quarta-feira, 24 de novembro de 2021

Os zoínhos do pai


A hora de fazer o almoço aqui em casa é sempre uma espécie de festa. Se for o Renato quem cozinha, assim que as panelas começam a se mexer já começa também a música, no geral coisa bem boa: Paulinho Pedra Azul, Milton Nascimento, Expresso Rural, Grupo Engenho. Se for comigo a parada aí a música muda um pouco, gosto de ouvir os Fevers, Renato e seus Blue Queps ou os clássicos gaúchos. De qualquer forma, a música é de lei. O pai gosta de tudo. É fato que as que ele mais curte são as que falam de Uruguaiana. É só o cantor falar a palavra Uruguaiana e ele olha pra mim, sorrindo. 

É tempo também da tacinha de vinho que ele toma diariamente, golinho a golinho, enquanto briga com os cachorros. No geral ele fica sentado na poltrona, vigiando a gente. Qualquer barulhinho na geladeira ele espicha os zoínhos, observando se não tem algum petisco pra ele beliscar. Assim que temos de ter sempre à mão um ovinho de codorna, uma azeitona, um pedacinho de queijo. Ele marca cerrado. E se a gente estoura uma geladinha ele também quer. Fica ali, como se fosse o Vigilante Rodoviário, até que a última boca do fogão se apague. E, se descuidamos, ele mete a mão no pirex onde colocamos os legumes e manda bala. 

Quando tudo fica finalmente pronto ele senta e come como um rei. O apetite é perfeito. Encerrado o almoço, tem de ter um docinho e o cigarrinho pra pitar. Só depois dessa jornada ele senta no alpendre e tira um cochilo. Coisa rápida, os olhinhos cerrados, até que qualquer possível barulhinho suspeito na cozinha o desperte, à postos para novas comilanças. 

quarta-feira, 10 de novembro de 2021

Sobre quem me fez amar Florianópolis


 

Quando cheguei em Florianópolis passei muito perrengue. Não achava emprego em lugar algum, pois estava numa lista de "indesejados" que a RBS distribuia nos veículos. Trabalhei por uns seis anos nessa rede no Rio Grande do Sul e sempre estive vinculada ao Sindicato dos Radialistas, promovendo lutas , reivindicando etc.. Então, quando finalmente saí da RBT TV Passo Fundo para vir cursar o Curso de Jornalismo aqui na capital catarinense, imagino que foi uma festa para eles. Quem me contou isso foi o querido Ariel Botaro, que na época era diretor de jornalismo da RBS aqui. Ele falou que a ordem era não me contratar de jeito algum. Assim se fecharam as portas tanto na RBS quanto nas outras emissoras. Passei pelo menos um ano sem trabalho na imprensa e só consegui sobreviver graças a ajuda de amigos, alguns frilas, e a força que me deu minha amiga Lucimar Lara, que acabou vendendo as poucas coisinhas que eu tinha deixado em Passo Fundo, o que rendeu algum dinheiro. Além disso penhorei dois aneis de ouro que tinha ganhado da minha tia Terezinha pelos meus 15 anos.  Com isso, e com o RU, consegui me virar.

Lembro que aqueles dias eram de profunda frustração. Eu tinha de me concentrar nos estudos, e ao mesmo tempo fazer malabarismos para sobreviver. Foi duro. E, naquele período, o que me dava forças para seguir em frente no meu sonho de fazer faculdade era o escritor Flávio José Cardozo, que eu lia no Diário Catarinense. Ele tinha uma coluna diária de crônicas. Eram textos tão lindos que me enchiam de esperança. Eu queria ser como ele, ser capaz de narrar a vida com aquela delicadeza. Suas crônicas sobre a cidade iam também me fazendo amar esse lugar, tamanha a beleza que ele fazia brotar no seu texto. 

Eu morava numa pensão perto da UFSC e todas as manhãs eu levantava cedinho e ia direto para a BU ler a crônica do Flávio antes das aulas. Eu sabia que aquela maravilha que ele criava iria me ajudar a permanecer firme no meu propósito. E assim foi. Passei o primeiro ano, o segundo, consegui emprego, fui me virando e finalmente terminei a faculdade. Fui sua leitora fiel até o último dia dele no DC. Depois comprei seus livros para que eles ficassem sempre na minha cabeceira e quando eu fraquejava, lá ia eu buscar sua esccrita para me animar. Ainda faço isso, sempre.

Nunca o conheci pessoalmente, mas eu o amo com tanta profundidade que é como se fosse um irmão, ou um pai, ou um amigo. Ele é o responsável direto por eu ter ficado aqui e ter me apaixonado por essa cidade. Por isso, hoje, quando escrevo sobre Florianópolis, essa minha Miembipe, eu procuro chegar pelo menos perto da beleza criada por Flávio. Não chego, eu sei, mas ele é meu sul. Serei sempre grata a ele por abrir esses caminhos para a alma secreta desse lugar. Te amo para sempre, Flávio Cardozo, e te reverencio... És grandiosos..um dos maiores da nossa literatura nacional... obrigada.



domingo, 7 de novembro de 2021

O pai


 

O Alzheimer é doença triste, porque, ao fim, não tem cura. Não tem um remédio, nem terapia, nada. Tudo é paliativo e a sentença é cruel: as coisas só vão piorar. Então, cada fase que a pessoa vive nunca é o pior da coisa. O pior sempre está por vir. Penso que isso é o que é mais duro de aceitar. Até porque não somos um tanque de guerra e, vez em quando, fraquejamos. Há que dispender muita energia para se manter firme, alegre e propositiva. Momentos há que tudo o que queremos é desabar. Mas não dá. E esse movimento de se manter de pé, exige.

Mas apesar de tudo isso, há também os momentos de puro encantamento que, penso eu, são os que ficarão na memória, lembrados sempre com ternura infinita. Emociona-me demais o nível de confiança que o pai põe em mim. Ele simplesmente se entrega, sem receio algum. Ele simplesmente sabe que de mim não virá nada de ruim, só de bom. E mesmo quando ele fica irascível, como na hora de trocar de roupa, ele sabe. 

Todas as noites é o mesmo ritual. Tenho de fazer mil e uma peripécias para levá-lo para o quarto na hora rotineira. Assistimos ao jornal, à novela, e depois, caminha. Lá, tenho de deixar ele se ambientar. Ele anda pelo quarto, mexe em tudo que há, revira cama, o diabo. Depois vem a hora de trocar a roupa e colocar a fralda limpa. Aí há que se agarrar com todos os santos. Eu distraio ele o mais que posso e quando ele finalmente decide sentar, eu tenho que puxar, num movimento rápido, a calça, porque ele se recusa a tirar.  Aí ele senta, mas fica xingando até a minha última geração. Briga, reclama, manda alguns tapas — dos quais me esquivo como uma ninja — e chora de mentirinha, pra me compadecer. Eu vou deixando ele fazer tudo isso ao mesmo tempo que, conversando, tiro a calça, a fralda suja e a sandália. Ponho a fralda limpa e preparo para a segunda parte que é fazê-lo levantar, para realizar a limpeza das partes.  Aí valei-me, São Pancrácio! É a terceira grande guerra mundial. Feito tudo, ele se acalma. Eu beijo sua carinha sapeca e digo:

- Pai, tu sabes que eu faço tudo isso porque eu te amo, né?

E ele, com cara de surpresa.

- Mas é claro que eu sei, ora bolas...


sexta-feira, 29 de outubro de 2021

Pezinho



Hoje do nada, acordei em lágrimas. Não tinha lembrança de sonho, nada. Só aquela sensação de profunda e desesperada tristeza. Ouvi ao longe o miado da Juanita e então soube o porquê daquele sentimento. Meu Pezinho encantou. Não voltará mais. Pezinho é meu gato, que compartilhava a vida com a gente desde há 12 anos. Nasceu da Bartolina, cinza, com as patinhas brancas, daí seu nome: Pé de Pano, vulgo Pezinho. Ele sobreviveu a muitas aventuras, como a perda do rabo, várias infecções urinárias, internações hospitalares e lutas com o cachorro do vizinho. Era gato rueiro, sempre dando suas voltinhas, mas seu porto seguro era aqui. 

Quando o Fabricio, menino vizinho, me entregou sua cachorra Mel, com quatro filhos, ele não gostou muito e começou a se afastar. Ainda assim quando a Chiquinha – filha da Mel - ficou paralisada, ele ficava ao seu lado, pesaroso. Depois que ela morreu, Pezinho decidiu buscar outra casa. Então, vivia na casa de um vizinho da frente, mas vinha fazer as refeições aqui. De manhã, lá pelas dez horas, já se ouvia o seu miado incessante, dizendo: cheguei, corre lá botar a ração. Comia e se esparramava na mesa, dormindo tranquilo. Ficava até o final da tarde, comia de novo e se mandava. Dormia na outra casa. Vez em quando concedia a sua presença, miando alto na porta do quarto do Renato, pedindo para entrar. Enfim, era um gato, soberano e majestoso gato. 

Aceitava abraços e beijos como se fosse um deus e lá de vez em quando, sem alarde, subia no colo da gente, dormindo, tranquilo, enquanto ficávamos paralisados para não incomodar. Pois já faz algumas semanas que ele não aparece mais. Na primeira, pensei: Pezinho tá demorando, mas já vem. E ficava esperando pelo seu miado urgente. Todas as manhãs espiando a rua e nada. Tudo bem, ele já havia ficado duas semanas sem aparecer e depois surgira, impecável. 

Esta manhã percebi que já se passaram quatro semanas. Ele não vai voltar. Deve ter encantado, virado poeira cósmica. Foi-se no silêncio, sem alarde, sem adeus. A casa fica mais triste sem ele e eu só posso mesmo chorar. Sei que ele está no céu dos gatos deitado em alguma almofada quentinha, entreabrindo levemente os olhos enquanto eu choro, e pensando, com um muxoxo: humanos, tão sentimentais. Gracias, Pezinho, por tantos anos de presença... Bem-vindo a casa da beleza.

sexta-feira, 15 de outubro de 2021

Devagar, lá se vai a cidade



Passo pela via expressa sul todos os dias em direção ao trabalho. Não gosto daquela via rápida, que nos impede de ver. Sempre preferi a Costeira, com seu velho cais, com a visão das moradas e as figuras dos personagens diários que assomam: o velhinho limpando a calçada, o papai-noel, a senhora à janela, os cachorros. A cidade descortinada no seu existir humano. Mas, o busão vai na Expressa e tudo o que posso fazer é olhar o vazio que se forma em volta. Não é de hoje que eu digo ao meu companheiro: “não vai demorar e estão vendendo tudo isso aqui, como fizeram na beira-mar”. Digo isso com profunda tristeza porque o que pode se erguer ali são prédios de alto padrão. A vista para o mar outra vez retirada das gentes comuns. 

Pois a semana passada li o veredito que me assombrava: o vazio artificial criado pelo aterro da expressa sul vai ser vendido. O prefeito Gean fala em “revitalização”, palavra bonita que significa entrega do que é público para a iniciativa privada. E a proposta é incluir o vazio do aterro num tal de programa pioneiro do governo federal – provavelmente um desastre - que busca vender as terras da União que consideram “subutilizadas”. A venda será feita por intermédio de um fundo imobiliário, coisa que cheira mal. A proposta vem da Secretaria Especial de Desestatização, Desinvestimento e Mercados do Ministério da Economia e, considerando que o governo federal está aí para destruir tudo, já se pode prever a desgraça.

As bocas-alugadas da imprensa já começaram a campanha em favor da proposta, alegando que a Expressa Sul precisa ser melhorada. Os vereadores – na sua maioria  - já se preparam para as mudanças no zoneamento e tudo o que isso traz, como o esfacelamento do Plano Diretor. Em março desse ano a mesma Câmara aprovou um total de 100 milhões de reais para a prefeitura usar em obras de infraestrutura na via, claramente ajeitando o espaço para entregar ele mais bonitinho para os empresários. A cidade ficará encalacrada com o empréstimo. E quando se diz cidade, diz-se nós, os moradores. Ficaremos com o ônus e ainda perderemos o patrimônio público. Obviamente que ninguém fala em parques ou espaços de lazer para as comunidades do entorno – a maioria suspensa nas encostas onde quase nada existe para a brincadeira e a fruição. Não. As vendas certamente serão para grandes empreendimentos imobiliários ou de eventos, afinal, para essa gente que governa, os empobrecidos tem mais é que trabalhar e dormir. Lazer é pra quem pode e afinal, tem a praia. 

O que me espanta é que tudo isso vai acontecendo sem reação. Nas redes sociais criam-se grupos que lembram uma Florianópolis de ontem, mas poucos se preocupam com a de hoje, que segue se transformando sob nossos olhos atônitos. Sei que as mudanças são inexoráveis, mas elas não precisam ser para pior. Há milhares de exemplos de cidades que conseguem mudar sem perder sua essência. 

E aqui? Que faremos? Só nos restarão as lágrimas?

***

Deixo aqui a imagem que plasmei na retina quando as dragas começaram a estender a costeira. Um profundo momento de dor: 

Assisti ontem uma triste cerimônia de adeus. Parei em frente a grande obra da Via Expressa Sul com os olhos perdidos na areia branca, que aos poucos vai nos roubando o mar. Tinha dentro do peito uma certa angústia, destas que batem, inexoráveis. Não sou engenheira ambiental, ainda não sei detalhes sobre a obra, mas uma coisa eu sei. É como se estivessem assassinando a beleza. Algo soa mal ali, principalmente no pôr-do-sol.

Refletia sobre isso e mastigava minhas mágoas quando meus olhos bateram num homem, distante de mim alguns metros. Ele também olhava a obra. Tinha o rosto vincado de sol e de mar, destes rostos que não se pode adivinhar a idade, só a profissão. Era um homem do mar, um pescador. Ficou parado por uns minutos eternos, petrificado diante da areia branca. Depois, lentamente, caminhou em direção da lama preta, velha conhecida, que fica próxima aos ranchos de pesca já em demolição.

Então começou a cerimônia. Arremangou até os joelhos as velhas calças de um tergal gris, bem desbotado. Tirou os chinelos de borracha e foi entrando na lama, pisando devagar, quase em reverência. Com os pés enterrados na sujeira do mar ele foi caminhando pra lá e pra cá. Os olhos baixos, olhando o chão, se despediam. Depois, o pescador caminhou em direção à água, já distante. 

Quando seus pés encontraram o salgado do mar ele parou e volveu os olhos para a grande draga que continuava seu trabalho, jogando areia branca, engolindo a água que por muito tempo, com certeza, embalara o seu barco. Ficou ali parado, olhando fixo, parecendo fazer força para acreditar que aquilo tudo não era um sonho. Então voltou pelo mesmo caminho, os pés enterrados na lama, os olhos de novo no chão. Chegou ao meio fio e sentou sem pressa. Foi quando eu vi. Lágrimas corriam fininhas pelo meio das rugas de sol e mar.

Era um homem dizendo adeus a um mar que foi seu abrigo por décadas. Um pescador chorando esses choros sem barulho, por isso mais dolorosos. Olhei de novo para a obra da Expressa Sul e já comungando da mesma dor com aquele homem, pensei: Qual é o preço do progresso? Do conforto? Se forem as lágrimas daquele homem, não sei se vale a pena. Não tive coragem de lhe falar e fui embora com um indelével sentimento de culpa. Quando o ônibus no qual eu ia passou pelo homem, ele continuava ali, sentado no meio fio, os pés sujos de lama e o rosto crispado de dor.

20.09.96

quarta-feira, 29 de setembro de 2021

Mil noites no Brasil


Faça o que fizer nada vai impedir que o país sangre até o final deste mandato. Negacionismo, descaso, perversidade. O governo em tela passou por uma pandemia dizendo que era uma gripezinha. Não preparou o combate. Milhares morreram por isso. Não havia leitos, nem oxigênio, nem remédios, nem respiradores. Na Amazônia e no pantanal, a vida ardia em labaredas criminosas, abrindo caminho para o latifúndio jagunço. E quando a vacina chegou, o mandatário foi à televisão e às redes sociais dizer que não era para tomar, porque as pessoas iriam virar jacaré. Para os que queriam a vacina restou a espera e a confusão. Sem um sistema eficiente de compra e distribuição, cada estado teve de se virar como pode. 

A produção de remédios, que sempre foi ponta de lança no país, vai minguando. O governo federal retirou a verba. Danem-se os doentes de doenças graves que dependem do público. Não há mais produção de remédio para o câncer, por exemplo. Milhares de pessoas foram entregues à própria sorte. Que paguem aos laboratórios privados, na farmácia, se puderem. Se não puderem, bem, morrer faz parte. Testes de Covid, vacinas e remédios de toda ordem mofam nos depósitos, trazendo prejuízo de milhões aos cofres públicos. Responsabilidade de quem? De ninguém. Ou quem sabe de algum funcionário de décimo escalão. 

Ministro da Saúde vai à televisão dizer que não é pra vacinar adolescentes, que “estudos” dizem que não é seguro. Todas as entidades de saúde do país desmentem o ministro e os governadores decidem seguir com a vacinação. Dias depois o mesmo ministro viaja com a comitiva presidencial para a ONU e infecta deus e o mundo, com Covid. Fica de quarentena em Nova Iorque, enquanto o interino aqui volta atrás e diz que pode vacinar os adolescentes, sim. É um deus nos acuda, um caos sem fim. As pessoas ficam perdidas sem saber em quem acreditar. O presidente segue dizendo que não é pra vacinar, mas a primeira-dama se vacina em Nova Iorque. De certo acredita que a vacina nos EUA é mais vacina que aqui. Aqui, o Instituto Butantã continua sendo atacado e vilipendiado. É brasileiro, é público. 

Os preços do gás, da gasolina e da comida dispararam. A culpa de tudo foi repassada aos governadores, os vilões da hora. Tudo de ruim é coisa do governador e o que pode haver de bom, se é que há, o governo federal é o responsável. 

A fome volta a assombrar o país e as mortes seguem em disparada. Já vamos chegar aos 600 mil óbitos, só de Covid, sem contabilizar as demais mortes que sobram com o descaso. Muita gente não quer se vacinar, seguindo o mito, impedindo assim a imunidade coletiva.

Na CPI da Covid, levada pela Câmara dos Deputados, os horrores se acumulam. Provas e mais provas da sistemática política de morte não provocam qualquer efeito. Os depoentes falam, contam os crimes e saem lépidos e soltos. Há os que nada dizem, mas as provas falam. E, ontem, o depoimento da advogada dos médicos do plano de saúde (?)  Prevent Senior escancara mais um trem dos horrores. Velhos sendo usados como cobaias do tratamento precoce, com remédios inúteis, sendo privados do oxigênio, para não gastar. E sem consentimento. 

Nas comunidades empobrecidas a força policial segue matando gente negra. Os indígenas são assassinados à luz do sol, não há emprego, as universidades amargam cortes de orçamento e o presidente diz que “há professores demais”. Ainda assim, tudo parece seguir normal na Gottam City. Batman morreu de Covid. 

Toda essa montanha russa de terror deveria levar as gentes ao protesto, à luta. Mas, não. As movimentações populares ainda são poucas e esporádicas. Os apoiadores da morte saíram às ruas no dia sete de setembro saudando o mito. Os trabalhadores estão prometendo um ato bem grande agora, no dia 02 de outubro. Mas, ainda assim, ao que parece, seguiremos sangrando até 2023, quando finalmente terminar esse governo. Os partidos políticos, liberais de esquerda, apostam nas eleições de 2022, e esperam por elas, ainda que ao redor se queimem as vidas das gentes, clamando por socorro. 

Enquanto isso, o ministro da Economia, intocável, segue fazendo suas trapalhadas de morte, elevando as taxas de juros, com o dólar a quase seis reais e passando as pautas meninas dos olhos da classe dominante, como a reforma tributária e o fim do serviço público. Tudo com o apoio da maioria do Congresso Nacional, cujos legisladores, saltitantes, aprovam sem pejo as propostas. 

É inacreditável que tenham se passado mil dias, mil noites... Inacreditável que tenhamos tolerado isso. 

No mundo das histórias de fada, quando se fala em mil e uma noites está se querendo dizer para sempre. No Brasil, passaram-se mil noites, passarão mil e uma? 


terça-feira, 28 de setembro de 2021

As aprontações do pai



Nos últimos tempos o pai tem dormido bem pela manhã. Dá uma acordada lá pelas seis, quando eu levanto, mas logo volta a dormir. Só quando tenho algo importante pra fazer é que ele resolve acordar cedo, comigo. Parece que ele adivinha. Eu não digo nada, mas é só pintar algo que exija minha mais profunda atenção e lá está ele. Hoje foi assim. Tinha o compromisso de fechar um texto e deixei para a manhã, que é quando estou mais focada. Pois nem deu seis horas e ele já estava de pé, mexendo em tudo pelo quarto. Tentei fazê-lo voltar a dormir, mas não deu resultado. Vencida, tratei de deixar pra lá o trabalho e começar as tratativas do levantar. Conversinha, banho, conversinha, colocar a fralda, conversinha, vestir, conversinha, levar para o café. Depois, o café. Uma boa novela. 

Lá pelas oito e meia as coisas estavam acalmadas. Dei um cigarro e comecei a ajeitar o cenário para começar a trabalhar. Ele, como sempre, inquieto, andando pra lá e pra cá, numa briga com o cachorro. Ele levanta da poltrona, o cachorro sobe. Aí ele quer voltar e o cachorro não deixa.  Um roteiro repetido milhares de vezes. 

Por fim, começou com o vai e vem até o portão. Eu na mesa da cozinha, escrevendo, mas com um olho vigiando a caminhada através da janela. Ficou assim um tempo, então parou do lado do varal de roupas que eu havia colocado ao sol. Segui escrevendo, observando pelo rabo do olho que ele estava ali, bem em frente à janela, mexendo nos grampos de roupa. Segui entretida até que notei que ele estava muito paradinho, quieto demais, parecia nem estar mais mexendo com os grampos, mas seguia ali, ao lado do varal. Continuei meu texto.

Então, deu aquele estalo. Quietinho demais. Eu continuava vendo ele da janela, mas estava muito parado. Levantei correndo e fui lá fora ver o que passava. Pois ele estava ali mesmo, paradinho, com a mão segurando firme no varal, mas completamente adormecido, quase ressonava. O danado dormia em pé. Levei um baita susto, porque poderia ter caído. Acordei o querido e ainda levei um baita esporro. Brabo, não queria soltar o varal. Mais uma novela para sair dali. 

- Tu tá dormindo, pai.

- Tô dormindo nada.

Toca pra dentro para ver se senta na poltrona e sossega. Já são 10 horas. Então ele senta e imediatamente volta a dormir. O cachorro senta aos seus pés e também dorme. Assim vão os dois, parceiros no mundo dos sonhos, enquanto eu finalmente consigo escrever alguma coisinha.