quarta-feira, 30 de setembro de 2020

O martírio de Julian Assange


Não causa surpresa que o julgamento que definirá a extradição ou não de Julian Assange para os Estados Unidos esteja passando em brancas nuvens na imprensa comercial. Afinal, Assange é um pária, ele fez o que nenhum desses órgãos de imprensa é capaz de fazer: trabalhar com a verdade dos fatos. Jornalista raiz, como há tempos não se vê. Logo, é natural que se silencie sobre essa presença inoportuna no mundo moderno, no qual a mentira é elemento básico.  

Craig Murray, ativista britânico pelos direitos humanos que está acompanhando o caso em Londres, é um dos poucos que tem repassado informações sobre o que acontece dentro do tribunal, já que os jornalistas parecem se importar muito pouco com o destino de Assange. Ele conta que acompanhando os depoimentos dos médicos que cuidam de Julian na prisão fica bastante claro que as autoridades mentem quanto as condições de saúde do prisioneiro. Tão logo foi tirado da embaixada do Equador, o criador do WikiLeaks foi enviado para a “área médica” da prisão, embora tenha sido confinado em uma solitária. Nessas condições, por três meses, a sua saúde foi se deteriorando e os próprios médicos que deram depoimento foram obrigados a reconhecer que Julian só melhorou um pouco quando deixou a tal “área de cuidados de saúde”. Também foi revelado que Julian e a médica que lhe foi destinada, a dra. Daly, não conseguem manter uma boa relação, o que faz com que o prisioneiro não tenha as condições para narrar seus sintomas.  

Murray também conta que outros médicos que se ocuparam de Assange revelaram as várias tentativas dele em cometer suicídio, chegando inclusive a esconder uma lâmina de barbear nas dobras da cueca que, felizmente, foi encontrada. A polêmica se dá porque a médica responsável pelo prisioneiro jamais registrou nos prontuários essas tentativas. E por quê? Certamente para esconder o verdadeiro estado de saúde de Julian.  

Outros depoimentos médicos buscaram minimizar os diagnósticos de problemas mentais do prisioneiro, alegando que ele só estaria na ala médica para sua própria proteção e não porque ele apresentasse qualquer distúrbio digno de nota. Por outro lado, a defesa de Julian apresentou documentos que comprovaram não apenas as tentativas de suicídio como também as impressões de outros médicos quando da chegada do prisioneiro à prisão, que atestavam ele estar visivelmente abatido e perturbado e que uma junta havia chegado à conclusão de que ele tinha impulsos suicidas. Ainda assim, a dra. Daly não registrou no prontuário nada que levasse a crer que Julian tivesse problemas de saúde. Por quê? Para Murray, há cristalinas evidências de que Julian foi mantido em isolamento como uma punição, e que isso alterou bastante o seu estado de saúde, embora nada tenha sido registrado, com a provável intenção de não dar qualquer motivo para um possível relaxamento da prisão ou coisa assim.  

A verdade sobre todas as torturas físicas e psicológicas a que Julian Assange vem sendo submetido na prisão em Londres vai surgindo assim, a conta-gotas, em pequenos lapsos que surgem nos depoimentos. Um martírio que dura anos, simplesmente porque ele decidiu contar ao mundo a verdade sobre os crimes de guerra dos Estados Unidos e sobre os podres que vivem debaixo dos tapetes dos poderosos do mundo. Assange está pagando um preço alto por essa decisão. É incrível que mesmo sem pesar sobre ele mais nenhuma acusação - aquela de que ele teria estuprado uma jovem já foi derrubada – a dita justiça o mantenha preso, sob tortura. Por quê? Essa é uma pergunta que precisa ser repetida e repetida.  

O escandaloso caso  Assange é a prova cabal de que a justiça tem classe e dono. Nesses tempos em que as mentiras são o prato principal da imprensa e das redes sociais, dizer a verdade sobre os poderosos é crime.  

Tudo o que se espera é que Julian Assange consiga resistir e que a roda do tempo gire mostrando a farsa e os verdadeiros criminosos. 

A verdade prevalecerá. Força, Julian. Fique vivo.  

segunda-feira, 28 de setembro de 2020

O medo de faltar


Um dos medos mais tenebrosos que temos, os cuidadores, é o de ficar doente. Afinal, se a gente cai, o que será do nosso velhinho? As pessoas que tem demência precisam fundamentalmente de rotina. As coisas sendo feitas do mesmo jeito, na mesma hora, o mesmo tom de voz. E se a gente falta, o mundo se transforma. Daí esse pavor. Mas, como tudo sempre pode ficar pior, a doença vem e o cuidador precisa fazer de conta que não está passando nada, o que, por outro lado, só piora a doença em si. Pode ser uma gripe, uma febre, uma tontura, um aperto no coração. Seja o que for, é preciso seguir levantando a mesma hora, fazendo as mesmas coisas e prestando a mesma atenção no cotidiano. A parada é bem dura. Ainda mais que o velhinho, mesmo dentro de sua demência, consegue identificar que algo não vai bem. 

Nos dias em que fico ruim, fazendo esforço para não demonstrar, o pai, intuitivamente sabe que algo está passando. Então ele acorda mais cedo, ele me segue por todo lugar ou fica parado me olhando fixo, como a indagar se está tudo bem.  O esforço de fingir acaba piorando tudo. O estresse aumenta e um desespero surdo toma conta da gente. O mundo balança. Esses são dias em que realmente eu desabo. Já li que as estatísticas de cuidadores morrendo antes da pessoa cuidada são bem altas. É quando vem o medo de sair de cena e deixar o meu velho sozinho. São vários sentimentos amalgamados que levam nosso emocional ao último nível do suportável.  

Quando é assim me agarro na música. Faço uma lista das minhas preferidas e coloco pra rodar, o som bem alto. Se a situação permite, eu danço. Aí o pai se acalma, como se ao me ver cantando registrasse que tudo está bem. E então eu vou seguindo sendo aquele fingidor de que falou Pessoa, fingindo tão completamente que as vezes pensa que é força a força que de fato tem. Ainda assim, o medo de faltar segue assaltando, tornando a jornada bem mais pesada.  

São dias tristes.  



quarta-feira, 23 de setembro de 2020

O fogo e os indígenas


Ferir a terra é ferir tudo que vive

Então o presidente do Brasil foi à ONU dizer que as queimadas que assolam o Pantanal, o Cerrado e Amazônia  - que até ontem ele negava  - estão sendo provocadas pelos indígenas e pelos caboclos. Até aí nada de novo a considerar uma criatura que se move unicamente no pântano da mentira. Mas, cabe a nós trazer um pouco de informação veraz à população. 

Um estudo da Ambiental Media, entidade que trabalha com jornalismo de dados, cruzou informações de instituições públicas como o INPE e o Cadastro Ambiental Rural, e mostrou que são as propriedades rurais de médio e grande porte as que apresentaram 72% dos focos de incêndio no ano passado. São também essas propriedades que apresentaram o maior índice de desmatamento, “coincidentemente”. Ou seja, o fogo é usado para queimar o que foi derrubado. Esse mesmo cenário é o se vê hoje, tanto no Pantanal quanto no Cerrado. As terras são queimadas para expandir a fronteira agrícola.  

Ainda conforme os dados, as terras indígenas aparecem com apenas 11% de queimadas, sendo que boa parte delas são comprovadamente provocadas por grileiros e jagunços. Repassando: não são, portanto os indígenas nem os caboclos assentados os que colocam fogo na vegetação.  

Um mínimo de conhecimento sobre a realidade indígena já seria suficiente para saber que as comunidades originárias, bem como as tradicionais – quilombolas e ribeirinhas  - têm uma relação com a natureza que não está vinculada ao lucro ou a produção capitalista. Essas comunidades utilizam o território como espaço de vida e fazem uso da terra de maneira sustentável. Suas técnicas de manejo remontam há séculos e o elemento chave é a proteção.  

O chamado bem-viver reivindicado pelos povos originários está firmemente ancorado na pachamama (a terra como expressão totalizadora da vida toda), na reciprocidade, no uso coletivo da terra, na propriedade comunal, na solidariedade. É fato que cada etnia tem sua concepção singular do que seria esse bem-viver, mas a organização unificada dos povos em nível continental atualmente aponta elementos que são comuns a todos. E o mais importante deles é o de que a terra não é algo que está fora da vida, ela é parte da existência de cada um. É, portanto, impensável machucá-la.  

Por isso é importante perceber que a acusação de Bolsonaro na ONU não é por acaso. Os ruralistas, aliados prioritários, têm como projeto, ainda nesse governo, eliminar as comunidades indígenas dos míseros 12% do território nacional que ainda estão protegidos sob seus cuidados. A sanha de expansão do capital é imparável e todas as terras precisam ser amealhadas. Daí que imputar aos indígenas esse crime de lesa-humanidade que vivemos hoje no país é uma grande cartada. Com base nessa ideia de que os indígenas são inúteis e ainda destroem as terras, essa gente pretende dar continuidade ao processo de reversão das demarcações já feitas, e impedir novas demarcações, extinguindo assim com essa prática, que é subversiva para o capital, de uso racional e comunitário da terra.  

Quando deputado, cargo que exerceu por 28 anos, sempre foi muito conhecido o preconceito e o completo desrespeito que Bolsonaro sistematicamente manifestou no trato do tema indígena. Por isso, ao ser eleito e empossado presidente, sua decisão de passar o tema das demarcações e homologações ao Ministério da Agricultura, dirigido por uma representante do agronegócio, é claramente um ataque concreto à luta originária e um aceno servil aos interesses de fazendeiros e mineradores que já possuem mais de 60% do território nacional, sonhando abocanhar as terras indígenas, cheias de vida e de riqueza.   

Ao contrário da proposta de exploração e esgotamento do ambiente implementada pelo latifúndio, os povos originários têm uma forma própria de viver e de se organizar nas terras, bem como uma forma própria de sustentabilidade. Eles não trabalham com a ideia de desenvolvimento capitalista e não pactuam com o modelo econômico que impacta negativamente seus territórios. De novo, basta entrar nas bases de dados de órgãos governamentais, como o INPE ou o IBGE e já se pode ver claramente que as terras indígenas são espaços vigorosos, com comprovação técnica e cientifica de proteção ambiental, sendo muito bem manejadas pelos povos indígenas, e tanto que por conta desse manejo e preservação garantem constantes chuvas com as quais até as plantações e agronegócios da região do sul e sudeste são beneficiadas. 

Portanto, apenas com esses poucos fatos já é possível perceber que os povos indígenas jamais seriam capazes de colocar fogo no seu território, terra-mãe. Essa é uma ação dos capitalistas, interessados em “limpar” os terrenos para introduzir pastagens, cultivos alienígenas ou para fazer mineração, terra-mercadoria.  

A máquina de mentiras instalada no palácio do governo em Brasília vai continuar inflamando seus aliados/alienados contra os povos indígenas. E já possível visualizar isso nos grupos de uatizapi que reproduzem essa mentira – de que os incêndios são obra indígena  - à exaustão. Mas, em matéria de resistência os indígenas tem mais de 500 anos de experiência e seguirão atuando no sentido de estabelecer a verdade.  

Cabe a cada um de nós ajudar nessa cruzada.  


quinta-feira, 17 de setembro de 2020

Livro à venda



Com a pandemia e o confinamento em casa tratei de começar a pôr ordem nos livros que tenho. Praticamente todos eles já esgotados, pois tiveram edições pequenas. Minha ideia é ir digitalizando cada um deles e colocando para vender na internet, já que essa é uma forma bastante eficaz de difusão do trabalho. Vender sempre é a pior parte, principalmente para quem, como eu, não tem a menor vocação comercial. Aproveitei o pdf finalizado pelo meu querido amigo Leopoldo, que editorou o livro “Olimpia Gayo visita o diabo”, lançado em 2013, e coloquei para vender como minha primeira experiência internética. Assim, quem tiver interesse é só visitar a página e comprar. O livro em questão recupera a história da irmã Olímpia Gayo, que foi coordenadora da Pastoral da Mulher Marginalizada da cidade de Lages e, inaugurou um importante trabalho de luta para as mulheres da região. Sua história é um caminho de amor, dedicação, batalhas e extraordinárias vitórias no processo de organização das mulheres. Perseguida, censurada, calada, ela nunca esmoreceu e ainda hoje segue seu trabalho de entrega com aqueles que estão à margem da sociedade. O  diabo, o qual ela visita amiúde, mostra sua cara na sociedade conservadora e hipócrita. Olímpia sabe seu nome, conhece seus segredos e o vence, em cada batalha travada. É uma bela história e uma boa leitura.  

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quarta-feira, 16 de setembro de 2020

O sono, os remédios e as escolhas com o pai


Nessa batalha que é cuidar de uma pessoa idosa com demência um dos pontos mais difíceis é o sono. Desde que o pai chegou aqui em casa para meus cuidados que eu venho batalhando formas de tornar sua noite um momento de descanso, já que ele é igual a um dínamo, não para um segundo durante o dia todo. Só que quando a noite chega, também não tem parada. E isso é ruim. Ele não descansa.

Devo dizer que ao longo desses mais de quatro anos tentei de tudo e ele passou por todos esses remédios que são ministrados para pessoas com Alzheimer. Psicotrópicos, calmantes, antidepressivos, ansiolíticos, uma infinidade. E a cada um desses remédios eu observava uma reação diferente. Acontecia de tudo, menos o sono. Em alguns casos vinham as alucinações, o desespero, a agitação desenfreada, a loucura desatada, levantando no meio da noite, querendo sair, batendo portas e forçando o portão, gritando sem parar. Em vez de melhorar, piorava. Outros o deixavam completamente dopado durante o dia, prostrado numa cadeira, com a boca torta.

Participando de grupos de ajuda de familiares com Alzheimer fui conhecendo os casos de pessoas que iam ficando com os músculos rígidos, paravam de andar, problemas para engolir, tudo aparentemente efeito colateral dos remédios. Uma aflição dos diabos vai tomando conta da gente porque não queremos ver a pessoa sofrer, e esse troca-troca de remédios ia me parecendo uma experiência meio desumana. Sabe-se que não há um remédio para o Alzheimer, o que os médicos podem fazer é ir tentando resolver os problemas que a doença causa. Eu entendo isso, mas os experimentos com o pai me causavam muito sofrimento também.

A gota d´água pra mim foi uma noite em que ele apareceu na porta da cozinha com a cara lavada de sangue. Eu havia dado um desses remédios para ele dormir e estava na minha cama, no meu quarto, dormindo. Pois ele havia acordado em surto e caído, abrindo um corte na testa. Aquela cara ensanguentada, aquele olhar de desamparo acabou comigo. Decidi mudar toda a minha abordagem.

A primeira coisa que fiz foi tirar os remédios. Mais nada. Depois, me mudei de mala e cuia para o quarto dele. Iria dormir com ele e observar sua noite, dando suporte para o que fosse. Antes, ele tomava o remédio e ficava sozinho, com a luz acesa e a televisão ligada. Não me deixava desligar. Ficava brabo. Percebi então que ele levantava várias vezes durante a noite e com a luz ligada, pensava que era dia, queria sair. Com muito carinho e tato fui mudando essa rotina. Apaguei a televisão depois de certa hora, depois a luz, e fui criando um ambiente aconchegante, mas penumbroso.

Hoje estamos assim. Ele janta as seis e lá pelas sete e meia vai para o quarto ver a novela. Assistimos juntos. Depois vimos as notícias e lá pelas nove já preparo tudo para o dormir. Ajeito a cama e vou insistindo com ele para deitar. Ele deita, eu apago a televisão, desligo a luz e o quarto fica silencioso e escurinho. Ele apaga na hora. Dali até o amanhecer acorda mais umas quatro vezes para fazer xixi, mas eu estou bem ali do seu lado. Limpo a bagunça, seco os pés e indico a cama para que ele volte a dormir. No geral dá certo. Há dias que ele está bem consciente e fica rindo por eu estar feito um fantasma ao seu lado. E quando está meio viradinho, resmunga um pouco mas volta pra cama. Há dias, é claro, que ele está bem mais agitado. Não deita, fica mexendo nas cobertas, tiras as coisas do guarda-roupa. Eu mantenho a luz apagada, só com a claridade do banheiro e fico quieta, esperando. Seus agitos podem durar duas horas seguidas na madrugada, mas depois disso ele cansa, aí eu venho e digo: vamos dormir agora? Ele deita e apaga.

Claro que isso é bem mais custoso e cansativo pra mim. Mas, percebo que é o melhor pra ele. Nenhum medicamento causando efeitos ruins, só a fixação sistemática da rotina. Tudo é feito na mesma hora, do mesmo jeito. Isso tem me custado as noites e toda a minha rotina de escrever e ver filmes nessas horas de calmaria. Isso se foi. Mas, por outro lado, quando ele desperta de manhã está mais descansado, e com o descanso também ficam mais raros os seus momentos de descontrole.

Tenho aprendido que essa doença danada tem pouco controle. E que o melhor remédio mesmo é a atenção e cuidado sistemático. Durante o dia uso um óleo natural abençoado por deus que o deixa lépido e falante e também garanto uma boa dose de nicotina – receita médica contra a agitação. Ele caminha bastante, come muita fruta, ajuda na horta, “trabalha” com seus papeizinhos, ouve música. E, de noite, na caminha. Não é coisa fácil mudar toda a vida da gente, mas foi o caminho que encontrei. Espero poder levar essa rotina até o fim. É só o que peço ao universo.



segunda-feira, 14 de setembro de 2020

Mostrando as vísceras do capital


 

O Brasil vive um momento de extrema desolação. Além de toda a tragédia provocada pela inexistência de um combate centralizado ao vírus da Covid 19, que já ceifou quase 150 mil pessoas, Amazônia e Pantanal queimam, por incêndios criminosos. Há algumas dezenas de pessoas que lutam contra as chamas, desesperadamente, de maneira quase inglória. E há um governo que corta verba para o combate aos incêndios, faz piada e divulga vídeos falsos, minimizando a tragédia que se abate sobre a terra, as gentes e os animais. Há milhões de criaturas que negam a realidade, que se manifestam contra a vacina e que aplaudem a lógica governamental. Esse é o triste cenário com o qual nos deparamos. Trágico, mas não surpreendente, afinal, o que importa para quem governa é apenas o bem-estar de uma minoria dominante. O que passa ao largo dessa pequena parcela de gente é absolutamente irrelevante. E por quê? Porque essa é a natureza do sistema capitalista no qual estamos inseridos.  

Existe um livro, que deveria ser leitura obrigatória nas escolas, que se chama “A situação da classe trabalhadora na Inglaterra”, escrito por Friedrich Engels, em 1845. Ele inclusive serviu de fonte para que Marx escrevesse o seu clássico “O Capital”. Engels era um jovem rico que em 1842 vai para a Inglaterra aprender sobre a indústria, visto que seu pai era industrial na Alemanha. Naqueles dias, a Inglaterra, especialmente Manchester, era a ponta de lança das inovações e da modernidade capitalista. Ali Engels vive por 21 meses e ao observar os avanços na indústria local e a urbanização das grandes cidades, começa a perceber também as condições de vida dos trabalhadores.  

Quando volta para casa, na Alemanha, Engels conhece Marx e com ele discute tudo que viveu. Logo em seguida começa a redação desse livro que é uma obra prima sobre a realidade do capitalismo. É uma espécie de ver por dentro, de narrativa do escondido, do que não aparece aos olhos de quem apenas usufrui dos produtos que nascem das mãos dos trabalhadores. O livro é uma espécie de “Globo Repórter” da época, pois Engels consegue descrever como vivem, onde moram, o que comem, que doenças têm, como se divertem e que expectativas têm os trabalhadores da meca do capital.  

Engels mostra como se deu o movimento do camponês para a cidade grande, saindo da condição de trabalhador da terra, com casa para morar e um pedaço de terra para tirar seus sustento, para a condição de proletário, sem nada de seu a não ser a força de trabalho, cujo pagamento por ela sequer era suficiente para mantê-lo em pé. O jovem alemão visita não apenas as fábricas, onde vê de perto as condições de trabalho de homens, mulheres e crianças, mas também circula pelos bairros periféricos, morada dos trabalhadores, os quais eram desconhecidos pela elite dominante e também pela chamada classe média que ocupava as profissões liberais, ou cargos mais elevados nas fábricas.  

Nessas andanças pelas vielas fedorentas de Manchester – os chamados “bairros de má fama” - Engels viu gente morrer de fome, dividir casa com os porcos, dormir na maior imundície, padecer das doenças mais horrendas. Aquelas ruas e casas que ficavam na parte mais feia da cidade, eram o espaço da morte, e não da vida. Não recebiam cuidados por parte da administração local e eram conhecidas como redutos da criminalidade. Isso lhes lembra algo?  

Engels descreve com riqueza de detalhes aquele universo e tanto que se pode até sentir o cheiro das ruas e das casas. “Não há um único pai de família em cada dez, que tenha outras roupas além das de trabalho e muitos só têm à noite, como coberta, esses mesmos farrapos e por cama, um saco de serragem”. Ou ainda a visão de uma mulher que morrera de fome: “jazia morta ao lado do filho, sobre um monte de penas, espalhadas pelo corpo quase nu, porque não havia lençóis ou cobertores. As penas estavam de tal modo aderidas à sua pele que o médico só pode observar o cadáver depois que o lavaram, e o encontrou descarnado, todo marcado de picadas de insetos”. 

E por aí vai a toada. O livro de Engels é como um soco na boca do estômago, detalhando de maneira crua a vida daqueles que fizeram a riqueza do capital. Uma gente que morria cedo, com fome, sem nada de seu. Uma gente que não era visível para ninguém que vivessem fora daqueles antros de podridão e dor. Da classe média, essa excrescência que sonha em virar exploradora ele diz: “Tive de observar a classe média, vossa adversária, e rapidamente concluí que vos tendes razão em não esperar dela qualquer ajuda, seus interesses são diametralmente opostos aos vossos, mesmo que ela procure incessantemente afirmar o contrário e vos queira persuadir que sente a maior simpatia por sua sorte.” Para Engels a classe  média só quer enriquecer às custas dos desgraçados e simplesmente pode deixá-los morrer de fome quando não puder mais lucrar com o que chama de “comércio de carne humana”. 

Mas, o que realmente é espantoso no livro de Engels, é que a situação que ele descreve na Inglaterra de 1842, segue absolutamente igual nas periferias do mundo inteiro. As cenas descritas dos horrores, das condições das moradias, da saúde dos moradores e da exploração que sofrem não apenas nas fábricas, mas também dos donos dos armazéns onde compram seus víveres, poderiam ser vislumbradas hoje em qualquer grande cidade ou mesmo em países inteiros. Porque o Engels mostra não é apenas a situação dos trabalhadores da Inglaterra, mas sim as vísceras do modo de produção capitalista. O lado de dentro, o lado escondido, que os poderosos preferem deixar invisível para que não haja revolta. Pelo contrário, o capitalismo dispõe de uma pedagogia da sedução que leva os explorados a acreditar que um dia poderão ultrapassar o limiar da miséria, basta que trabalhem bastante. Mas, isso não é verdade. A roda do capital que gira desde o 1800 segue fazendo o mesmo de sempre: moendo gente. É assim que se mantém.  

É justamente por isso que, hoje, no Brasil, enquanto milhares de famílias choram seus mortos, que partiram por não conseguir amparo médico, ou um respirador, ou uma UTI, a classe dominante não está nem aí. E se não está nem aí para as pessoas, porque motivo estaria preocupada com as milhares de vidas animais perdidas nos incêndios da Amazônia e do Pantanal? Isso não importa em absoluto. Assim como não importam as vidas dos indígenas - esses seres que consideram inúteis e um atrapalho ao progresso – dos negros da periferia, dos quilombolas, dos ribeirinhos, dos sem-terra, dos zé-ninguéns. Enquanto essa gente morre a classe dominante segue com suas festas, suas mansões, seus banquetes. A dor dos que lhes servem não lhes toca, não lhes chega. Porque, ao fim, alguém dos seus está enriquecendo enquanto as terras ardem e as gentes morrem. 

O que nos resta, então? Primeiro conhecer a realidade. Entender porque uns tem tanto e tantos não tem nada. Entender porque existe a pobreza, a miséria, a exploração. Entender a lógica do capital. Debruçar-se sobre as vísceras desse sistema, ter coragem de olhar adentro e, a partir daí, compreender que é o trabalhador quem produz a riqueza e que os ricos não trabalham. E que se quem produz a riqueza é o trabalhador então a ele tudo é devido. Não a morte, não a fome, não o desespero. Mas a alegria, a fartura, o bem-viver. E que isso pode ser conseguido se essa minoria que domina tudo for vencida. É uma minoria. Os trabalhadores são maioria, logo, mais fortes.  

É certo que no caminho haverá quem não acredite no que mostram as vísceras, haverá quem defenda o algoz, haverá quem traia os companheiros. É a vida. Mas, os trabalhadores, coletivamente podem enfrentar cada um desses obstáculos, e avançar.  

O capitalismo tem essa aparência bonita, de sucesso, de possibilidades. Mas, dentro dele estão as vísceras. Engels mostrou as da Inglaterra. Nós vamos mostrando as nossas. E, assim, conscientes do mal, haveremos de encontrar o caminho para a libertação.  


quarta-feira, 9 de setembro de 2020

A novelização da política

Na foto: mestre Gilberto, o que grita!


Gilberto Felisberto Vasconcellos tem sido nosso Jeremias, gritando na montanha contra a telenovelização da política. Gilberto faz a crítica, mordaz, feroz. Mas, tem sido ignorado nesse quesito. Segundo ele, a política brasileira tem seguido desde 1964, com o advento da Globo, uma estética telenovelizada e a novela real politiza as cabeças no sentido de extrair a mais-valia ideológica. Por isso que ver novela é também entender a política que está na cabeça das massas. Afinal, é pela televisão que a maioria se informa. E não apenas no telejornal, mas nos programas de auditório e na novela.  

O reacionarismo religioso entrou no Brasil através da novela. Quem não acompanhou as grandes produções da Record não tem como compreender porque os brasileiros estão se tornando “terrivelmente evangélicos”. As sagas dos personagens do velho testamento foram introduzidas na casa das pessoas trazendo mensagens políticas importantes: Israel é o centro do mundo (daí as bandeiras de Israel nas manifestações bolsonaristas), a mulher precisa aceitar seu sofrimento e amar seu marido, há que rezar que deus atende, e há que temer porque deus também vinga.  

Esther, Sansão e Dalila, Rei Davi, a Bíblia, José, Os dez mandamentos, O Rico Lázaro, A Terra prometida, Lia, Jezebel, Gênesi, Jesus e o Apocalipse, todas essas histórias tem manufaturado uma ideia de deus, de moral, de comportamento, de ser no mundo. Isso não é pouca coisa. Se juntarmos isso às mensagens que são inoculadas pelas novelas globais – tais como as de que existem empresários bonzinhos, ricos generosos e que há que defendê-los – temos aí um caldo extraordinariamente conservador que domestica e amansa. A novela ensina a amar o algoz e mostra que a luta só tem chance de vitória se for em aliança com os ricos bonzinhos.  

A política, diz Gilberto, reproduz na vida essas mensagens e essa estética. Por isso as campanhas eleitorais são realizadas via televisão, com vídeos emocionais que reeditam as sensações novelísticas.  

Se a Globo passou durante décadas insuflando as ideias liberais, a Record veio e consolidou o reacionarismo apostando no velho testamento que, inclusive, foi rechaçado por Jesus, embora muitos cristãos não se deem conta disso.   

Hoje, vivemos o drama de ver partidos alinhados ao campo da esquerda votar no perdão da dívida das igrejas. Isso não deveria ser nenhuma surpresa. O sistema eleitoral se alimenta dessas ideias que são plantadas nos cultos e nas novelas. A política telenovelizada não tem pejo em sacanear a população perdoando dívida de um bilhão enquanto os trabalhadores precisam mendigar um auxílio em plena pandemia. A religião romanceada pela telenovela tem sido pródiga em manter os fiéis amarrados aos seus planos de enriquecimento e bem-viver. E isso interessa aos que disputam os votos. É tudo uma questão de cálculo eleitoral. Triste, mas é verdade.  

O perdão da dívida dos ricos igrejeiros, logo cairá o esquecimento. Mas, sobre o povo seguirá recaindo a acusação de alienado, incapaz, massa de manobra de pastores mal-intencionados. O povo, essa abstração para alguns, quer apenas comer, se divertir, gozar, sair do inferno das drogas ou da dor. Por isso busca amparo nos templos, já que não há Estado. Porque lá lhe oferecem isso. Ali está o amor de deus, inculcado pela Record, e o sentimento de que existem ricos que são bons, inculcado pela Globo. Por isso não importa que Edir Macedo tenha uma casa feita de ouro, ele é um desses heróis ricos e bonzinhos das novelas globais. De quebra, é um abençoado pelo deus de Israel. 

Todo esse drama novelístico que vivemos agora na vida real tem sido sistematicamente traduzido nas telas da ficção. A realidade é essa. O pastor, o empresário do bem, o padre, o político espartano ligado ao povo, são os que estendem a mão na hora da angústia, os que salvam. A novela reforça a realidade e por aí segue a malta.  

Por isso a classe dominante seguirá perdoando a dívida das igrejas, garantindo subsídios e mantendo as concessões televisivas com os amigos. Aliados a ela, os oportunistas eleitorais.  

Quem tiver capacidade crítica que pense e se liberte.