segunda-feira, 29 de agosto de 2016

O método que desvenda a realidade

Imagem: www.ocafezinho.com

Na última semana participei de um debate na FURB/Blumenau, na Semana de Ciências Sociais. Minha tarefa era levar para a discussão do ensino de Sociologia as ideias de Simón Rodriguez, o grande educador caraquenho que, numa América Latina ainda invadida pelas metrópoles portuguesa e espanhola, ousou dizer que se deveria ensinar às mulheres, os negros e os índios visando prepará-los para a vida na República, que já apontava. E, segundo o professor Newton Tomazzoni, que escreve uma tese sobre ele, o primeiro a defender a soberania popular.

Assim, contei da história original desse homem único e da sua luta para garantir educação de qualidade a toda a gente nesse nosso espaço geográfico, observando que o ensino de qualquer disciplina deve levar em conta os elementos levantados por ele: inclusão de todos, garantir que se aprenda a aprender, abrir espaço para a invenção, buscar não imitar a Europa, ser original.

De certa forma, ainda que Simón tenha publicado sua obra no período que vai de 1791 a 1860, sua voz transformadora tem tudo a ver com o momento que vivemos hoje no Brasil, quando o grupo que articulou o golpe de estado propõe o que chamam de “escola sem partido”, que, na prática é o impedimento do pensamento crítico de direito. Digo de direito porque, na verdade essa proposta de “escola sem partido” que chega ao ministério da Educação pelas mãos do ator Alexandre Frota, já existe na prática. No universo dos professores que atuam na escola fundamental, média e na universidade, quem trabalha - sem censura – o pensamento crítico? Imagino que ninguém.

Trago um exemplo de minha aldeia. Em Florianópolis, o professor Eduardo Perondi e mais outros dois colegas, decidiram discutir com os alunos e os pais de alunos sobre as condições precárias da escola onde ensinavam. Mostraram a situação, explicaram as razões escondidas, desvelaram as relações sociais que implicam no fato de uma escola pública, num bairro de periferia, ser como é. Depois de várias reuniões, os pais e os alunos, compreendendo que são sujeitos de direitos, decidiram não iniciar as aulas e exigiram a imediato término das obras da escola nova  - cuja construção se arrastava.  O resultado de tudo isso? Os dois colegas de Eduardo - mais antigos na profissão - receberam punições, foram suspensos, tiveram salários cortados e Eduardo, que era um professor jovem, recém-ingressado, foi exonerado. Perdeu o cargo, foi expulso. E de nada adiantou a luta dos alunos por meses a fio pedindo o retorno do jovem professor. Ou seja, venceu a escola alienante. A que não pode ensinar a pensar.

E assim, poderíamos pegar outros tantos exemplos. Como a repressão violenta que sofreram e ainda sofrem os jovens secundaristas de São Paulo, Goiás e Porto Alegre, que ocuparam suas escolas contra a tal da “reestruturação”, que nada mais é do que tirar dos meninos e meninas a possibilidade de estudar perto de suas casas, com professores que os conhecem e se importam e que, portanto, poderiam levá-los  a aprender a pensar. A tal da “escola sem partido” com a qual sonham Frota e seus parceiros golpistas é exatamente essa que está aí, a escola partida, excludente e conservadora, que não se move pelos preceitos transformadores de educadores como Simón ou Paulo Freire, nosso mestre nacional.

Então, o que essa gente quer é simplesmente tornar “legal” a censura, a perseguição, a repressão, a violência contra todos aqueles e aquelas que educam de verdade. Que são originais, que encontram caminhos em meio às trevas, que ensinam a aprender, que provocam o pensamento crítico. Na verdade, não é uma escola sem partido o que querem, mas uma escola sem cabeça, sem compromisso, sem respeito com os jovens e seus saberes.

Por isso causou-me surpresa ouvir de um integrante da plateia que a perspectiva que o debate trazia, sobre a necessidade do pensamento crítico e o desvelamento das relações sociais, fosse nada mais do que “religião” e que as ciências sociais exigem um método científico.

Ora, o método histórico/dialético é um método científico. Um método que, inclusive, muda radicalmente a história da pesquisa social. Tem rigor, tem empirismo, tem compreensão do mundo, na aparência e na essência, desvela as relações. Explica e abre portas para transformar. Não é sem razão que, como diz Lukács, as ideias de Marx são perseguidas e vilipendiadas, enquanto as de Durkheim ou Weber, não.   Os dois últimos levantam dados sobre a realidade, mas não perguntam os porquês.

Vem-me a mente a frase lapidar de Ernest Bloch, e sua obsessão pela utopia: “Aquilo que é, não pode ser verdade”. Bloch via a realidade, mas sabia que havia algo por trás, essas relações escondidas que não fazem parte de qualquer mistério.  A luta de classes na sua transcendência.

Nada tenho contra a religião, a boa religião - do re-ligare, ligar ao sagrado -  coisa com a qual conspiro. Mas, se existe algo que o método histórico/dialético não é, é religião. Afinal, ele não liga coisa alguma ao sagrado. Pelo contrário. Ele desvela o humano, o demasiado humano e suas relações sociais.  

Nesses tempos obscuros, quando ideias como a “escola sem partido” encontram eco no fundamentalismo que avança, tudo o que posso esperar é que os educadores sigam resistindo. Aqueles mesmos de sempre. Os que hoje - na escola atual - são perseguidos por abrirem portas, janelas e frestas no ensino conservador que nos domina. 


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