domingo, 7 de novembro de 2021

O pai


 

O Alzheimer é doença triste, porque, ao fim, não tem cura. Não tem um remédio, nem terapia, nada. Tudo é paliativo e a sentença é cruel: as coisas só vão piorar. Então, cada fase que a pessoa vive nunca é o pior da coisa. O pior sempre está por vir. Penso que isso é o que é mais duro de aceitar. Até porque não somos um tanque de guerra e, vez em quando, fraquejamos. Há que dispender muita energia para se manter firme, alegre e propositiva. Momentos há que tudo o que queremos é desabar. Mas não dá. E esse movimento de se manter de pé, exige.

Mas apesar de tudo isso, há também os momentos de puro encantamento que, penso eu, são os que ficarão na memória, lembrados sempre com ternura infinita. Emociona-me demais o nível de confiança que o pai põe em mim. Ele simplesmente se entrega, sem receio algum. Ele simplesmente sabe que de mim não virá nada de ruim, só de bom. E mesmo quando ele fica irascível, como na hora de trocar de roupa, ele sabe. 

Todas as noites é o mesmo ritual. Tenho de fazer mil e uma peripécias para levá-lo para o quarto na hora rotineira. Assistimos ao jornal, à novela, e depois, caminha. Lá, tenho de deixar ele se ambientar. Ele anda pelo quarto, mexe em tudo que há, revira cama, o diabo. Depois vem a hora de trocar a roupa e colocar a fralda limpa. Aí há que se agarrar com todos os santos. Eu distraio ele o mais que posso e quando ele finalmente decide sentar, eu tenho que puxar, num movimento rápido, a calça, porque ele se recusa a tirar.  Aí ele senta, mas fica xingando até a minha última geração. Briga, reclama, manda alguns tapas — dos quais me esquivo como uma ninja — e chora de mentirinha, pra me compadecer. Eu vou deixando ele fazer tudo isso ao mesmo tempo que, conversando, tiro a calça, a fralda suja e a sandália. Ponho a fralda limpa e preparo para a segunda parte que é fazê-lo levantar, para realizar a limpeza das partes.  Aí valei-me, São Pancrácio! É a terceira grande guerra mundial. Feito tudo, ele se acalma. Eu beijo sua carinha sapeca e digo:

- Pai, tu sabes que eu faço tudo isso porque eu te amo, né?

E ele, com cara de surpresa.

- Mas é claro que eu sei, ora bolas...


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