segunda-feira, 14 de fevereiro de 2022

Quando briguei com o pai


Tive a minha primeira grande briga com o pai em 1977. Ele havia partido para Minas Gerais e eu não o perdoava por ter nos deixado sozinhos em São Borja passando tudo o que passamos. Um ex-sócio nos acossando e tentando nos tirar tudo o que tínhamos e a vida da gente se esvaindo. Naquele mesmo ano, logo depois da partida do pai, o meu avô Dionísio morreu e eu não conseguia me conformar com tanta desgraça. Eu culpava o pai e dizia que nunca mais iria falar com ele. 

O pai fora embora para Minas Gerais porque em São Borja não havia chance alguma de conseguir um emprego. Ele já tinha passado dos 40 anos e ainda carregava a marca de ter sido “cupincha” do Jango, o presidente deposto pelo golpe. Depois que a Rádio fechou, por conta da censura do governo golpista, ele havia montado um pequeno negócio com um amigo. O negócio falira e não havia o que fazer. Para nós, foi um baque. A vida ruía e eu não me conformava que ele tivesse nos abandonado. Naqueles dias terríveis era esse o sentimento, mas na verdade ele partira para que nós pudéssemos ter um futuro.

Depois que o vô morreu vimos o oficial de justiça chegar a casa e ir levando tudo o que havia dentro dela. O ex-sócio do pai o enganara fazendo assinar um documento no qual ele entregava até nossa casa. Começamos então a nos preparar para ir para Minas. Lembro que minha mãe decidiu ir até a biblioteca pública da cidade para doar todos os nossos livros. “Pelo menos os livros ele não vai levar”, ela dizia. E para lá partiram caixas e caixas dos livros amealhados por toda uma vida. Acho que nunca chorei tanto na vida como naquele dia. Chegou um momento em que nem cama havia, dormíamos sobre nossas poucas roupas. Quando fomos para Minas, no final de janeiro de 1978, só levamos algumas mudas de roupa e a máquina de costura da mãe. Mais nada. Toda uma vida se acabava. 

Lembro que fiz a viagem certa de que ao chegar a Minas iria buscar meu caminho, pois não ia perdoar o pai. Fomos de São Borja a Porto Alegre e de lá até a estação da Luz em São Paulo. De São Paulo seguimos para Belo Horizonte, carregando nossas malas e a máquina. Chegando à capital mineira pegamos um trem para Pirapora, destino final. Lá pelo meio da viagem o vagão onde estávamos pegou fogo. Foi um furdunço e tivemos que mudar de vagão. Lá fomos nós carregando toda aquela tralha e ainda tivemos de terminar a viagem em pé, no corredor, porque não havia lugar. Foi uma odisseia. 

Lembro como se fosse hoje aquela manhã de fevereiro quando o trem parou em Pirapora. Ainda estávamos na correria de tirar as malas e a máquina de costura do vagão quando vi o pai, nos esperando na estação. Estava magrinho e pálido, com uma roupa puída, retrato acabado da dor da ausência de mais de um ano. Então, todo o rancor que eu havia alimentado naquele ano se apagou. Corremos todos para os seus braços, esquecidos de toda a dor. E tudo que eu havia ensaiado para dizer foi abandonado. A gente precisava de cuidado, mas ele também. E a gente recomeçou, agora todo mundo junto.

Esta história me veio assim porque quis o destino que o pai viesse terminar a vida aqui, comigo. Tenho cuidado dele, pego pelo Alzheimer, há seis anos. E são incontáveis as vezes que eu olho pra ele e vejo aquela imagem de homem perdido e só, que ele apresentava na plataforma da estação. E exatamente como naquele dia, eu abro os braços e o aconchego junto ao coração. A diferença é que daquele fevereiro nós  partimos para a vida, e, agora, daqui, o caminho é o fim. Não é fácil acordar todos os dias vendo meu pai desvanecer. E ali, bem pertinho, a ceifadora à espreita, me encara sem piedade.


quarta-feira, 2 de fevereiro de 2022

Sem caminhos para Gaza



Terminei de ler o livro "Sem caminhos para Gaza", de Renatho Costa (professor da Unipampa), Rodrigo Campos (documentarista) e Lucas Bonatto Diaz (músico). É um retrato sem retoques da jornada de 20 longos dias que eles viveram tentando chegar à Palestina para gravar um documentário. O destino era Gaza e eles optaram por fazer o caminho pelo Egito, já que a tentativa feita de entrar por Israel não deu resultado. A troca de emails com a embaixada de Israel beira o surreal. Não basta ao Estado sionista ter invadido o território dos palestinos e os aprisionado atrás de muros e cordões de arame farpado, também é preciso impedir que outras pessoas entrem, evitando assim que a realidade apareça sob o sol.  

A equipe então começou as tratativas com o Egito, visto que Gaza está há poucos quilômetros da fronteira. A ideia então era chegar ao Cairo e dali seguir até a fronteira e cruzar para Gaza. Todos os vistos foram providenciados com antecedência. Mas, uma coisa é o que diz a burocracia, outra o que acontece realmente quando se está em um país estrangeiro, sem falar a língua local e onde as regras mudam conforme o humor dos burocratas e militares de plantão. A odisséia dos três documentaristas é tão extraoridinária que definitivamente foi preciso que virasse livro. 

Foram 20 dias no Egito, chegando muito perto de passar para o lado palestino, mas, ao fim, não foi possível. O Egito obviamente faz parte do cordão de isolamento formado por Israel para impedir que as pessoas entrem na Palestina e tudo é feito para dificultar, ainda mais quando os visitantes têm câmeras na mão. 

A descrição de todas as peripécias para chegar à Gaza, incluindo aí até a internação hospitalar de um dos integrantes da equipe motivada por um AVC, é impactante e nos carrega sofregamente até o fim. O livro, por conta da descrição detalhada de todas as vicissitudes dos autores, vai além disso, porque consegue mostrar com profunda claridade a tragédia que é a vida dos palestinos na fronteira com o Egito, eles também impedidos de ir e vir, passando por humilhações das mais diversas. 

Sem tempo, sem dinheiro, estressados ao máximo, os três documentaristas tiveram de voltar para casa sem conseguir chegar ao destino. Mas, ao colocarem à luz todo o processo que viveram, acabam desvelando a dolorosa realidade de um povo aprisionado e bloqueado, impedido até de receber visita, o que viola todos os códigos de direitos humanos. Ainda assim, Israel segue sendo apoiado no mundo todo, inclusive sendo o maior aliado dos EUA, que vivem fazendo cruzadas de defesa dos Direitos Humanos, acusando Venezuela, Cuba, Coréia e outros que não se alinham com sua política. 

A Palestina é um campo de concentração. Ler esse livro é um soco no estômago, necessário e urgente. 

O trabalho foi editado e publicado pelo Monitor do Oriente Médio. Vale a pena ler. 

terça-feira, 1 de fevereiro de 2022

Dos horrores do capitalismo

Um homem foi queimado vivo na Beira-Mar (morada dos ricos) em Florianópolis. Estava rolando uma festa ali, mas ninguém viu. O homem era pobre e preto. A mídia diz que ele tinha passagem pela polícia, como se isso justificasse. O horror. Ele lembra que ouviu risos. Ou seja, quem ateou fogo nele, riu, achou engraçado. E foi embora, certo da impunidade. A polícia não sabe de nada, não tem imagens no local (coisa bem estranha, visto que é a região mais nobre da ilha) e chegou a pensar que ele tinha sumido do hospital, aparentemente sem se importar muito. 

Um velho morreu congelado em Paris, França, num bairro elegante.  Sentiu-se mal, caiu no chão e ninguém, absolutamente ninguém, se importou de ver o que estava acontecendo. Era uma noite fria, de inverno. Ele ficou ali caído por nove horas e a primeira pessoa que se acercou dele pra ver se estava vivo foi um morador de rua. Provavelmente as pessoas que passaram por ele acharam que era um bêbado ou um homem da rua e, isso, por si só, era uma indicação de que deveria ser deixado ali. Quando na manhã seguinte soube-se que era um fotógrafo famoso, a comoção foi grande. Teria sido se fosse só um andarilho? Com certeza não. 

Um garoto de 24 anos, pobre e preto, foi espancado, amarrado, e espancado de novo, por ter ido cobrar seu salário do dono de um quiosque no Rio de Janeiro. Se alguém viu o horror, não se manifestou. E cerca de cinco caras mataram o jovem africano porque ele ousou pedir o que lhe era direito.  

Essas são cenas de horror que acontecem praticamente todos os dias em quase todos os lugares do mundo onde impera o capitalismo. Porque neste modo de produção, no qual a exploração do outro é base, há uma completa falta de preocupação com o pobre, o caído, o oprimido, o trabalhador. Não há empatia, não há comprometimento. No geral as pessoas preferem não se envolver. Se está apanhando, alguma coisa fez! Se está aí no chão, boa coisa não é. Se foi queimado é porque estava incomodando.  É o que a maioria pensa. 

Para nós, que nos horrorizamos, é sempre importante lembrar o óbvio: as saídas não são individuais. A saída é coletiva. Para que isso não mais aconteça há que mudar a maneira como a sociedade se organiza. Por isso que a única forma de acabar com essas tragédias é a construção de um modo de vida no qual a cooperação, a solidariedade e a justiça existam de verdade. É necessário que venha o socialismo e depois o comunismo. Claro que ainda acontecerão tragédias, é do humano, mas, certamente não será algo cotidiano como é hoje no mundo capitalista. Disso eu tenho a mais absoluta certeza.

Queria que todos pudessem ter essa certeza também e, desde aí, construir esse mundo novo, a partir da revolução. Afinal, apenas chorar não resolve... 


terça-feira, 25 de janeiro de 2022

O pai é Highlander



Um dia antes do Natal o pai deu um susto daqueles. Simplesmente não acordou. Passou todo o dia 24 dormindo. Não havia nada que fizesse ele abrir os olhos. Não saiu da cama. No dia seguinte acordou, mas passou o dia inteiro dormindo no sofá. No final da tarde não aguentei, e lá fui com ele pra UPA, pra ver se algum médico dizia o que fazer. Chegando a UPA encontrei uma fila de umas 50 pessoas. “Vai demorar”, disse o atendente. Decidi não arriscar, pois havia muita gente com sintomas de Covid. Voltei pra casa. Nos dias que se seguiram consegui ajuda de uma amiga médica. Veio vê-lo. Mas, não sabia o que podia ser. Fizemos exame de urina para ver se era infecção urinária. Não era. Coração, bom. Pulmão, bom. Pressão, boa. 

O diagnóstico mais provável era do avanço da doença, o tal do Alzheimer. E, de fato. Depois daquele dia inteiro dormindo o pai perdeu a capacidade de caminhar sozinho, desequilibrando o tempo todo. Caiu da cama, quase quebrou o nariz. Também ficou mais difícil trocar a roupa, ajeitar pra dormir, passou a não conseguir mais comer sozinho, todo aquele “ficar pior”, sabido, mas nunca esperado. Um baque tão grande que me derrubou também. Fiquei doente. Não sei se foi Covid, se foi esgotamento, gripe, sei lá. Juntou a tristeza com a impotência. Desabei. 

Agora estamos aí nessa nova fase. Mais dependência e o pai mais distante, perdido em um mundo cada vez mais restrito, sem mais gracinhas. Ainda assim ele é valente. Insiste em sair andando, coisa que ama. E, ontem, para minha surpresa, conseguiu fazer todo o caminho do alpendre até o portão, sem desequilibrar. Eu deixo ele ir, embora fique do lado, para o caso de amparar. Olho pra ele e digo: tu é highlander mesmo, né quiridu? 

Eu finjo que acredito nisso. Mas, sei que não é. Vou me preparando sempre para o pior, me despedindo cada dia. É uma doença danada de ruim. Mas, enquanto der, vamos seguindo... e como dizem os hermanos “por si acaso”, protejo a cabeça.. enquanto ela não sair do pescoço, ele vive. Highlander.

O pai


Quando eu pensava que o seu Tavares não faria mais gracinhas ele mais uma vez me surpreendeu. Hoje, depois do banho da manhã ele veio pra cozinha para tomar café. Eu o trouxe até a mesa e mostrei o café já pronto. Junto, um pratinho com pãezinhos e ovo, preparados pelo Renato. Tirei o guardanapo e mostrei.

- Olha os pãezinhos, pai.

E ele erguendo os olhos para o céu e juntando as duas mãos em prece, largou um aliviado e suspirado: 

- Graaaaaaaaças a deus! 

Era como se estivesse mesmo faminto e não esperasse tamanha graça...

Esse seu Tavares... me sai com cada uma!


sexta-feira, 14 de janeiro de 2022

A batalha pela cidade


Foto: Rubens Lopes

A luta por uma cidade na qual todos possam ter o direito de morar e fruir é diária e sistemática. No caso de Florianópolis vivemos acossados pelos interesses imobiliários que, ao se apropriarem dos espaços mais próximos das praias, expulsam as famílias e constroem monstros de concreto para especulação. "Venha viver no paraíso", dizem. Mas, ainda que consigam construir moradias bonitas e com lindas vistas para o mar, não conseguem dar conta da mobilidade, do saneamento e muito menos entregar uma praia limpa. O paraíso é uma imagem borrada. Quem frequenta a praia no verão sabe muito bem: multidões, lixo, esgoto sangrando para o mar, doenças de pele.

O prefeito Gean e seus grupos de apoio, não satisfeitos com a destruição já provocada pelas sucessivas mudanças de zoneamento e por um Plano Diretor aprovado às pressas, sem levar em conta o desejo das gentes nas comunidades, quer aprofundar ainda mais o adensamento populacional, principalmente na ilha. Daí a sua pressa em aprovar, de novo, um plano alienígena, totalmente descolado daquilo que sonham e querem os moradores dos bairros. No fundo, a proposta base é justamente garantir a construção de prédios. Prédios altos, com muitos apartamentos para vender e, com certeza, de alto padrão.

No caso do Campeche, a luta popular organizada conseguiu ao longo dos anos garantir a continuidade de um bairro menos vertical e ainda que os tais condomínios tenham infestado a comunidade, pelo menos não são espigões. Mas, ainda assim tem sido quase impossível entrar e sair do bairro na temporada de verão. Há congestionamento da Pequeno Príncipe que dura horas e há também congestionamento na rua do Gramal, coisas impensáveis até ontem. Isso significa que a comunidade fica completamente impossibilitada de se mover já que há apenas duas saídas para o centro da cidade: ou pelo Rio Tavares ou dando uma baita volta pela Lagoa. Não bastasse isso, esses caminhos também ficam engarrafados durante o verão e até mesmo fora dele. É o terror. Quem tem de sair para trabalhar sabe bem o inferno que é ficar 40 ou 50 minutos só no trecho entre o Hiperbom e o trevo. 

Mas, a cidade pensada pelo Gean e sua turma não é a cidade dos trabalhadores. Ela é pensada para quem pode ficar o verão inteiro em casa, curtindo a praia, o sol, as baladas. Os trabalhadores que lutem, que saiam de casa mais cedo, estão aí pra isso mesmo: servir   ao capital. 

A nova proposta de mudança de Plano Diretor implica em mais prédios, mais andares, menos mobilidade, menos saneamento, menos água, mais lixo, tudo isso numa ilha. E o prefeito ainda queria brincar de realizar audiência pública para respaldar a proposta. Levou uma cacetada do judiciário que impediu as audiências propostas para serem feitas todas num único dia e no mesmo horário, impedindo assim a mobilização das comunidades. 

Agora o Gean terá de realizar as audiências em dias distintos e discutir com cada uma das regiões as mudanças. Claro, isso não significa vitória das comunidades porque pode acontecer como já aconteceu: os caras do IPUF vêm, apresentam o plano, fingem ouvir e vão embora sem incorporar nada do que foi discutido. Depois, os vereadores, a maioria comprometida com o projeto de Gean e dos empreiteiros, votam, aprovam e pronto. Lá se vai pelo ralo mais uma longa batalha das comunidades. 

Ainda assim isso não significa que devamos ficar de braços cruzados. A luta é necessária e a empreendemos. Depois de muito vai-e-vem e ação firme das entidades comunitárias as audiências foram suspensas. Isso dá um fôlego para que se possa informar a população sobre os absurdos que estão planejados. Não garante vitória, é certo, mas pode barrar alguma coisa. Essa queda de braço sobre o modelo de cidade é um processo sem fim. 

Faço parte do grupo que quer uma cidade aprazível, na qual se possa morar com dignidade, trabalhar e desfrutar das belezas. Não quero que Florianópolis se transforme numa "Las Vegas" tupiniquim, onde apenas os ricos desfrutam. 

É fato que a maioria dos moradores votou pela segunda vez em Gean Loureiro, e sabendo muito bem qual era o seu projeto. Muitos sonham com essa cidade de luzes, feita para ricos e carros, acreditando que aí terão oportunidades. É uma ilusão. 

Nosso papel é seguir informando e lutando. Que venham as audiências públicas e que a gente possa mostrar o que se esconde por trás das propostas mirabolantes e os discursos adocicados dos jornalista de boca-alugada da mídia comercial local. 

A cidade é o cenário da luta de classes no qual mais temos chances de intervir. Por isso não dá pra claudicar. Agora que vencemos essa etapa, há que preparar o ataque.


terça-feira, 28 de dezembro de 2021

Do que fica na memória

 


No Alzheimer a pessoa perde a memória de fatos recentes e, depois, gradativamente, do passado. Mas, ao que parece, algumas coisas ficam, como lampejos da vida vivida. O pai há muito tempo não me reconhece como filha. Ele me tem como referência, mas é porque estou sempre presente desde que ele acorda até quando dorme, ou mesmo quando desperta de noite. Ele se vira e estou ali. Ele sabe que eu sou a pessoa que ele vai encontrar o tempo todo. Mas, se eu falo com ele e chamo de pai, ele ri.

- Pai, pai, não sou teu pai.

Por outro lado, o nome ele não esquece. Se eu quero chamar sua atenção basta eu dizer: “Seu Tavares!” e ele já se apruma. Outra palavra que faz o olho dele brilhar é Uruguaiana, sua cidade do coração. Vez em quando se lembra de Quaraí, a cidade natal, mas é Uruguaiana que faz o rosto se abrir em alegria. Eu até já fiz uma lista de músicas gaúchas que trazem o nome Uruguaiana, ele escuta e diz: ó, ó. Fica como um menino.

Por enquanto também não se esqueceu de fumar. Quando a gente oferece um cigarrinho, ele escancara o riso e diz “ah, mas que coisa querida”, e fica sentadinho na sua poltrona, rindo com o Rolando Boldrin, sorvendo a fumacinha.

Seu Tavares é um fofo...