terça-feira, 27 de julho de 2021

Covidagrobussinespopvideofinanceiro


Muito se fala da pandemia. O vírus novo que apareceu na China e se espalhou pelo mundo todo, causando morte e sofrimento. Um vírus que provoca uma doença feroz, capaz de deixar sequelas inimagináveis. Todos os dias, na TV, nos jornais, na internet, acompanhamos os números de infectados, de mortos, de recuperados, vacinas. No Brasil, onde já passamos das 500 mil mortes, temos até uma CPI para investigar o papel do governo federal no não/enfrentamento da pandemia. Mas, pouco se diz das causas. O que, afinal, provocou o aparecimento de um vírus tão mortal? 

O professor Gilberto Felisberto Vasconcellos tem uma teoria. Para ele as causas podem ser encontradas no tipo de agricultura que o capitalismo produz. Ele lembra que os seres humanos não conseguem mais escapar de uma rotina cotidiana que é o caminho entre o supermercado e a farmácia. Segundo ele, estamos presos nisso. As mesmas empresas que produzem sementes são as que produzem veneno e produzem remédio. Ou seja, os remédios são criados para enfrentar os males provocados pelas sementes e pelos venenos. É uma cadeia muito bem articulada. 

O agro é pop, diz a propaganda na TV. E é assim que a ideologia do capital vai tentando convencer a população de que aquilo que é produzido no latifúndio é bom para todos. Não é. “A origem do coronavírus está no sistema agrobussines”, diz Gilberto. Um sistema que é sustentado pelo petróleo e que apenas visa o lucro para alguns. A comida que vem daí é só um efeito colateral. E também não importa a essas empresas que a comida seja envenenada, que os frangos estejam entupidos de hormônios, que os peixes recebam antibióticos e que os grãos e vegetais estejam encharcados de pesticidas. Isso é bom porque ajuda a indústria farmacêutica. A população que se dane. 

Assim, para combater os efeitos dos venenos ali está a drogaria. E ela é a que vai fornecer o remédio para o câncer, o diabetes, o coração, a pressão alta e tudo mais que é gerado pelo modo de produção do capital. Uma jogada de mestre. 

O novo vírus junta a economia com a epidemiologia, em mais uma onda geradora de lucro. “O contágio da gripe está ligado ao contágio do capital. Vivemos uma gripe agrofinanceira. O agro é pop. O pop é money. O agro é pix, petróleo, CO2 e céu sujo”.

Gilberto lembra que os pesticidas que envenenam a comida têm origem no Napalm, uma arma química usada no Vietnam. Isso por si só já dá conta do tamanho do problema. Não bastasse a disseminação do veneno pela agricultura e pecuária,  a terra inteira ainda vive o drama do desmatamento, da política de terra arrasada. Tudo é devastado para que entre o agropop.

Assim que não precisa ir longe para saber as causas da aparição de um vírus como esse. A causa é econômica, social, cultural. Está visceralmente ligada ao que comemos e como produzimos a vida. Logo, muito em breve teremos outra epidemia, e mais outra, e mais outra. Mais doenças, e mais dor. 

Sendo assim, a única vacina possível é a morte do capitalismo. Ou isso, ou seguiremos como zumbis entre o supermercado e farmácia.


A casa França

 


Fui ao centro, depois de séculos pandêmicos. O centro, meu céu, meu paraíso. Andei pelas ruas como uma deslumbrada turista, olhando cada pequeno detalhe, esperando encontrar os mesmos vendedores ambulantes, o afiador de facas, os entregadores de papéis. O que vi foi um centro diferente. Muitas casas de comércio fechadas, outros novos negócios, pouca gente circulando. Depois fui jogar beijos para o Cascaes, o Cruz e Sousa, a Antonieta, e descobri nos caminhos a belíssima arte do artista Bruno Barbi, com as personalidades negras da nossa cidade. Tristeza e alegria se misturando na cidade mascarada.

Meu destino principal era a Casa França, lugar onde vou exercitar minha meninice. Gosto de entrar ali e ficar perdida no meio dos bonecos de pelúcia. Tantos que nem sei. Tive uma surpresa. Agora existem duas Casa França. E uma delas com um andar gigante só de bonecos. Visita de horas. Junto comigo caminhava também uma guriazinha, que se maravilhava, como eu, com a profusão dos bonecos. 

- Mãe, isso aqui é o paraíso – ela exclamava, enquanto arrastava a mãe pelas prateleiras. 

Sim, é o paraíso. Ela está certa. 

Rodei as prateleiras tocando, afofando e cheirando os bonecos. Por fim, decidi por um sapo, pensando no Armandinho. Queria trazer para o pai, pois ele gosta de se agarrar em coisas como o pano de prato ou a toalha de mesa, e fica aferrado até dormir. Pensei que talvez um fofinho daqueles pudesse ter o mesmo efeito.  Dizem que a gente presenteia a gente mesmo naquilo que dá. E é verdade. Lá estava eu querendo dar o que me encanta. Que seja. Comprei.

Cheguei a casa e coloquei o sapo sobre o armário da sala, onde fica o som. Passou um tempinho e lá foi o pai agarrar o bicho. Não deu outra. Agarrou e ficou grudado. Na hora de dormir também levou o sapo para a cama. Agora o sapo tá aqui, muito bem acompanhado.

Fosse por mim, a casa seria uma arca de bichos de pelúcia. 

E a casa França segue sendo meu éden.



domingo, 11 de julho de 2021

Jornalista e PhD em cuidar de velhinho



Lembro uma vez que participei de uma banca no Curso de Direito, como examinadora. E, na hora das apresentações o professor que presidiria a mesa me perguntou. - A senhora é o que? E eu. - Jornalista. - Só jornalista? Retrucou, meio incomodado. - É, só jornalista.

Respondi assim porque minhas qualificações estavam na ata e eu prefiro ser apresentada como jornalista, profissão da qual me orgulho. Mas, agora, penso que vou acrescentar: e PhD em cuidar de velhinho. Sim, porque isso é uma qualificação e tanto a considerar as minhas pequenas vitórias cotidianas com o pai.

Outro dia estava lembrando que eu sempre me assombrava quando via na televisão denúncias de velhinhos sendo maltratados pelas cuidadoras ou parentes. Eu pensava: mas como alguém pode ser violento com alguém tão frágil? Minha iniciação a essa coisa do cuidado foi num Asilo de São Vicente de Paula, em Pirapora, no final dos anos 70, para onde eu ia todas as manhãs de domingo junto com minha amiga Iara Nascimento. Lá, tínhamos por função limpar, pentear e entreter os velhinhos. Naqueles dias nem sonhava com fazer isso 24 horas por dia. Era apenas uma manhã, então nada parecia complicado. Por vezes os encontrávamos mal cheirosos e eu com meus botões pensava: mas por que não dão banho todo dia?

Hoje, depois de seis anos lidando com a doença de Alzheimer eu posso compreender porque algumas pessoas saem do sério, como e fácil perder o controle e o quanto é difícil essa parada da higiene. Têm momentos que podem ser exasperantes e desesperadores. Então, há que ter a cabeça aberta e estar disposto a aprender a compreender outro mundo.

A primeira coisa é saber que o velho, principalmente se tem demência, fala outra língua. Entendê-lo é como se iniciar no russo ou no mandarim. Há toda uma lógica diferenciada, outras sintaxes, outros fonemas, outra gramática e inclusive outra linguagem corporal. É fascinante. Chegar a uma fluência capaz de dialogar requer empenho e esforço. Posso dizer que eu hoje consigo me comunicar com o pai sem equívocos. E isso é uma grande vitória.

Ao conquistarmos o reino da língua temos o caminho para horas de muita tranquilidade porque quase toda a violência, os transtornos, e o desequilíbrio do doente de Alzheimer vêm dessa incapacidade que os outros têm de compreendê-lo. Tanto que quando o pai chegou, a vida virou de cabeça para baixo, e ele passou por muitos momentos de sofrimento com crises horríveis de violência e desequilíbrio. Eu fui aprendendo tudo à facão. Não há mapas. Hoje, é raro ele se intranquilizar.

Os médicos dizem que há três fases do Alzheimer. O começo, a fase moderada e a severa. Eu já discordo. São centenas de milhares de fases. Tantas quantos dias de vida na doença. Cada dia singular é um universo em si mesmo e o que aprendemos para hoje pode não servir amanhã. É um desafio permanente. Mas, nessa minha posição de PhD eu aprendi que há coisas que se repetem e servem para qualquer um.

1 – Falar baixo. Nunca , em nenhuma circunstância elevar o tom de voz. Qualquer estridência é ruim.

2 – Sorrir em todas as circunstâncias. Encontrar o nosso rosto sorridente e sereno quando estão incomodados com alguma dor, xixi, cocô, ou quando querem fugir, dá uma tranquilidade imensa a eles e ajuda a acalmar.

3 – Jamais contrariar – Se não querem fazer algo, deixa pra lá. Sorri, diz uma palavra carinhosa e sai. Dali a dez minutos a gente volta, pede a mesma coisa e já recebe outra resposta. É assim mesmo, então não há porque ficar insistindo e irritando a pessoa.

Com essas três dicas já se tem um bom caminho. O resto é atenção verdadeira para ir compreendendo a língua do nosso velhinho.

Escrevo esse texto hoje me concedendo o PhD porque consegui finalmente um feito inédito: trocar a fralda do pai durante o dia, assim que ele terminou o cocozinho. Uma façanha maior do que chegar vivo ao pico do Everest. Foi a coisa mais emocionante que me aconteceu nos últimos tempos, desde que eu finalmente consegui introduzir a fralda. No geral ele deixa colocar de manhã, mas só conseguia tirar à noite, o que me causava grande aflição.

Hoje, finalmente consegui. Sem gritos, sem choro, sem agressões. Bem tranquilo. Acho que passamos para outro estágio.

Depois dessa odisseia comemoramos tomando um chocolate quente. Ele bem querido e eu com um sorriso de orelha à orelha.

Apesar de estarmos os dois desde há uma semana com uma gripe horrível e desconfortável, vivemos hoje mais vitoriosa fase dessa nossa incrível relação. Eu, formada em língua de velhinho e PhD em cuidar.

Só tô aqui pensando se ponho isso no meu Lattes. 



quinta-feira, 17 de junho de 2021

Da memória

DA MEMÓRIA – Hoje, tentando fazer o pai permanecer dentro de casa, por conta do frio, tivemos um daqueles momentos de boniteza. Ele falando palavras ininteligíveis sobre algo lá fora no portão. Aí eu fui tentar abraça-lo, dizendo “meu magrinho... meu querido paizinho”.

E ele, fazendo cara de brabo: 

- Mas, por acaso eu sou teu pai?

- Pois o teu nome não é José Nelson Tavares?

- Sim.

- E o meu é Elaine Tavares, então?

Aí ele, reconhecendo o Tavares,  deu um grande sorriso e abriu os braços todo alegre, me envolvendo em um longo e apertado abraço...

- Maaaaaas, que coisa querida, dizia. 

E os seus olhos era puro brilho...

segunda-feira, 14 de junho de 2021

Do cerrado ao mar


Chapada Diamantina, um estupor de beleza

Era janeiro de 1994 e eu dava início a mais uma das minhas viagens, do jeito como gosto, minha mochila e eu.  Decidi sair de João Pinheiro, de ônibus, é claro, onde moravam meus pais, no cerrado de Minas Gerais, indo até Maceió, onde estava vivendo minha amiga/irmã Rosemeri Laurindo. Uma odisseia pelas estradas esburacadas do Brasil real. O roteiro era doido. Saia de João Pinheiro, no noroeste de Minas, com primeira parada em Brasília. Nada planejado, pois naqueles dias não tinha internet assim, à mão, e viajar era expor-se ao acaso. Hoje, mexendo em velhos cadernos, achei esse texto, que fala um pouco do caminho até Maceió. Como acontece nas viagens a narração do caminho é sempre mais bacana que o destino final. É uma narrativa bruta, tal qual está no caderno, impressões de um pedaço do Brasil de 27 anos atrás. 

“Minas ainda há sim, e bela, apesar da pobreza que se vislumbra nos vales por onde passa o ônibus no rumo da capital do país. No norte do estado o cerrado toma conta da paisagem, essa vegetação rasteira com árvores anãs, retorcidas. Firmando o olho na imensidão a gente tem a impressão de que a qualquer momento pode surgir um bandoleiro, desses dos filmes de TV, um Corisco talvez, com o cabelo claro brilhando ao sol. 

À medida que vamos percorrendo o caminho, vez ou outra, a paisagem muda. É que no meio do cerrado alguns gaúchos se acoitaram e abriram terras, botando no chão as árvores anãs, transformando a típica paisagem mineira em lavoura de soja. Dá uma profunda tristeza. Ao longo do caminho a gente ainda vê as montanhas de Minas. Ora qual, não são montanhas, são pequenos montes que até parecem seios de virgens, duros e pontudos erguidos para o céu. Seios de alguma mulher verde, porque cobertos de mato. Bonito demais. 

Mais um pouco e entramos em Goiás. Lugar quente, sufocante. O ar parece rarear e dói o nariz. Quanto mais Minas fica para trás, menos verde fica o espaço. Goiás tem um verde pálido e um povo escuro que espia das portas das casas feitas de barro e cobertas de capim. Crianças ranhentas acenam e oferecem carambolas a preço bom. Compro algumas. No caminho há vários pontos de vacinação contra a febre-amarela. “Têm tido muitos casos”, diz a enfermeira. Sem pestanejar desço e tomo a injeção. Sou a única. O resto do povo no ônibus ri de mim. Tudo bem. Acho que é uma boa oportunidade. Ficarei por 10 anos imunizada. Nunca vou perder para o mosquito.

Goiás também tem campos lavrados. Coisa dos gaúchos de novo. Por vezes, no meio das lavouras, vê-se algum homem à cavalo, com chapéu de beijar santo em parede, típico do Rio Grande. Nas cidadezinhas que se sucedem, o que mais se vê nos muros brancos é a inscrição: CAIADO 94. O latifundiário da UDR está investindo seus bois para entrar na política. Propaganda ostensiva. “O que ele fez de bom para Goiás?”, pergunto, na singela parada do ônibus. “Seu Caiado é bom”, diz um velho sem dentes, sem responder a pergunta. 

O ônibus agora se aproxima de Brasília e as grandes mansões no meio da quentura do dia parecem brincar com nossa tristeza. Nas cidades satélites se aglomera o povo que gera a riqueza e no meio do caminho, mais próximo do plano piloto saltam as casas imensas, com as enormes piscinas brilhando de tão azuis. Ninguém está se banhando nelas, estão ali, inúteis, ostentando riqueza. O ar é seco, as pessoas se escondem, muitos carros. Em Brasília não há pessoas. Vez em quando vemos alguns mendigos, gente sem casa, miseráveis quebrando a rotina dos imensos jardins. O poder tendo de lidar com a pobreza que ele mesmo gera. Embaixo das pontes tem gente dormindo, enrolada em cobertores apesar do calor. Vida mesmo só na rodoviária, perto do Centro Comercial. Ali, o povo vê vitrines, faz compras, toma sorvete. Caras nordestinas misturadas com gente do sul. Roupas finas, sorrisos tristes, gente triste. Só as crianças parecem rir com gosto. 

Depois de andar algumas horas pela rodoviária, enquanto espero o ônibus, finalmente sigo para a Bahia num carro da Viação Paraíso. O nome é bom, o carro nem tanto. Ele fará 24 horas até Salvador e uma boa parte do caminho é de estrada de chão. Os ônibus que saem de Brasília para o nordeste são indescritíveis. Vão sempre lotados, cheios até a boca e o povo leva tudo o que é possível imaginar. São caixas e mais caixas por pessoa. Tem até quem leve pneus e pedaços de carros inteiros. Levam bicicletas e muitos, mas muitos mesmo, aparelhos de som. E há quem leve secadores de prato, desses de acrílico, tentando ajeitar na parte de cima. As cenas são incríveis. Centenas de filmes não seriam suficientes para captar o clima. Um homem sentado sobre dois pneus de trator dá o tom do surreal. E os pneus, depois, são enfiados no bagageiro. E lá vamos nós rumo a Salvador.

A primeira parada é em Formosa, Goiás. Um lugarejo de sonho. Em vez de restaurante, churrasquinhos de gato nos recepcionam. O povo está sentado na frente das casas, as mulheres em roda, os homens bebendo uma cachacinha. Crianças e cachorros brincam. As casinhas são simples e há toalhinhas de renda sobre as mesas. O céu é claro e a lua enorme. 

Seguimos pela Estrada Federal 242. Um mar de buracos. No meio da noite clara, o sobressalto. Estamos no sertão, já é Bahia. Lá fora a paisagem é de desolação. Chega a dar medo tanto vazio, e aperta um oceânico sentido de solidão diante de tamanha quantidade de terra seca se estendendo além do horizonte. Não há como descrever a beleza da noite naquela paisagem. A lua clara, contrastando com o vazio da terra rachada. Uma ou outra arvorezinha aparece, tentando se erguer do chão. Dá vontade de chorar, confrontada com a maravilha desse país tão grande e belo. Pena mesmo é a falta de cuidado. A estrada é tão esburacada que dá até medo de o ônibus virar. 

Paramos em Barreiros, Bahia. Cidadezinha pequena e de grande pobreza. Na rodoviária várias pessoas dormem na rua. A noite é fria e eles se encostam um no outro para se esquentar. A cena é triste. Os corpos no relento, cobertos com trapos. Não parecem forasteiros. São gente da cidade mesmo que não têm casa para morar. Nessa região do norte da Bahia é grande o números de ocupações de terra e o MST é forte ali, vê-se bandeiras aqui e ali. A maioria das propriedades na beira da estrada é bem pequena, com casinhas feitas de barro e palha. Um lugar desolado que poderia brotar se houvesse política pública de irrigação. Um poço em cada casa e a vida estaria garantida em abundância. É tão pouco e ainda assim, não vem. Sem a água a terra é dura, o gado é magro e as cabras são fraquinhas. 

De repente, no meio da terra rachada do sertão surge um milagre: o rio São Francisco. Imenso, ele corta o agreste e espalha o verde escuro por todo o lado, Altaneira, ao lado dele, a cidade de Ibotirama. Uma ponte enorme liga a margem seca à outra margem turbulenta de vida. Não há ruas calçadas, só areia, que se enfia pelos pés da gente. No posto rodoviário estão quatro táxis, todos modelo Corcel, daqueles antigos: um verde, um azul  e dois vermelhos. Mulheres montam banquinhas próximo aos ônibus e vendem café com rosca, bolos, biscoitos, laranjas e água de coco. O calor é forte e o povo parece alegre. Um velhinho com sandálias de couro cru e bastão de santo pede esmolas, ou come os cocos deixados pelo povo do ônibus, que sai na corrida.

Mais um pouco e surge a imagem da magnificência: a chapada Diamantina, as montanhas da Bahia. Montes de pedra, lindos na sua falsa desolação. Encostas imensas, canions, é extraordinário. Com jeito, fixando o olho, eles parecem tomar formas humanas, um rosto, um corpo, uma expressão. É tão bonito que o olho não cansa de olhar. Bem no pé de uma das montanhas fulgura uma casinha, pintada de verde-cheguei. A composição da cena é inenarrável. 

Mais tarde passamos por outra cena considerada impossível: um rio totalmente seco. Está ali a ponte, o leito do rio, mas não qualquer vestígio de água. Curiosamente a cidade ao lado chama-se Beira-Rio. Há três anos que não chove uma gota ali. Bem mais na frente, estrada acima, surge um pequeno olho dágua, quase um poço. Água suja e pouca. Mesmo assim, as mulheres estão ali, com suas trouxas, lavando roupa. O menino baiano que viaja ao meu lado, diz desolado: “Essa é a parte pobre da Bahia, lá pro sul do estado é que é bonito”. Eu olho pra ele estarrecida: “mas tu não vê beleza?” Ele balança a cabeça, negando. A partir daí, juntos, vamos descortinando e recolhendo nas retinas as cenas dessa Bahia empobrecida. As árvores anãs, tão fortes, o cactos de um verde brilhante na paisagem seca, o sorriso das mulheres que vendem doces, o ar dolente dos homens que se debruçam nos balcões. Os montes da Bahia, as pedras, as casinhas, as crianças, os cachorros. E então? Torno a perguntar. Ele ri e diz: É, tem muita boniteza sim. 

A Chapada Diamantina então. O que é aquilo? Parece que as pedras foram colocadas uma a uma sobre o monte. É bonito demais. Pena eu não ter uma máquina fotográfica porque, de verdade, não há palavras capazes de descrever. Se nada mais fosse bonito naquela viagem, a visão da chapada bastaria. Uma das coisas mais linda que já vi na vida. Não dá vontade de seguir. Só de ficar ali bebendo daquela beleza sob o sol. Imagino o que seria um pôr-do-sol naquele lugar. 

Chegamos a Itaberaba, já no meio do estado, com ares de cidade média. Tem igreja, tem praça e ruas calçadas. Depois que passamos a chapada o cenário já vai mudando mesmo. Têm mais açudes, mais rios com água, lugares aparentemente aprazíveis. Itaberaba ostenta um alegre ar de festa, bem comum nas cidades baianas. Gente vendendo frutas pelas calçadas, bugigangas, e um festival de tipos humanos circulando na rodoviária, que é bonita e bem servida. 

Toca rodar mais um pouco até Feira de Santana. “Ebaaa... vamos chegar na civilização”, dizem, dentro do ônibus. É a metrópole baiana. Cidade grande, com todos os confortos. Ali é meu ponto final, onde vou pegar um ônibus que vai para Maceió. “Cuidado aí, menina”, diz uma senhora que estava sentada do outro lado do corredor, “tá cheio de avião”. Agradeci. É que dali não tinha carro para Maceió. Haveria que ir até um posto fora da cidade. 

Pois nem bem desço do ônibus um velho tenta me passar a perna, querendo que eu embarque num táxi para me levar ao ponto do ônibus que fica fora da cidade uns 30 quilômetros. Sinto que é fria e fico para sondar o local e saber direitinho como fazer. Encontro mais três pessoas querendo ir para Maceió. Juntos batalhamos e enfrentamos os 30 quilômetros em uma carona dividida, o que nos saiu bem mais barato. Três caras bem queridos: um latoeiro, um camelô e um montador de caldeira. Saltamos no posto de gasolina, onde passaria o tal ônibus. Esperamos um pouco e lá veio ele. Ufa! Vamos conseguir ir direto para Maceió, sem precisar ir até Salvador. 

Foi uma odisseia naquele final de madrugada, mas às cinco horas da manhã já estávamos na capital alagoana. Despedimo-nos com beijos estalados e eu fui encontrar minha amiga Rose. Chegara e tinha cruzado a Bahia em mais uma das minhas aventuras solitárias”. 


Coliseu Tropical


Quem escreve sabe: narrar é sangrar. Ainda mais nesses tempos de medo e solidão. É impossível não rasgar a carne da vida e deixar que as vísceras apareçam, afinal, é nelas que mora o futuro. E esse é o caminho percorrido pelo escritor blumenauense no seu livro Coliseu Tropical. Já no primeiro texto colocamos o pé na realidade sem retoques, a morte do pobre, a dor, o abandono, as pinceladas de um cenário que beira o mágico, ainda que dolorosamente real. Os textos são curtos, incisivos, diretos. A barbárie de um tempo duro que só parece tocar o outro quando apresentada como ficção. 

Viegas apresenta o Brasil, esse, que vimos nas páginas policiais como se fosse culpa das vítimas, a partir de olhos amantes, comprometido, abigarrado. Um país atravessado pela dependência e o subdesenvolvimento, a outra cara da riqueza dos países de cima. Viegas apresenta Desterro, essa terra que escolheu para viver e evoca os ventos que sopram memórias de baleias e de canoas de pau. Esgrime as palavras como a bailarina no trapézio. Traz em cada frase a delicadeza, a força, o mais profundo amor pela vida.

O livro anatomiza o corpo dilacerado da vida brasileira, mas não é um livro triste. Sim, às vezes faz chorar, mas é por puro assombramento, por tamanha grandeza, por tanta riqueza na construção de cada parágrafo. A palavra constituindo o nosso mundo que é feio sim, mas também cheio de belezas. Viegas não doura a pílula, extravasa angústias e sopra esperanças: “apesar desses tempos tristes, meus olhos acreditam no horizonte. A história ensina que os tempos serão outros. A história ensina que o mar já desaguou em abismos, antes de lamber nossas praias”. Ah, que vontade de seguir! 

No Coliseu do Viegas se digladiam as letras, os contos, aforismas, as vidas, os sonhos, e o eterno desejo humano de ser feliz. Mas, nessa luta titânica ninguém morre. Não. O que essas lutas nos cobram é coragem, como diz o sertanejo de Guimarães. E a gente chega ao fim desse livro intenso com o peito estufado de tanta belezura.  

Vale a pena percorrer esse caminho do coliseu tropical, acompanhando o traçado de Viegas: “Tu eras bonito. Tinhas o sonho balançando nos olhos como um barco de pesca em alto mar”. 

Assim somos. Bonitos e carregados desses sonhos balanceiros. Vamos vencer!

***

Obrigada por esse livro Viegas Fernandes da Costa. Foi lido bem devagar, como quem sorve um chimarrão amigo. Me fez rir, me fez chorar e me deu muita gana. 

Coliseu Tropical também está a venda na Livraria Livros & Livros (localizada no Centro de Eventos da UFSC).

quinta-feira, 10 de junho de 2021

Da confiança do pai



 Uma das coisas que mais me impacta nesse cuidado com o meu pai, que tem Alzheimer, é a completa e total confiança que ele tem nesse cuidado. Sei que não racional, mas ainda assim é definitivamente incrível e eu não canso de me emocionar. E me emociono mesmo por isso, porque não tem razão ali, embora tenha sentido. Uma pessoa mal intencionada pode fazer muito mal a alguém assim, porque são inocentes demais. Um exemplo disso é a parada dos remédios. 

O pai já não consegue mais entender o lance de engolir. Eu dou o remédio e digo: engole, pai. Ele faz um monte de firula com o remédio na boca, mas não engole. É engraçado até. Às vezes eu pensava que ele tinha engolido, mas passado um tempinho eu só ouvia o barulhinho dele cuspindo fora o comprimido. Uma odisseia. Então a gente tem de trabalhar com algumas artimanhas. Eu faço é moer o remédio e camuflo em pão, fruta, ou bananinha amassada, ou em mingau, pudim. E só chegar com a colherinha perto da boca e ele já abre, abocanhando, sem questionar. É uma ternura. E é incrível que ele não desconfie mesmo que ali tem um remédio. Come bem refestelado. 

Para minha sorte ele só toma um remédio, que é o da pressão, um de manhã e outro à noite. Graças aos deuses não tem qualquer outro problema de saúde, então, não sofro muito com isso. Mas, sei de velhinhos que chegam a tomar 15 comprimidos. Valamideuzi. Seria o caos. Da vez que teve uma infecção urinária eu sofri pra dar o antibiótico porque ele, doente, é outra pessoa. Também precisei de algum engenho. Muuuuuito engenho.

Mas, o fato é que, na confiança, ele vai onde eu quiser. Vamos ao posto de saúde todo mês tomar a vitamina B, e ele vai bem serelepe. Eu explico bem que vai tomar uma injeção, que vai doer um pouquinho, mas nem precisaria. Ele simplesmente pega na minha mão e vai. Olha pra mim, sorri, e me segue no seu passinho lento.

Penso que nunca em minha vida tive ou terei alguém que em mim confie tão cegamente. Isso é grandioso e assustador, porque significa que estamos tomando as decisões e qualquer decisão errada pode trazer consequências danosas. Tenho procurado fazer só coisas boas pra ele, espero poder ser merecedora dessa confiança abissal. 

É um grande aprendizado essa estrada que estamos cumprindo juntos...