terça-feira, 25 de maio de 2021

O Brasil e os dias



É outono no Brasil. Os dias de maio são luminosos. Mas, para a maior parte da população os tempos são sombrios. A pandemia, que chegou em março de 2020, segue seu caminho de morte, sem parada, e sem que o governo federal invista em políticas de prevenção. Avançamos para 500 mil mortes em ritmo acelerado, e não há previsão de alteração no quadro de perdas e dor. Pelo contrário. O presidente da nação segue apostando alto no contágio de rebanho e faz ele mesmo a sua parte, circulando, aglomerando, sem máscaras ou cuidados. E, atrás dele, segue o bonde da negação e da ignorância.

O Congresso Nacional, depois de mais de um ano de omissão, decidiu instalar uma CPI para investigar se há ou não responsabilidade do governo na disseminação acelerada da doença. Passaram por lá os três últimos ministros da sáude, todos eles revelando o que o país inteiro já sabia. O governo não se preocupou em proteger a população, o governo incentivou o não uso de máscaras, incentivou o tratamento precoce com remédios inúteis para a Covid, não atuou para resolver a falta de oxigênio em Manaus – quando morreram centenas de pessoa, sem ar - e não está preocupado com a vacinação. Nenhuma novidade, portanto. 

Mas, apesar de tudo isso, mesmo com os depoimentos e as provas, nada acontece e ao que parece nada acontecerá. Isso porque a escolha governamental tem sido muito boa tanto para os cofres públicos quanto para os negócios da pequena fatia dos brasileiros que conforma a elite local. Os idosos – considerados como peso para a previdência – são os que mais morreram, somando mais de 70% das mortes, e esse dado foi comemorado pela Superintendência de Seguros Privados, pois diminuiria o chamado rombo das contas da previdência. Segundo a Fundação Getúlio Vargas, a morte dos velhos retirou cerca de cinco bilhões de reais da renda potencial das famílias, muitas delas tendo nos aposentados a única fonte de renda. Isso significa um número considerável de gente sendo jogada para a miséria. 

Para os empresários esses números são considerados bons também porque aumenta o exército de reserva e eles podem barganhar ainda mais os salários, exigindo mais dos seus trabalhadores e pagando menos. É um momento propício para aumentar os lucros.

Não bastasse isso, enquanto o país se distrai com os depoimentos da CPI gerando memes nas redes sociais, a casa legislativa segue arrochando ainda mais a vida dos brasileiros, seja votando leis que tiram cada vez mais direitos ou entregando a preço de banana o patrimônio nacional. A última agora foi a aprovação para a venda da Eletrobras, empresa brasileira de geração de energia elétrica. A historinha é a mesma de sempre: tem muita dívida, e empresa dá prejuízo, a conta da luz vai baixar. Ora, uma empresa estatal – a quinta maior do mundo - que cuida de um setor estratégico como o da energia não é uma empresa para dar lucro e sim para servir a nação. Qual empresa privada vai investir e adentrar no interior do país para atender as necessidades de pequenos consumidores? Nenhuma. 

Outro golpe que corre célere no congresso é a tal da reforma administrativa do ministro Guedes, que prevê acabar com o serviço público no país. É um desmonte total do estado, cujas consequências não são divulgadas para a população visto que a mídia comercial é totalmente cúmplice do projeto ultraliberal do governo Bolsonaro. 

Não vou nem falar nos inúmeros casos de corrupção envolvendo a família do presidente que, apesar de todas as evidências e provas concretas, não comove o judiciário brasileiro, igualmente cúmplice dessa tragédia nacional que vivenciamos. E, se está tudo bem para a classe dominante, dane-se o populacho. Essa é a tônica. 

Já vamos entrar no sexto mês do segundo ano da pandemia e por aqui menos de 10% da população está vacinada. Não há indícios de que as coisas possam melhorar, bem como não há indícios de que haja uma reação massiva. Num país onde a Covid-19 só avança, o medo ainda é o nosso maior inimigo. Porque além de não haver vacinas, não há também qualquer garantia de que haverá hospitais, leitos de UTI ou oxigênio para os infectados. É o cenário perfeito para a classe dominante – que se vacina nos EUA – avançar sobre os direitos dos trabalhadores e saquear a nação. 

Nesses tristes dias, nem deus é por nós! 



A rua dos Andradas em São Borja







Mudamos para a rua dos Andradas, em São Borja, no ano de 1970. Em 1969 ainda vivíamos numa casa alugada, bem em frente à casa do filho do Getúlio Vargas, ao lado da Dona Dília e do Dr. Hildebrando. Lembro que nessa casa era bem comum brincarmos no carramanchão do dr. Hildebrando, com a filha da empregada dele, a Dona Tereza, e por vezes também circulávamos na casa do Viriato, entrando pelo portão dos fundos. Mas, foi na rua dos Andradas que vivemos os melhores dias porque ali estava a nossa casa própria, construída durante quase um ano inteiro. Quando nos mudamos acreditávamos que seria para sempre. Não foi assim.

A casa era ladeada por duas vizinhanças maravilhosas. De um lado a família Savian e do outro a Rodrigues. Cada uma delas acabou se transformando em família também porque a vida ali era vivida em comunhão. Na frente tinha a casa do Miro, da Dona Gersey e da dona Nezinha. Mais à esquerda o seu Ciro e na parte de trás do terreno divisámos com a dona Alda. Havia muita criança. Era um mundaréu. E também era comum andarmos todos circulando e correndo por dentro das casas como se nossas fossem. Não havia barreiras. Brincávamos de mocinho e bandido nas cascas de arroz, de pique-esconde pelas casas todas, de Tarzan, pendurados nos cinamomos da casa do Miro e nas noites ocupávamos a rua inteira em brincadeiras de todo o tipo, enquanto as famílias sentavam em frente às casas, enfeitando as calçadas. Nas noites de invernos íamos ouvir casos de assombração na casa do seu Ciro, com sessões comandadas pela Gorda, apelido da Fátima. Ficava a turma toda espremida na sala e depois, saíamos em algaravia, tudo abraçado, com medo de ver os espíritos. 

Era comum a minha irmã pular a janela para sair à noite com as gurias do seu Savian e apesar de acharem que estavam saindo às escondidas, a dona Nezinha sempre estava à espreita na sua janela, atrás das cortinas de crochê, e sabia de todas as escapulidas, fossem a hora que fossem. Era incrível. Sabia de todos os acontecimentos, de todas as casas, embora pouco fosse  vista. 

Entre a gurizada havia, na verdade, três gerações. Os jovens, da idade de minha irmã, os menores, como eu, e os mais criança ainda, como meu irmão. Mas, no geral, nossas atividades se misturavam porque em cada família tinha gente pertencente aos três grupos. E ainda tinha gente que vinha de mais longe como era o caso do Tiririca, que passava por ali sempre puxando sua vaca leiteira. Tinha-lhe tanto apreço que pintou seu nome na vaca, para evitar roubo. Não lhe conhecíamos a família, mas ele era um dos nossos, participando de todas as brincadeiras. Também tinha o Timóteo, que vinha pedir comida, e acabava ficando para brincar e o Juarez, que morava na rua transversal. Fazia parte do cenário também o Newton, um cara a quem chamavam de “louco” porque ele vinha xingar o seu Ciro todos os dias, gritando-lhe impropérios, indo depois pedir comida nas casas. Todos o amavam. 

Nas noites de verão, a rua de terra vermelha se alegrava inteira, com a multidão de gente, crianças e bichos nas rodas de chimarrão e de traquinagens. Brincávamos de Diabo-Rengo, Batatinha Frita, Sapata (amarelinha), Pique-Esconde, Passa o anel, Escolher Fita. Lembro que havia um homem, que morava quase no final da rua, numa casa bem simples, a quem atribuíam o fato de ser lobisomem. Ele era magrinho e sempre usava chapéu, com um bigode estilo Fernando Pessoa. Quando ele apontava na esquina do Bar da Zezé, a gente saía tudo correndo, se escondendo em casa. Estar ali fora era como possuir o mundo. 

Na esquina tinha o armazém da Dona Zezé, onde se comprava de tudo. Não havia isso de supermercado. Ela era uma mulher adorável, penteava o cabelo à moda antiga, armado de laquê. E ficava furiosa quando batíamos na janela, no horário do meio-dia, querendo comprar picolé. Ainda assim ela abria e trazia os picolés, não sem xingar à larga. E caso se precisasse de qualquer coisa, mesmo à noite, era só bater, que lá vinha ela no passo manso. O marido dela, um argentino chamado Pepino, era uma figuraça e estava sempre de bom humor, contrabandeando balas junto com o troco. 

Minha irmã, quatro anos mais velha que eu andava com a turma das gurias do seu Savian. Eu, com as gurias do seu Jesus e da dona Cira, sendo que a Liziane era minha melhor amiga. Com ela compartilhava os segredos e os dias. E ali A Negra e a Gordinha eram menores, mas acabavam sempre com a gente. A nossa casa se dividia com uma cerca, sem muro, praticamente compartilhávamos o mesmo terreno, então para estarmos juntas nem precisávamos sair de casa. Eu sentava na janela do quarto, do meu lado da cerca, e ela na da sala, do outro lado. O seu Jesus era uma figura incrível, grande e engraçada, sempre inventando coisas para a gente brincar. Lembro-me dele às vezes nos levando para a escola em um desses carros antigos, estilo alemão, uma preciosidade que comprou por puro gosto. Minha irmã tinha vergonha de ir, porque achava o carro velho, mas eu sabia que estava andando em uma joia e não via a hora de entrar naquela beleza. 

Vivemos ali apenas sete anos, mas com certeza é de onde me vêm as melhores lembranças, o sentido de comunidade, de solidariedade, de família estendida. Ali vivenciamos as amizades mais puras, as brincadeiras mais sadias, e aprendi o sentido da partilha e a beleza do comum. 

Saímos de São Borja no começo de 1978 em circunstâncias bem tristes, mas aquele lugar nunca saiu de mim. Tanto que sempre que eu sonho que estou em casa, é na casa da rua dos Andradas que estou. Voltei lá em 2009, mais de 30 anos depois, quando fui levar as cinzas da mãe e a rua estava lá igualzinha, com todas as casas, apenas agora calçada de paralelepípedo. Até mesmo o bar da Zezé estava aberto e tomamos uma cerveja lá. Também fizemos uma foto em frente a nossa velha casa, sem coragem de pedir pra entrar. 

Lembro que enquanto estávamos fazendo as fotos, num carro da casa ao lado, avistei uma carinha familiar. Era o Fernando, filho do seu Jesus, que eu conhecera bebê. Foi fácil reconhecer na hora os olhos clarinhos e a carinha redonda, muito parecido com minha amiga Liziane. 

Foi lindo circular outra vez naquela velha rua, reencontrando a minha criança interior. Agradeço e peço a bênção a todos os que me ensinaram tanto. Tia Tida, dona Mira, Preta, Sabiá, Gucha, Negrinha, Mimo, Tiano, Neco, Artur, Alemão, César, Serginho, Rosângela, Regina, Seu Artur, seu Donini e tantos outros que vivem em mim.


domingo, 23 de maio de 2021

Estar presente, no presente


 Lidar com  a demência requer entrega. Não é sem razão que muita gente não dá conta. A pessoa velha já requer cuidados, mas se tiver demência complica um pouco mais. Porque cada minuto é um minuto. A pessoa pode estar de boa e num segundo, virar o humor para a ultraviolência. É um caminhar sobre ovos, todo o instante.  

Digo isso porque a minha própria vida se transformou, nessa tarefa do cuidado. E, no começo, foi difícil. Primeiro, porque bagunçava totalmente minha rotina tão cuidadosamente prezada. Sou uma mulher de rotinas cristalizadas. E, com o cuidado do pai, tudo ficou “patas arriba”. Nada pode ser planejado e nenhum dia é igual ao outro. 

Mas, com o andar da carruagem descobri que era melhor seguir o conselho de um  compa cubano que ensina: “sobre la vida hay dos cosas que se pode hacer: enfadarse o desenfadarse”. Decidi pelo desenfadarme. Então percebi que se eu me entregasse para cada instante, com absoluta entrega, não haveria sofrimento. E é assim que tem sido. 

Sou uma mulher das manhãs. Acordo cedo e gosto de escrever nesse período do dia quando as ideias parecem estar mais claras. Então, sigo minha rotina de pular da cama às seis horas, passe o que passe durante a noite. Porque, assim, tenho um tempinho até umas nove, nove e meia, quando o pai desperta. Depois que ele levanta da cama, o tempo é dele. Há todo um ritual a cumprir, sempre repleto de surpresas, porque como já contei aqui, o pai tem pavor a trocar de roupa. E essa é uma novela mexicana protagonizada a cada manhã. 

É preciso todo um ritual, desde a chegada ao quarto. Geralmente entro dançando e fazendo graça, para ele desenferrujar a cara. Quando ele sorri eu corro para o abraço e nesse abraço vou puxando para o box, onde tento dar o banho matinal. Geralmente dá certo, mas têm dias que não. Ele foge da água como o diabo da cruz. Aí é outro roteiro a cumprir, até que ele deixe a fúria de lado. Depois é hora de ir tirando a roupa da noite, geralmente molhada. É um parto com fórceps. Feito isso, vem a cueca, valamideuzi... Aí o bicho pega e há que ter muuuuita paciência. 

Vencido o tirar, vem o botar. Outra novela. Nisso o tempo vai passando. Novamente há que distrair com cantorias, brincadeiras e todo um arsenal teatral que só mesmo o Eduardo Bolina poderia me valer. E me vale. Vestido meu velhinho é hora de sair do quarto para tomar café. Outro momento demorado. Brinca com o pão, brinca com o café, faz traquinagem de todo o grau. Geralmente acaba tomando o café sozinho, mas muitas vezes tenho de interferir. Então, esse é um tempo que é só dele. Se ele toma o café sozinho aproveito o momento para fazer a limpeza inicial do quarto. Tirar os lençóis, as roupas sujas, enrolar a fralda, colocar os paninhos de limpeza de molho no tanque. Uma azáfama.

Tomado o café vem a hora dos remédios, vencida também sempre com muitas performances. Finalmente ele está pronto para o dia. Passaram-se ai quase duas horas. E nada mais importa além desse tumultuado ritual. Hoje consigo cumpri-lo sem sofrimento, totalmente mergulhada nessa função. Fica muito mais fácil vencer cada dia quando a gente está presente no momento presente. Sem pensar no trabalho a fazer, no compromisso que foi para o pau, nas coisas que se poderia ter feito e tal. Nada disso. Só esse sincero e comprometido carpe diem. Ele fica mais feliz, eu fico mais feliz e o dia segue sem grandes dramas.

Quando por fim, volto ao computador para terminar as tarefas, ali está o meu companheirinho, parado em frente a mim, esperando paciente que eu termine mais essa jornada para, de novo, mergulhar no seu mundo. 

Estamos indo bem...

quinta-feira, 20 de maio de 2021

Um mercado em Beijin





Ali estávamos nós, eu e meu irmão, no hotel em Beijin, depois de chegar da grande muralha. As retinas ainda queimavam com a visão daquela grandiosidade, fruto de imensos sacrifícios humanos. Era janeiro de 2013 e fazia um frio de lascar. Ainda era o meio da tarde e via-se pouca gente na rua. E mesmo com os termômetros bem pra lá do zero, decidimos sair, batendo perna, afinal, uma cidade só se pode conhecer assim, vagando ao léu, indo onde os passos nos levam, sem rumo ou plano. É quando nos deparamos com a cidade invisível aos olhos comuns. A cidade real, que não se mostra nos roteiros turísticos. Beijin é imensa e quadrada, cheia de edifícios gigantes, cortada por parques que se mostram estranhamente  meio tímidos por conta da quase onipresente poluição. 

Naquela tarde, por algum motivo, aquela fumaça branca, tipo neblina, tinha amainado e as ruas se mostravam em suas cores sóbrias, claras. Já havíamos andado mais de 10 quadras, entrando nos mercados e nas inusitadas pequenas lojas que não ostentam vitrines. Não estávamos preparados para a visão do Pan Jia Yuan. Mas, ele nos chamava.

Numa das transversais da rua maior por onde andávamos vislumbramos uns portões. Eles destoavam do cenário cor de cimento. Entreolhamos-nos. Aquilo haveria de ser obra do Quilin, entidades mítica chinesa que andávamos buscando. Viramos à direita e entramos. Foi como adentrar o cenário daqueles filmes de época, de uma China antes da revolução. Ao contrário das ruas planificadas, ali vibrava a vida, a cor, as gentes trabalhadoras. Era o mercado Pan Jia Yuan.

Posso dizer que foi a coisa mais fascinante que vi em todo o roteiro que fizemos na China. Eu que sou amante da cidade das gentes, encontrara meu lugar. O mercado era um gigantesco espaço tomado pela genuína arte tradicional e popular chinesa, misturado a um animado e diversificado brique, no qual se vendiam desde bonecas quebradas até as mais finas joias.

O pavilhão, é claro, fica fora dos circuitos turísticos e passar pelos seus portões é mergulhar na China mais verdadeira. Na praça estão os vendedores avulsos, cada um com seu banquinho e  antiguidades de todos os tipos. Tranquilos e sorridentes eles nos convidavam para sentar e apreciar as coisas, com calma. Não importava que a língua verbal não fosse compreendida, o corpo falava e a gente ia se entendendo. Impossível descrever a beleza que explode ali. O mercado, na sua concepção mais antiga. O olho no olho, a conversa, o regateio, tudo na mais absoluta paz, numa algaravia suave, típica dos chineses.

Além dos espaços dos que vendiam a céu aberto, havia lojinhas que circundavam o grande pavilhão onde apareciam as pedras de jade em todas as suas conformações e os artistas se apresentavam, com seus trabalhos, sorridentes, ao observarem nosso olhar embevecido.  Éramos, naquele momento já de fim de tarde e frio cortante, os únicos ocidentais dentro daquele universo. E em cada um daqueles espacinhos nos deparávamos com o sorriso e a delicadeza. 

Em outras dezenas de boxes estavam os pintores da arte tradicional, feita com pincel típico e com nanquim. Verdadeiras obras de arte que em nada devem as que ficam no chique Espaço 798, antiga fábrica de componentes elétricos desenhada pelos alemães em 1950, que virou área da expressão da arte moderna da China. Só que ali, na Pan Jia Yuan, o desenho produzido eram a paisagens, as amendoeiras, o impressionismo e a memória de uma China camponesa e milenar. Pode-se ficar por horas nos corredores vendo as obras se constituírem na sua frente, metódica e tranquilamente, por experientes pintores, que trabalham lentamente, sem parecer notar os compradores. Também é de tirar o fôlego acompanhar a confecção das famosas sombras chinesas, incrível e delicado trabalho que testemunha a capacidade humana de produzir indizíveis e absolutamente delicadas belezas. Eu mesma não queria mais sair dali. 

Circulamos por cada cantinho da imensa praça, vez ou outra descansando ao sol, só olhando o vai-e-vem das pessoas que circulavam sob centenas de bandeirinhas coloridas. Não se vê nem a sofreguidão dos grandes mercados ocidentais nem a frieza dos xopins. Não há turistas, é um espaço tomado quase que exclusivamente por locais. Só o que se escuta é farfalhar dos casacos e a risada cristalina das mocinhas. É quase como um oásis no meio de Beijin. 

E, para coroar a sensação de que estávamos no paraíso, no meio da praça despontava uma árvore inacreditavelmente florida. Em pleno janeiro, no frio intenso, quando não havia sequer folhas nos arbustos, aquela árvore, no centro de Pan Jia Yuan, explodia em rosa claro. Seu caule estava protegido com cordas porque “as árvores se assustam com o frio”, conforme explicou, depois, uma senhora. E ela, a árvore, agradece àquele povo simples e criativo, assim, se abrindo em beleza. Ali, naquele inimaginável lugar, a epifania.

Então, de todas as maravilhas que vi em Beijin, na parte antiga e na nova, certamente o que nunca me sairá das retinas é aquela amendoeira, em flor, no meio daquele mercado colorido e cheio de gente sorridente, como que a desafiar o tempo. Ela mesma um milagre, tão maior do que o propalado desenvolvimento econômico que pretende levar a China ao paraíso. 

Aquele que consegue ver, não tem dúvidas. O paraíso já está ali. Entre aquelas senhorinhas, artistas e bandeirinhas, na adorável azáfama de comerciar sem pressa.

domingo, 16 de maio de 2021

A Palestina resiste




 Essas dolorosas imagens em preto e branco foram tiradas em 1948, quando quase um milhão de palestinos foram obrigados, pela força das armas, a abandonarem suas terras, suas casas, suas oliveiras. Amigos se separaram, famílias se destruíram, sonhos foram pisoteados. Esse momento de dor e desespero ficou conhecido como o Nakba – o dia da catástrofe. Quando a terra palestina foi tomada/invadida por Israel.

Esse êxodo aconteceu porque os Estados Unidos, a Europa e outros países do mundo, servis e vis, decidiram criar nas terras palestinas um estado artificial: Israel. Diziam que lá não havia povo, mas havia. Que era uma terra esquecida, não era. Ali viviam famílias que amavam, plantavam e tinham seus filhos. Famílias que cresciam desde a muitas gerações. E que, de uma hora para outra, foram arrancadas de casa. Suas moradas foram destruídas e os sionistas os obrigaram a marchar, abandonar tudo o que lhes era caro. Muitas dessas pessoas carregaram entre os seus pertences a chave de suas casas, uma casa para a qual nunca voltariam. Uma casa roubada, uma vida saqueada.

Os que conseguiram ficar em outros espaços do território foram tendo suas vidas roubadas pouco a pouco, num Nakba que não tem fim. A cada tanto, com armas e soldados da morte, os israelenses vão avançando sobre a vida dos palestinos e a tal ponto de os confinarem em imensos campos de concentração, como é a Faixa de Gaza, por exemplo. Esses palestinos vivem cercados por muros e não podem cruzar os caminhos sem passar por vexatórias e sistemáticas revistas e humilhações. É incrível que o mundo assista a isso calado. 

São mais de 70 anos de dor, morte e horror. E o que é vimos na mídia comercial? “Orem por Israel”. Hipócritas! São os sepulcros caiados. Assassinos também! 

Não pessoal, não há que orar por Israel porque esse é um estado assassino, que mata crianças, velhos, homens, mulheres, que derruba casas, que corta oliveiras, que obriga ao êxodo.

Não peço que orem pelos palestinos. Eles não precisam de orações. Precisam de apoio e solidariedade. Precisam de nossa ajuda concreta. Principalmente a divulgação da verdade.

O Nakba não tem fim. Essa é a verdade nua. 

Fora Israel das terras palestinas. Terrorista é o sionista.


Cheguei aos 60



 Normalmente não gosto de festa de aniversário. Acho meio tolo ficar celebrando nosso decrepitar. Mas, já tinha pensado em juntar meus poucos amigos quando fosse começar a 60º voltinha em torno do sol. Afinal, entrar nos 60 é algo. Desgraçadamente não vai dar. O novo giro começa essa madrugada, em meio a uma pandemia, num país que decidiu entregar seu povo à própria sorte. Nessa hora noa – de profunda angústia – parece uma afronta celebrar o fato de estar viva quando mais de 400 mil pessoas já morreram no carreirão da incompetência e da maldade. Não me compraz festejar em meio a tanta dor.

Eu nasci na madrugada do dia 14 de maio, no interior de Uruguaiana, no Toro Passo. Era uma noite de chuva, raios e relâmpagos. Iansã abençoava, por certo. Meu pai saiu pela noite atrás da parteira, a Dona Maria, que trazia ao mundo toda a gente por ali. Eram duas e meia da manhã quando ela chegou, encharcada, conduzindo sua carroça, e suas mãos abençoadas me receberam. Cheguei assim, nessa tormenta, bem no meio do nada, na campanha gaúcha. Talvez por isso as tempestades da vida não me amedrontem.

Sempre fui uma criança quietinha, de olhos graúdos e curiosos, disposta a sorver tudo que a vida pudesse oferecer. Apegada a bichos, seres extraterrestres e livros, perdida em meio a letras e histórias. Nunca fui birrenta, mas sempre tive opinião. Adolescente, preocupava mais com a humanidade do que comigo mesma. Tive um amor de colégio a quem amei e esperei até os 21 anos, quando então soube de seu casamento. Aí me soltei, disposta a viver todos os amores. Vivi mesmo, sem freio, até encontrar o homem que hoje me aninha e me faz feliz. 

Hoje, entrando nos 60, me assombro. Jamais pensei que pudesse chegar tão longe. Mas, ao mesmo tempo, parece que foi tão rápido, tão pouco. A primeira infância em Uruguaiana, depois em São Borja. A migração para Minas Gerais, Belo Horizonte, Pirapora, Arinos, João Pinheiro.  A passagem por São Paulo: Bauru, Marília. A volta para o Rio Grande: Caxias, Uruguaiana, Passo Fundo. A vinda para Florianópolis. Faço a lista dos amores, os perdidos, os achados. Os amigos, tantos... As aventuras dizíveis e indizíveis, os segredos escondidos, os sonhos realizados e os que ainda guardo nos planos escritos em papéis amarelados. As viagens pelo mundo, pela minha América Latina. Os lugares ainda não visitados, mas muito anhelados. Quanta vida... quanta beleza... quanta superação. Eu realmente vivi à larga. Agradeço aos deuses e deusas.

Gosto que meu nascimento tenha sido no outono, essa estação tão linda, quando tudo parece que fica mais claro. Na manhã de 14 de maio desse ainda aterrador 2021 despertarei – espero - no mais puro espanto. De saber que ainda ando sobre a terra, que vivo, respiro, amo, encontro pessoas, faço coisas boas. Olharei no espelho e verei uma mulher madura, ainda charmosa, carregada de bonitezas. 60 anos. Uma vida boa demais, carajo. Não haverá churrasco, nem tilintar de copos, só a vidinha ordinária com o pai, os cachorros, os gatos, o Renato, o Pedro. Um almoço melhorado, talvez, uma cervejinha e, à noite, uma pizza, porque afinal sou filha de deus.  

A festa fica para quando der, quando não houver mais pandemia, quando não houver mais esse cavaleiro do inferno a conduzir o país... A festa virá, ah... virá, porque é merecida... 



sexta-feira, 7 de maio de 2021

A luta pela privacidade digital em 2021



Informações repassadas pela Techwarn

A pandemia mundial de COVID-19 mudou (e exacerbou) diversos aspectos de nosso relacionamento com a tecnologia: para muita gente, a continuidade dos trabalhos, lazer, e até contato com família e amigos, depende hoje de um computador ou celular como intermediário. Suas vantagens são inegáveis, podemos ter acesso ilimitado e imediato à informação, podemos nos comunicar a qualquer hora, e aplicativos podem ajudar a resolver diversos problemas do cotidiano.

O problema é que, dentro de um sistema de constante expansão que visa extrair o máximo de valor do trabalhador comum, a tecnologia também pode servir como arma, e suas desvantagens podem ser ainda mais significativas em períodos de vulnerabilidade social. O fenômeno do trabalho em apps de delivery, por exemplo, demonstra como a mesma tecnologia pode oferecer comodidade, praticidade e estabilidade para restaurantes, às custas, mais uma vez, da exploração de um trabalho perigoso e mal remunerado para os entregadores. 

Dentro de todos esses paradoxos, especialistas em segurança digital alertaram que a privacidade (que já estava sendo minada na última década) está sendo completamente destruída nos últimos meses. Não há ainda resposta de que resultados serão enfrentados pelas próximas gerações que viverão em um mundo que se esqueceu do direito à privacidade, mas ainda temos em mãos a oportunidade de entender e lutar contra o começo deste processo. Vamos entender. 

Coleta de dados como modelo de negócios

A grande tendência do fim da privacidade digital aconteceu com a percepção de que os dados relativos a um usuário são extremamente valiosos. É sob essa premissa que plataformas e serviços como o Google e Facebook são capazes de operar “gratuitamente”, e ao mesmo tempo, integrarem o conjunto de empresas tão valiosas que superam o PIB de diversos países. 

Sem que um usuário use alguma técnica consciente para limitar a extração de seus dados, como uma VPN, um DNS customizado, e uma extensão de navegador que bloqueia rastreamento, uma rede como a Google pode imediatamente saber: sua localização, seus contatos, acessar suas fotos, hábitos diários, local de trabalho, comidas favoritas, histórico de navegação, histórico de pesquisa, músicas favoritas, entre muitos outros dados que, em conjunto podem descrever perfeitamente uma pessoa. 

E se isso não é suficiente, o uso de algoritmos de inteligência artificial pareados aos metadados do usuário podem chegar ao nível de conhecer as pessoas mais profundamente que sua própria família. Em um caso famoso, a varejista estadunidense Target usando “a ciência que te faz comprar mais” notou hábitos de consumo diferentes em uma cliente, associados às mudanças de saúde resultantes da gravidez, e passou a oferecer produtos relacionados à gestação antes mesmo que a própria mulher, e seu pai, soubessem do bebê a caminho. 

Algoritmos e liberdade

Se uma empresa como a Google conhece cada detalhe de nossas vidas pessoais, inclusive coletando dados remotamente através de aparelhos com Android, e vende essas informações para anunciantes que, por sua vez, usam os dados para nos convencer de mil maneiras a comprar mais produtos, é possível que algumas pessoas considerem que este fenômeno não seja tão preocupante. Afinal, que diferença faz se o Facebook sabe que prefiro comprar Coca-Cola ao invés de Pepsi? 

O problema é que o uso “inocente” do marketing digital para nos oferecer produtos é a menor das preocupações. Algoritmos inteligentes e um volume imensurável de dados podem ser usados não apenas para entender nosso comportamento, e sim, para o influenciar. Pesquisadores sociais já demonstraram por exemplo que o Facebook ajudou Trump a ganhar as eleições, e uma série de artigos demonstram como plataformas como a Google Notícias e o Instagram criam o “efeito bolha” para manter seus usuários viciados em um círculo fechado de ideias, sem a capacidade de buscar outras informações, questionar suas convicções, e refletir antes de propagar uma notícia ou publicação baseando-se apenas nas emoções. Isso não é um erro, é um algoritmo proposital. 

E a situação pode piorar: Edward Snowden, ex-agente do departamento NSA dos Estados Unidos, é perseguido político por revelar ao mundo que a agência coletava e monitorava os dados de pessoas do mundo inteiro, incluindo a ex-presidenta Dilma Rousseff e cidadãos comuns do Brasil, para que entre outros motivos a opinião pública à respeito do país pudesse ser controlada.

A luta pela privacidade digital é mais importante do que nunca: Se deixarmos nossa vida ser transformada em um pacote de dados para serem comprados e vendidos por gigantes da tecnologia, com poderes financeiros inimagináveis, estaremos abandonando alguns dos direitos mais fundamentais da humanidade, e nos rendendo à nova etapa do capitalismo moderno orwelliano que trata pessoas comuns como amontoados estatísticos que servem apenas para gerar mais renda para suas corporações.