos até passar no meu ponto, depois de dar a volta em três bairros. Eu ali, bem faceira, primeira da fila. Chega o ônibus, abre a porta e eu entro, aboletando no meu banco preferido perto da porta. Os minutos passam. O ônibus enchendo. Quando dá a hora, vem o motorista. Liga o carro e nada. Só aquele barulho estranho, sem fazer a ignição. O motorista Pragaja. Liga e liga e liga, e nada. “Vai ter de descer, pessoal”. Puta merda. Desce todo mundo, sem qualquer respeito à fila e na confusão eu fico lá no final. Quando vem o carro novo, entra no mundo todo e eu fico em pé. Maldito Topázio. 

Ontem, calor da peste, desço eu no meu ponto na Gramal e venho me arrastando, ao sol, pela rua de casa, que dá quase uma milha até chegar. Lá longe avisto o “Malino” que é o nome que eu dei a um cachorrinho que vive numa casa da rua. Ele vez em quando escapa e fica deitado bem no meio da rua. É uma cruz de pincher com algum vira lata, porque é grandinho, mas tem o gênio pincher. Há que ter uma técnica para passar por ele sem ser atacado. A gente não pode fazer contato visual. Se olhar pra ele, arreganha os dentes e vem pra cima. Quando o pai ainda estava vivo era um perregue quando a gente saia porque eu dizia: não olha, pai. Pois aí mesmo que ele olhou e o malininho atacou. Pensei, vou dar a volta, mas isso significaria caminhar de volta até o final da rua e depois vir pela rua paralela, que dava mais um quilômetro. Era muita mão. Arrisquei. Ergui a cabeça como o olhar o céu e avançar. Ele deitadão bem no meio da rua. Estava tudo indo bem, eu passando, ele quieto, eu passando. Quando finalmente passei por ele arrisquei um revesgueio. Carambolas! Péssima ideia. Ele arreganhou os dentes e atacou. Lá vou eu correr do malino, me defendendo com a bolsa, enquanto ele me persegue até o portão. Desgrama! Aqui não posso dizer maldito Topázio, afinal desta o prefeito não tem culpa. Entro, esbaforida. É só mais um dia normal.

segunda-feira, 10 de fevereiro de 2025

Levando o pai



Eu tinha uma missão para meu janeiro: levar o pai para encontrar com a mãe. Isso levou a cabo um périplo, saindo de Florianópolis até o rio Ibicuí, onde faz divisão entre Itaqui e Uruguaiana, na fronteira brasileira. Ali deixamos a mãe em 2009, atendendo a um pedido dela. “Quero que eu joguem no Ibicuí”, ela dizia. A mãe encantou em 1998, mas por conta de mil coisas vividas de enterrá-la em João Pinheiro, Minas Gerais. Era um lugar que ela não gostava e eu fiquei por anos pensando na forma de fazer sua vontade. Até que em 2009 deu. Cremamos seus restos e levamos ao rio. Foi uma viagem linda, com o pai, o Renato, o Rubens e a Rose. Lá, numa única cerimônia, entregamos a mãe para o Ibicuí. Foi quando pai define igualmente sua morada final: “também quero vir pra cá”. Não foi novidade pra mim. Assim como a mãe, o pai também tinha as melhores memórias da vida na beira do velho rio. 

Assim que neste 2025, quase um ano depois da morte do pai, eu fui realizar sua vontade. Saí do Desterro no dia 15, primeiro dia das minhas férias, rumo a Navegantes aonde ia encontrar a Rose. Ela cumpriria a generosa tarefa de me levar até o rio. No dia seguinte empreendemos a jornada, dirigindo 11 horas seguidas até Ametista do Sul, onde descansamos por dois dias. Depois, foram mais sete horas até São Borja, com mais uma parada para rever amigos e lugares. Logo a frente estaria Itaqui e então o rio, onde depositaria as cinzas do seu Tavares. A ideia era ir ao mesmo lugar onde deixamos a mãe, seguindo uma estrada curtinha bem na beira da ponte, que levava ao curso do rio. Mas, para nossa surpresa, debaixo de um sol de quase 50 graus, encontramos a entrada do caminho fechado. Propriedade particular. A estrada agora era de uma mineradora e não tínhamos como chegar ao rio por ali. Resolvemos atravessar a ponte e ir para a margem já no lado de Uruguaiana, mas o rio estava seco demais e havia uma faixa de areia de quase 300 metros até chegar à água. Não tinha como andar ali, poderia haver buracos. Bateu o desespero. Tanta estrada e talvez eu tivesse de voltar com o seu Tavares.

A ponte do Ibicuí é uma velha ponte de ferro na qual só tem espaço para um carro, então é por isso que ali tem ainda um sistema bem antigo de controle, feito por pessoas. Sim, nestes tempos internos e virtuais, o controle é feito por pessoas. E foi o que nos salvou. Um cara fica do lado de Itaqui e outro do de Uruguaiana e são eles que fecham a cancela ora de um lado, ora de outro, para os carros passarem. Paramos o carro em frente à guarita e perguntamos se o rapaz sabia de alguma maneira de chegar ao rio. Eu quase choro. “Eu fiz uma promessa moço, preciso chegar ao rio”. Não havia jeito de descer por ali. Eu acho que ele logo viu o que era, embora eu tivesse vergonha de dizer que ia jogar como cinzas, com medo de ele achar ruim, sei lá. Ele então perguntou: vocês vão jogar alguma coisa? Fui obrigada a confessar. "Sim, são as cinzas do pai. Eu prometi". 

Conversa vai, conversa vem, ele então deu a ideia salvadora. “Bom, por ali pela areia não dá pra ir. O único jeito é vocês pararem na ponte e de lá vocês jogam. Eu paro a ponte deste lado, e peço para meu amigo fechar o lado de lá. Quando terminarem, sigam em frente”. Oh, meu Deus, vontade de pular no pescoço dele. Por sorte encontramos alguém capaz de entender o lance. 

Corremos para o carro para voltar pela ponte. Mas, aí, outro perrengue. A urna estava fechada com parafusos e não tinha como abrir. Mais um desespero. E, de novo, uma espécie. Rose havia levado muitas coisas para a gente comer na viagem, logo, havia utensílios. Uma faca de serrinha serviu de chave de fenda e conseguiu abrir uma urna. O sol queimando, a gente pingando suor. Não teria de ser fácil, né, seu Tavares? Por fim, reiniciamos o caminho pela ponte, no sentido de Itaqui. Andamos até o meio da ponte, onde finalmente encerrava a faixa de areia. Lá embaixo, o rio, na sua corredeira. Paramos. As duas cancelas estavam fechadas. A ponte era toda nossa. Desci, me equilibrando no minúsculo espaço de ferro. "Agora é contigo, meu velho. Vá ao encontro da mãe". Dei meu último adeus e joguei as cinzas, que se esparramaram pelo rio junto com as minhas lágrimas, afinal, foi mais uma despedida.  

Apesar de magrinho, o Ibicuí resplandecia naquela quase meio-dia. Fiquei olhando a sua caminhada macia, ouvindo o riso do pai e da mãe, nadando em largas braçadas, tal como faziam na juventude. Voltei para o carro, cruzamos a ponte, fizemos a volta, cruzamos de novo, e nos despedimos do rapazinho que havia tornado possível aquele momento bonito. E seguimos no boato de Uruguaiana, eu ainda em lágrimas, mas com o coração leve. 

Parte da minha vida ficou ali, naquele rio tão amado, que segue seu curso até o imenso rio Uruguai. Agradeço infinitamente à minha querida amiga, Roseméri Laurindo, por ter sido companheira deste triste e bonito adeus...


segunda-feira, 27 de janeiro de 2025

O pátio da Dona Noêmia




Quando eu tinha 4 e 5 anos morava numa casa de esquina na rua João Palmeiro, em São Borja. Era uma casa grande, com um quintal imenso, mas o que me atraia mesmo era o casarão que ficava em frente, na outra esquina: a casa da Dona Noêmia e do seu Aparício. Ali viviam os dois com os seus filhos, uma das quais, Maria Elena, seria aquela que me levaria para o colégio, meu inesquecível primeiro ano no Francisco de Miranda, no bairro do Passo. Tenho-a na lembrança como minha primeira mestra, ainda que não tivesse sido minha professora. Era ela quem me pegava pela mão até o ônibus que nos levaria para escola, bem longe dali. Imagino eu que minha mãe confiasse muito naquela guria para deixar que sua pequena, de apenas cinco anos, fosse estudar tão distante de casa. 

O fato é que eu aprendera a ler muito cedo, ensinada por minha irmã, que fazia seus temas num quadro verde no quintal de casa. Eu via e aprendia. Dizia a mãe que a Maria Elena, ao saber que eu já lia, insistira para que eu fosse logo para a escola e assim aconteceu. Com ela eu empreendia, todos os dias, a longa viagem de ônibus até o Passo, até hoje lugar de minhas mais doces memórias.

Por conta dessa amizade, era comum a gente estar por ali, no pátio da casa da Dona Noêmia, brincando. Era um desses lugares de encantamento, cheio de plantas e um pouco úmido, onde assomavam flores coloridas. No meio dele um enorme poço, do qual a família abastecia a casa. E no seu entorno não era raro a gente encontrar algum desses sapos enormes, acostumados a viver no meio dos musgos. Tenho marcada na memória a figura da dona Noêmia puxando o balde enquanto seu Aparício tomava chimarrão na sombra da área. 

Agora em janeiro passei por São Borja, bem rapidamente, quando fui levar as cinzas do pai. E não poderia deixar de visitar minha querida primeira mestra, Maria Elena. Para minha alegria, além de abraça-la pude encontrar, linda, lúcida e cheia de memórias, a inesquecível dona Noêmia, hoje com 99 anos. Foi um desses momentos estelares, quando a alegria se faz plena. Tomamos tererê (os termômetros marcavam mais de 40 graus) e revivemos os bons tempos, contando da vida. 

Dona Noêmia, quase completando um século, lembrava cada detalhe daqueles tempos nos quais fomos vizinhas. Foram muitas risada e uma profusão de boas recordações. Quando chamei para registrar o encontro numa foto, ela levantou, bem serelepe, e foi ao banheiro pentear o cabelo para sair bem bonita. Uma querida. Naquela tarde calorenta com a cidade ardendo sob o sol, nós três desfrutamos da frescura da amizade que não morre. Passados quase 60 anos daqueles dias na João Palmeiro, o pátio da dona Noêmia segue sendo lugar de absurda beleza. O grande casarão não existe mais, mas aquele jardim secreto continua vivo na nossa memória.



sábado, 25 de janeiro de 2025

Museu Getúlio Vargas








Dos seis aos 10 anos vivi colada na vida de Getúlio Vargas, em São Borja. Minha família morava numa casa de aluguel pertencente à Dona Dília, getulista roxa. Bem em frente ao casarão do qual ocupávamos a metade estavam os fundos da casa do filho de Getúlio, Viriato, e alguns metros à frente, a casa do próprio Getúlio. Andar por ali era caminhar na história. Foram incontáveis as vezes que brinquei nos jardins da casa do Viriato com outras crianças que eram filhas das empregadas da casa. Ao contrário da casa do Getúlio, que sempre foi um típico casarão da Banda Oriental, a casa do Viriato se destacava como uma mansoneta moderna, com um imenso pórtico de pedras. 

Neste janeiro fui à São Borja e como não poderia deixar de ser fui visitar minhas memórias. Lá estava a casa da Dona Dília, sólida e impecável, bem como a do Viriato, esta transformada agora em uma empresa. Mais dois passos e Getúlio me acolhia com uma boa cuia de chimarrão. É que hoje tem uma estátua dele, sentado num banco, em tamanho natural, bem em frente ao casarão. 

A casa que hoje abriga o museu foi construída em 1910 e para ela se mudou Getúlio no ano seguinte logo após o casamento com sua esposa Darcy. Era ali também que ele tinha seu escritório de advocacia, no qual atendia a gente de São Borja, ricos e pobres. O museu foi idealizado pelo seu filho mais velho, o Dr. Lutero, e em 1984 foi inaugurado.  Ali se pode acompanhar a trajetória política do caudilho, ver os seus objetos pessoais, móveis, livros, documentos, roupas, discos, retratos e até a máscara mortuária. Getúlio está sereno na sua expressão final. 

Aquele dia em São Borja estava especialmente calor, com a sensação térmica acima dos 40 graus, ainda assim, por conta do pé direito bem alto, a casa se mantinha fresca e a visita pode ser feita com vagar. Por conta das mudanças na política local, a professora que atendia como guia havia sido transferida para outro espaço municipal e a casa contava com apenas uma trabalhadora. Ela não sabia dar muitas explicações sobre os objetos e a vida de Getúlio, mas era visível seu carinho pelo presidente. “Ele foi o pai dos pobres”.

E assim, enquanto a cidade ardia no calor, percorremos os cômodos reverenciando aquele que muito fez pelo Rio Grande, pelo Brasil e pelos trabalhadores. Foi o presidente que abriu a porteira do capitalismo moderno, mas que, ainda assim,  mantinha firme seus ideais nacionalistas. 

Para mim, a Elaine menina, além de ele ser o pai do seu Viriato, em cuja casa nos esbaldávamos, já aparecia como uma espécie de herói visto que meu pai tinha por ele muito respeito. Naqueles dias eu pouco sabia de sua história, mas já lhe queria bem, porque meu pai dizia que ele protegia os empobrecidos. Hoje conheço sua vida e suas contradições, e continuo lhe querendo bem...

segunda-feira, 6 de janeiro de 2025

A segurança é matar


Foto: Luiz Damasceno (Ocupação lanceiros Negros – Porto Alegre) 

Circula um vídeo nas redes sociais no qual uma mulher, supostamente israelense, é entrevistada. O repórter pergunta: sabes quantos civis foram mortos em Gaza? Ela responde: são todos merda. O repórter insiste: ok, mas você não sente pelas crianças, os filhos? Ela faz uma pausa e arremata: filhos crescem para ser árabes. Ou seja, não importa. São árabes. E sendo árabes merecem o extermínio. Simples assim. Nenhum sentimento a não ser a indiferença. 

No Equador, quatro garotos negros que jogavam futebol nas ruas do seu bairro, Las Malvinas, em Guayaquil foram sequestrados por militares, sob a suspeita de que tivessem cometido um furto. Pois estes militares os levaram para o campo, próximo a uma Base Aérea, esquartejaram e tocaram fogo.  Eles permaneceram sumidos do dia 08 de dezembro até a véspera de natal, quando os restos foram encontrados. Meninos pobres, com idade entre 11 e 15 anos. Para os milicos e para a sociedade, potenciais criminosos. Logo, suas mortes podem ser encaradas com indiferença. 

Não precisamos ir mais longe. No Brasil, esse massacre contra os pobres acontece todos os dias nas periferias das grandes cidades. A cor da pele e situação financeira são elementos indissociáveis para que os indivíduos sejam vistos como suspeitos e a execução é segura. Quem não se lembra da família metralhada com mais de 80 tiros no Rio de Janeiro? E os policias saíram limpos, sem qualquer penalidade.  Na sociedade fica o sentimento de segurança, afinal, assim como para a mulher israelense, crianças pobres crescem e viram criminosas. Destino manifesto. Nenhum policial pensaria em agir assim num condomínio de luxo.

Em Florianópolis, policiais mataram um conhecido personagem da Praia da Solidão, Ernesto Schimidt Neto (o anão Betinho) que seguidamente tinha surtos de violência por conta de distúrbios psicológicos, mas sempre controlado por familiares e vizinhos. Desta vez não houve tempo. Os policias chegaram e, ao vê-lo com uma faca, dispararam mais de cinco tiros. Vários policiais contra um anão. 

E assim poderíamos seguir com os exemplos. O sistema capitalista precisa dos pobres para o seu exército de reserva. Precisa do trabalho vivo, aquele que potencialmente pode ser utilizado para gerar valor. Mas, como há muitos, ele não se importa, diante da menor suspeita, de exterminar alguns. A lógica é a mesma, em Florianópolis ou em Israel. Pessoas empobrecidas são ameaças em potencial. Pessoas acossadas pela violência, pelo desamparo, pela miséria são eternos “suspeitos” e uma bala nos cornos nunca será desperdício. Garante a segurança. 

Assim toca a banca, lá longe e aqui. E boa parte das gentes concorda que são “pequenas falhas”, “casos Isolados” e a “solução” para evitar problemas maiores. Leio os comentários que agora são possíveis neste tipo de matéria e me assusto. Cada dia mais me convenço que o que temos é uma espécie – o homo sapiens – mas que poucos deles conseguem se construir humanos. Haverá possibilidade de isso acontecer? Tenho dúvidas.