quinta-feira, 21 de setembro de 2017

Sobre os novos ricos do campo e sua direitização



Cenas do filme que conta a história de Zezé de Carmargo

Nos últimos meses muitas coisas bizarras têm acontecido. Além de tudo que advém do golpe, temos visto algumas manifestações de figuras públicas que nos fazem pensar.  Há nisso tudo uma espécie de padrão: pessoas famosas, que agora são ricas, mas que foram pobres e de origem rural. E que, paradoxalmente, professam uma ideologia que vai contra tudo o que alguém, que tenha vivido a dura realidade de ser trabalhador rural, poderia defender. Meu amigo Danilo Carneiro, que esteve na guerrilha do Araguaia e que segue estudando a realidade brasileira, diria: “Isso é natural, nega”.  E por quê? Porque as pessoas não conhecem a realidade, não estudam, se informam de maneira superficial sobre as coisas, e o capitalismo, através do seu braço armado – os meios de comunicações – bombardeia ideologia. Então, se ficam ricas, e sem mudar o padrão de conhecimento, tudo o que querem é esquecer o passado de privações, e tentar se pintar com as cores da classe para qual saltaram.

Falo isso por conta da triste postura dos cantores populares sertanejos, alguns dos quais gosto muito, como Chitãozinho e Chororó, Zezé de Camargo e outros tantos que a gente vê aí nas propagadas dos políticos de direita, defendendo a classe dominante e a consequente exploração dos trabalhadores. Muitos deles têm uma história triste, de pobreza e de grandes sacrifícios para conquistarem um “lugar ao sol”. Lugar esse que no geral significa dinheiro e fama. Raros são os que, ao enriquecerem, não renegam a classe de onde vieram. No geral, tornam-se fazendeiros, na ligação com o passado de trabalhador rural, mas possivelmente reproduzem nas suas propriedades as mesmas relações de dominação e exploração que viveram.

Marx, quando fala das classes, burguesia e proletariado, deixa claro que tem uma parcela das gentes que não se enquadra nessa divisão: são os camponeses, sejam eles ricos, remediados ou pequenos. Eles, ao contrário do trabalhador da fábrica, ainda têm o controle dos meios de produção. Tem a terra e podem dela viver.  São um estamento de difícil manejo e, no geral, pendem para a direita. Lukács, durante a revolução húngara, foi um dos que se ocupou com esse tema. Ele acreditava que era necessário um trabalho diferenciado com os camponeses, para trazê-los para o lado da revolução.  Não foi entendido. Insista que era muito difícil incutir nos camponeses – os que tinham propriedade – a consciência de classe trabalhadora. "Os pequenos proprietários agrícolas, como dizia Marx, formam uma enorme massa cujos membros vivem na mesma situação, mas sem entrar em múltiplos contatos uns com os outros. O seu modo de produção os isola uns dos outros, ao invés de criar entre eles um comércio recíproco... É assim que cada família de camponês... retira seus meios de existência mais da troca com a natureza do que com o comércio com a sociedade... Na medida em que milhões de famílias vivem nas condições econômicas de existência que separam seu modo de vida, seus interesses, sua cultura, dos das outras classes e os opõem como inimigos dessas classes, é que elas formam uma classe. E deixam de formá-la à proporção que só existe entre os pequenos proprietários agrícolas um vínculo local no qual a identidade de seus interesses não engendra nenhuma comunidade, nenhuma ligação de plano nacional e nenhuma organização política".

São questões instigantes as que nos propõe Marx e Lukács, e que nos permitem entender porque os ex-camponeses, agora fazendeiros novos ricos, como esses cantores sertanejos, vão se perfilando no bloco da classe dominante. Eles saem da condição de pequenos, dos que vivem de seus próprios meios, e adentram ao universo do “patrão”, tornam-se um deles. Passam a empregar pessoas, compram fazendas que não produzem, que são apenas uma espécie de pastiche – agora melhorado – da vida que tinham antes de enriquecer. Criam cavalos, ou gado, ou arrendam, e usam as mansões – a casa-grande – para o seu bem viver. Não vivem mais do campo, vivem da venda dos discos, dos shows, são escravos da indústria cultural. Estão colocados numa espécie de limbo, ou falso limbo. Porque, afinal, não são verdadeiramente camponeses, nem produtores. São unicamente proprietários de terra, terra que não é útil, mas que serve apenas como valor de troca, como especulação.  Nesse sentido, podem se sentir confortáveis na gaveta de “burguesia” ou “classe dominante”. Fazem parte do bloco restrito daqueles que detém propriedade.  Por isso defendem aqueles que julgam serem os seus iguais. Esquecem para sempre dos antigos parceiros de classe. “Venceram” na vida.

O mais doloroso é que muitos deles, falo dos cantores ou das duplas sertanejas, reproduzem, muitas vezes, na sua arte, as letras caipiras de raiz que justamente falam da dura vida do trabalhador do campo, seus dramas de amor, suas lutas, a necessidade da migração para a cidade, e suas saudades. Canções como “O menino da porteira”, “Cabocla Tereza”, “No rancho fundo”, “A colheita”, “O homem do campo”, “Uma casa de caboclo”, “No dia em que saí de casa”, “Tristeza do Jeca” e tantas outras que tocam o coração da gente justamente por observarem criticamente os dramas do mundo rural.

Assim, envolvidos pelo capital, eles usam as dores e as injustiças do mundo rural para transformá-las em valor de troca, enquanto a gente, que ama o campo e vive em nostalgia, apreende a música como um valor de uso, algo que aparece como vital para nossa existência, enquanto eles enriquecem e se apartam da sua condição de classe. É uma contradição.

Sim, há muitas duplas e cantores rurais que não estão no furacão da indústria cultural, que seguem cantando o campo sem perder o vínculo com sua classe. Mas, de qualquer forma, para a maioria das pessoas, é bastante difícil encontrar essas informações, visto que são bombardeadas pela indústria, que é quem, em última instância decide quem e o que toca no rádio e na televisão.

Então, resta à maioria “suportar” os novos ricos rurais, com suas calças apertadas e músculos cultivados, que entre uma música caipira de verdade, alternam outras composições de amor ou de sacanagem, ficando a música de raiz meio perdida. Mas, apenas meio perdida, porque ela é necessária para acender a memória. Por isso não foge dos repertórios. Os produtores, que vendem produtos musicais, sabem bem disso. Uso instrumental de um sentimento de amor.

Ao fim, tudo isso é pra dizer que a consciência de classe é coisa difícil de lograr, principalmente se o dinheiro entra nas vidas. E também uma tentativa de não demonizar as pessoas que não conseguem transcender, compreendendo-as no seu contexto. Não é fácil escapar dos tentáculos do capital. O fato concreto é que seguirei ouvindo algumas das canções do Zezé, do Leonardo, do Eduardo e outros, assim como leio os poemas de Borges. 


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