quinta-feira, 9 de março de 2017

Ruas bem comportadas não vencem batalhas



A reforma da Previdência está caminhando a todo vapor nos bastidores da política, que é onde, no Brasil, as coisas se resolvem. Se até mesmo o novo ministro do STF foi  sabatinado num jantar faustoso, dentro de um iate de luxo, imaginem como não está a maratona de convencimento dos deputados e senadores. Do jeitinho como sempre foi, promessas de poder e dinheiro nas contas. Cada nomezinho contabilizado. Os senadores, por exemplo, que se aposentam com 180 dias de mandato, recebendo aposentadoria vitalícia, não hesitarão um segundo em votar com o governo. Aos mortais comuns, a regra será de 49 anos de contribuição. Observem bem a diferença: quem vota o projeto se aposenta com 180 dias de mandato. Uma coisa esdrúxula, porque servir a nação num cargo eletivo não deveria ser “emprego”. Será o fim dos velhos. Se não a morte, pelo menos uma velhice bem desgraçada, no último nível da dor. E aqueles que não conseguirem provar contribuição terão de esperar até os 70 anos para entrar com o pedido do benefício por idade.

Enquanto tudo isso é tramado, aí andam as gentes nas ruas, em marchas e passeatas de protesto. Como já andaram gritando “não vai ter golpe”. E teve. Mas, as vozes das ruas não fazem eco nos palácios. Lá, o som da festa ofusca qualquer dor que possa querer saltar pela janela. Não há espaço para a dor do pobre ou do velho. Que se danem. Eles precisam ser oferecidos em sacrifício ao deus capital. É o que garante a riqueza de uns poucos.

Assim tem sido historicamente. O trabalho é a única força que gera valor, portanto, riqueza. Por isso, os trabalhadores precisam ser espremidos até a última gota. É o trabalho não pago da maioria das gentes, a famosa mais-valia, que garante a boa vida dos amigos do “rei”. Assim que não há espaço para compaixão. No início do capitalismo, o alemão Karl Marx mostra como foi a ocupação das terras dos aldeões ingleses para a chegada das ovelhas. Eles foram expulsos sem dó ou piedade, jogados nas fábricas insalubres, sem direito a nada, transformando a família inteira em escrava da máquina. Ou o que fizeram os colonos ingleses na Índia, quando depois de ocupar o país, destruíram todo o processo milenar de tecelagem que havia, para que os indianos fossem obrigados a tecer lã, completamente fora de sua cultura. Não houve ninguém, nos palácios, que se preocupasse com as gentes agonizando nas ruas.

A reforma da Previdência é a versão contemporânea da acumulação primitiva mostrada por Marx. O capital, insaciável e incontrolável, segue consumindo tudo a sua volta. Agora, avançando ainda mais sobre o corpo dos trabalhadores. Que trabalhem e paguem imposto até os 100 anos. Alguém tem de produzir a riqueza e esse alguém não será o 1% que detém os meios de produção, nem os seus lacaios de luxo. E, da mesma forma, não há ninguém entre os ricos que se compadeça dos que morrerão. Eles olharão os corpos e dirão: “era necessário”. Como disseram os escravistas ao longo dos séculos nos quais traficaram pessoas para garantir suas riquezas.

Os deputados estão nesse patamar. Refestelam-se com as sobras do banquete, amealhando alguns milhões. Querem tirar vantagem da posição que estão agora e é por isso que quando chegar a hora da votação ouviremos o “sim” ser repetido 500 vezes ou mais. A reforma do Temer vai passar. Por mais que as ruas gritem e protestem. Os gritos não serão ouvidos, eles sequer fazem cócegas.
A única coisa que pode realmente impedir a reforma da Previdência é a ação efetiva e radical das gentes. Há que derrubar a Bastilha. Caminhadas bem comportadas não vencem batalhas. A realidade já mostrou que o Congresso Nacional não se deterá. Tudo já está acertado. O que vem é a morte. Então, que temos a perder?

É certo que as barricadas não vão aparecer do nada. Há uma longa caminhada para informar em profundidade a população. Um trabalho de base que sumiu do mapa e que ainda não se faz. É tempo de construir a luta não apenas com palavras de ordem, mas com o conhecimento. Ninguém lutará contra o que não conhece. E ainda temos muita gente boa nesse país que não sabe exatamente o que vai acontecer com a aposentadoria. A consciência ingênua, sozinha, não dá o salto revolucionário. É preciso saber com concretude sobre a exploração e conhecer as entranhas do capital para que assome a certeza de que é preciso cortar a cabeça da medusa. Decifra-me ou te devoro, dizia o monstro. E assim é!


terça-feira, 7 de março de 2017

8 de março: as mulheres vão parar


Foi no ano passado, na Argentina. Uma garota de 16 aos foi drogada, estuprada, morta e empalada por dois homens, um de 40 e poucos anos, e outro de 23. A violência do caso levantou as mulheres argentinas que realizaram uma marcha gigantesca para denunciar todo o terror que ainda vivem as mulheres naquele país. 

Mas, a morte de Lucía Pérez também acabou por levantar o véu da violência e da brutalidade que se abate sobre as mulheres em todo o mundo. Desde aí começou a ser articulado esse 8 de março de 2017. A intenção é realizar uma greve mundial de mulheres. Uma parada global para que a sociedade pense sobre o que acontece cotidianamente na vida das mulheres em cada canto desse planeta. Uma violência que não é apenas sexual, como no caso de Lucía, mas também é política, cultural e econômica. 

A mulher sofre com o abuso físico, com o assédio sistemático, com a falta de liberdade para decidir sobre seu corpo, com salários menores do que o dos homens, com a tripla jornada, com o preconceito. É uma lista interminável.

Assim, que nesse 8 de março cada cidade, cada país, cada espaço do globo vai viver seu momento de parada para refletir sobre a situação da mulher. E, no âmago de todos esses dramas particulares, a certeza de que é o sistema capitalista o principal inimigo a ser combatido. Por isso, a parada envolve tantas pautas de luta.

No Brasil, por exemplo, uma das lutas mais importantes é a que se trava contra a reforma da Previdência que está sendo engendrada pelo governo Temer, a qual exige que a pessoa trabalhe 49 anos seguidos para conseguir garantir uma aposentadoria integral. Contra isso, as mulheres vão se manifestar. Também as mulheres camponesas levantam suas foices contra o agronegócio, e as mulheres indígenas vão às ruas pelo território, as mulheres trabalhadoras urbanas por salários dignos. Cada segmento com sua bandeira, mas todas irmanadas na luta contra um sistema que é, por essência, violento e opressor.

O 8 de março se ampara na luta histórica das mulheres operárias que foram queimadas, trancadas dentro da fábricas, onde lutavam por uma jornada menor, na batalha das socialistas que brigaram pelo direito ao voto, na jornada de cada companheira que ousou levantar a voz e o braço contra o sistema patriarcal. Mas, para além do passado, assoma também na solidariedade às mulheres que hoje lutam nas ruas, nas guerras fabricadas pelo capital, nos locais de trabalho, espaços de opressão, e se acomuna com as que erguem a voz para questionar, protestar e elaborar novas liras.

Em Florianópolis, a movimentação começa já às 6h da manhã, com várias atividades no Centro da cidade, culminando com uma marcha às 19h. 

Será um dia de luta, como nunca se viu. E o planeta inteiro vai tremer. 

Confira a programação:

06h30 às 9h: Panfletagem e entrega de fita lilás e apitos no Ticen.

9h às 18h: Tenda do 8MBrasilSC no Largo da Alfândega: TRIBUNA LIVRE para mulheres, debates, exibição de vídeos, atividades artísticas, atendimento com profissionais de saúde e do direito. Informações sobre a Reforma da Previdência. 

12h30: APITAÇO MUNDIAL DAS MULHERES!

13h: Concentração e ATO CONTRA A REFORMA DA PREVIDÊNCIA em frente ao INSS da Rua Felipe Schmidt, com mulheres do campo e da cidade, seguida de panfletagem nas ruas e lojas do Centro.

17h: Tenda do 8MBrasilSC no Largo da Alfândega: Assembleia de mulheres para leitura e aprovação do Manifesto 8MBrasilSC.

18h: Concentração no TICEN para a Marcha das Mulheres em Florianópolis, com saída às 19h.

quinta-feira, 2 de março de 2017

Sobre ser mulher nesse mundo



No dia 8, as mulheres vão marchar em todo mundo

Assisti dia desses um filme indiano chamado Sairat. Dolorosa representação parcial de um país que ainda trata a mulher como uma coisa, unicamente para ser usada pelos homens, seja como mercadoria de troca ou como objeto sexual. O filme é novo, mas aponta para a quase impenetrável lógica das castas ainda em vigor. Quem nasce pobre só pode conviver com os pobres e quem nasce rico, com os ricos. Podem até usar alguns espaços em comum, como é o caso da universidade, espaço no qual começa o drama de um jovem casal. Mas, isso não significa que possam se misturar. 

O filme narra a paixão de dois estudantes, ela filha do cacique local, ele, filho de um pescador. Como é comum aos jovens de hoje, eles pouco se importam com as convenções e proibições. Mas, quem diz que o resto do mundo não? O fato é que o pai da moça já tem um pretendente para a filha, escolhido por ele, segundo suas necessidades, não as dela. E ele vai fazer de tudo para impedir o romance. Não vou aqui narrar as peripécias do casal para viver seu amor, as dificuldades pelas quais passa, a fuga, o enfrentamento com seus próprios preconceitos e valores arraigados. 

O fato é que o filme termina e a gente fica em estupor. Não consegui nem chorar. Foi como receber um golpe no estomago, dois, três, sei lá. Fica-se sem fôlego, sem ar. Dane-se que seja o século XXI. Nenhuma mulher pode decidir seu destino se o pai e toda a família – no seu lado masculino – não quiser. E a gente que vive nesse lado do mundo se estarrece. 

Mas, basta que a gente se ponha a pensar e já podemos ver que essa apropriação das mulheres não é uma coisa que acontece na longínqua Índia, apenas. Não. Ela está aqui, bem do nosso lado, quando um namorado mata a namorada porque ela decidiu terminar, ou um ex-marido mata a ex porque ela se separou e quer voltar a ser feliz. As cultura se diferenciam, mas essa ideia de que a mulher é uma coisa, uma coisa com um dono, se mantém. E olha que não é só no capitalismo não. Nos sistemas regionais de poder que existiram antes do capitalismo global, a mulher também era peça de troca, tal e qual. Jogada para cá e para lá segundo os interesses dos pais e dos maridos. Nem a chamada “revolução sexual” mudou o panorama. Afinal, ser livre para transar com quem se quer não significa liberdade mesmo. Pode-se acabar com um tiro na cara, apenas por que algum macho alfa se arvore no direito de “possuir”, como uma coisa, a mulher. 

Nas guerras, como as que vivenciamos bem agora, no oriente médio, são inumeráveis os casos de estupro de mulheres e até de meninas nas aldeias, nos campos de refugiados. E não apenas no “oriente selvagem”, como afirmam alguns. Não. Nos países europeus, aonde as mulheres chegam fugindo do terror, elas são obrigada a “servir” aos agentes de imigração, aos policiais, aos guardas. Nas prisões de qualquer país, as mulheres são estupradas e violadas quando bem querem seus algozes. Seus corpos são espaços de abusos de toda ordem. E quando elas se alçam em luta, unindo-se e protegendo-se, como fizeram as curdas, quando podem, os inimigos as violam para provar que não há escapatória. 

É por isso que, de certa forma, a mulheridade é uma coisa que extrapola a classe. Pois mesmo na classe alta, no mundo dominante, as mulheres também estão em risco e podem sofrer violências, abusos e violações. Então é comum que assome esse sentimento de sororidade quando qualquer mulher no planeta é atacada, ainda que em outros espaços elas venham a ser adversárias ou inimigas. Parece ser algo que está no DNA. Não dá para não se sentir irmanada a qualquer mulher que venha ser violada na sua dignidade. Nessa hora é o corpo que se expande e se torna útero, disposto a acolher, como mãe, qualquer que seja a mulher em risco. Pelo menos é que o percebo entre as mulheres que vivem ao meu redor. Não sei se na classe dominante o sentimento é mesmo.  

De qualquer forma, é óbvio que na classe trabalhadora o índice de violência contra a mulher é bem maior, porque as mulheres estão em maior vulnerabilidade. E não é só a violência sexual. É justamente a violência de classe. A dependência econômica, a falta de um lugar seguro para morar, a necessidade de cuidar dos filhos, a dura batalha para sobreviver, o jugo dos patrões, as pressões para ser tal e qual o sistema quer, tudo isso é lenha na fogueira para a violência e para o sentimento de que a mulher pode ser tomada como coisa, tanto pelo homem como pelo sistema dominante. 

É por isso que essa é uma luta que precisa ser travada com muito mais intensidade no campo da política. Não é só um assunto de mulher. É um assunto humano. Assunto de todos. Tem de adentrar em todas as esferas e em todas as cabeças.

Tenho plena convicção de que num outro sistema de produção da vida, a mulher fatalmente encontrará um novo lugar. Esse é um processo em construção. Se no mundo antigo a mulher era coisa, se no mundo das grandes civilizações pré-colombianas a mulher era coisa e se no capitalismo a mulher segue sendo coisa, a luta que vem se travando desde os tempos mais remotos já garantiu as condições materiais para a mudança. 

É chegado o tempo de poder ser mulher, e sem medo. Seja aqui, na Índia ou na Conchinchina. Isso passa não só pela sistemática luta por direitos e contra a violência– que é, e sempre será, insuficiente no capitalismo - mas também pela construção de uma nova sociedade. Sem isso estaremos sempre no espaço da redução de danos. E nós merecemos bem mais do que isso.

Agora, nesse 8 de março, as mulheres de todo o mundo estão organizando uma marcha, unificando gritos, lutas, desejos, esperanças. Será um dia em que cada uma de nós estará unida em coração e mente, na construção desse mundo novo. Enfrentar a violência, destruir o capitalismo, esse é o caminho. Não podemos querer só mais justiça, mais respeito. Mais isso ou mais aquilo. O “mais” significa que ainda estaremos dentro do paradigma que queremos destruir. 

Queremos um mundo no qual possamos ser mulher, sem medo, sem opressão, sem exploração, sem violência. Um mundo de justiça, de corpos livres e riquezas repartidas. Um mundo socialista, ou com qualquer outro nome, desde que nele esteja contido todo o ideário dessa generosa proposta de bem-viver. 

domingo, 26 de fevereiro de 2017

Greve dos trabalhadores da prefeitura

Entrevista com Wagner Muniz, trabalhador público que viveu 38 dias de greve em Florianópolis. Uma greve contra a retirada de direitos, contra o corte de mais de 40% nos salários. Uma greve vitoriosa.


terça-feira, 21 de fevereiro de 2017

Povos originários: uma luta sem fim


O cinismo tem sido a marca registrada das autoridades e das pessoas “de bem” quando se trata da questão indígena. O exemplo mais cabal disso é a declaração do novo presidente da Funai, Antonio Fernandes Toninho Costa, indicação do conservador Partido Social Cristão, que declarou: “chega de assistencialismo, agora é preciso ensinar o índio a pescar”. Cinismo e mau caratismo, poderíamos agregar. Desde a invasão, em 1500, que a bíblia vem sendo usada pra oprimir e destruir, bem como o discurso de “integração” tem servido para tentar apagar as culturas originárias.

A história do Brasil ainda precisa ser contada sob o ponto de vista dos povos originários. Mas, por enquanto, o que vigora é a visão do colonizador. Um Brasil “descoberto”, uma gente “inútil”. Para Cabral e seus parceiros, era impossível que povos inteiros vivessem numa terra tão rica sem se importar com a riqueza. Ao contrário de espaços geográficos como México e Peru, onde vicejavam civilizações, na região conhecida como Pindorama as etnias eram coletoras e caçadoras. Não haviam ainda conformado estados ou macro etnias. Como bem conta Darcy Ribeiro,no seu livro “ Os índios e a civilização”  por aqui vicejavam as micro etnias, cada uma com seus usos e costumes. Sua onda era guerrear, caminhar pelo território, viver a larga.

Por isso a chegada dos homens barbudos e vestidos de veludo foi uma alegre novidade. Recebidos com hospitalidade, os portugueses não se importaram em saber quem eram aquelas pessoas, o que pensavam, com o que sonhavam e como viviam. O único intuito dos “descobridores” era encontrar ouro e riqueza. A cultura do saque, como bem mostra Manoel Bomfim, fez morada nesse espaço de belezas.

O primeiro contato foi de enganação. Depois a escravidão. Como os originários não se prestaram à servidão, veio o tempo do massacre. O povo da terra era inútil para os portugueses. Não eram empreendedores, não ligavam para o ouro, não queriam o progresso. Só queriam viver a vida e seguir o rumo natural da sua evolução. Só que a conquista foi uma cunha, poderosa e ferina.

Pelo mar chegaram os ladrões e os homens de deus. Com a cruz, buscavam a salvação dos gentios, sem levar em conta de que eles tinham seus próprios deuses e crenças. Impuseram a fé católica no ferro e no fogo.

Assustados com o terror imposto pelos brancos, os originários foram se internando no Brasil profundo. Mas os brancos eram insaciáveis. Não bastava roubar as terras do litoral, era preciso entrar pelo interior e seguir com o saque e o roubo do território. Foram 400 anos de extermínio. Os originários não se prestavam ao trabalho. Eles eram livres. Então, que morressem. E assim foi. Pelo mosquete, pela cruz e pela doença, assim foram sendo dizimados povos inteiros.

Foi só no início do século XX que o Marechal Rondon, um positivista humanista, decidiu que era preciso acolher os que sobraram, integrar à sociedade, ao novo mundo que se formara nessas terras. E ele adentrou pelo Mato Grosso, Goiás, Amazônia. Tinha um lema: morrer se preciso for, matar, jamais. E assim foi conquistando a confiança de muitas etnias. O problema é que nem todo mundo era Rondon, e a expansão das fronteiras agrícolas e extrativistas  também levavam para as terras indígenas os homens brancos sanguinários e assassinos.

Quando o século XX completou sua metade,  os originários eram pouco mais de 150 mil almas. Muitas etnias tinham desaparecido por conta da violência e do roubo. Havia quem previsse a completa extinção “dessa gente”. Os que sobraram estariam integrados na sociedade, vivendo como brasileiros.

Mas, isso sempre foi uma ilusão do conquistador. O poder era tão grande e o estrago também, que a arrogância já não tinha limite.  O Brasil era uma nação, embranquecida pelo imigrante e pela miscigenação, acreditavam.

Só que enquanto nos gabinetes se celebrava o fim dos povos originários, eles tramavam nos recônditos do país. Organizavam-se, uniam-se, cresciam. E avançavam na luta por território e direitos. Nunca haviam se integrado. Mudaram, é fato, porque foram obrigados a viver no mundo que não era deles. Aprenderam os códigos, sobreviveram, mas nunca esqueceram sua essência. Nas noites claras de lua eles ensinavam seus filhos e netos na tradição, contavam histórias, passavam conhecimento. Darcy chamou isso de transfiguração étnica. Eu chamo de técnicas de sobrevivência na selva branca.

Os povos jamais esqueceram suas raízes, seus deuses, suas tradições, sua filosofia e cosmovisão. Guardaram a sete chaves, repassaram de geração em geração, na memória oral, nas casas de reza, longe da compreensão do homem branco.

E quando todos pensavam que eles já estavam “aculturados”, eles assomam com suas línguas, seus ritos e suas reivindicações. Hoje são quase um milhão de almas.

Não há que ensinar a pescar ao índio. Não há. Ele é quem pode ensinar ao arrogante homem destruidor de tudo que há uma chance de sobreviver nesse mundo, homens, bichos, plantas, planeta vivo. Na harmonia com a Pachamama, no respeito e no cuidado. É o ensinamento que pode salvar o mundo.

Mas, de novo, os invasores seguem acreditando que os originários são um atrapalho ao progresso. “Um povo que não se ajuda”, como definiu um morador de Florianópolis ao referir-se aos originários que reivindicam um lugar para ficar durante sua estadia na capital para a venda de artesanato. Um povo que não se ajuda? Como assim, cara pálida?

Imagine que tu tens um lugar, onde tu vives com tua família. E vem um povo, do nada e te rouba, e mata teus parentes, teus filhos, te expulsa, te confina em reservas como se fosse um bicho, exposto à caridade, tira toda a materialidade que define teu modo de vida. E tu queres o quê? Um povo que não se ajuda?

Os homens e mulheres, filhos originários dessa terra não precisam de tua comiseração, nem de teu anzol, nem de teu peixe. Eles estão determinados a conquistar o lago, garantir suas terras, seu jeito de viver. E estão em luta. Essas pessoas que tu vês nas ruas, vendendo cestos e bichinhos de madeira não estão te pedindo nada. Estão mostrando quem são, evidenciando sua cultura e seu trabalho. Um trabalho ao qual foram obrigados porque lhes tiraram as terras e a vida. Não é proposta do Guarani, ou do Xokleng ou do Kaingang vir para a cidade vender aquilo que é a essência do seu ser. Não é. Apenas ele é obrigado a isso por uma sociedade que já tornou até a sua cultura uma mercadoria passível de ser explorada.

Então não venham com suas bíblias, como nos tempos da colonização, dizer o que é certo ou o que é errado. Não venham vomitar um deus que ao longo dos séculos, para eles, foi um deus de destruição, morte e violência. Ninguém que sofreu a dor de ver sua cultura destruída quer viver no céu dos cristãos. Como Hatuey, o grande cacique Taíno, que foi preso e esquartejado por que não  quis tornar-se cristão. “Se eu ficar cristão vou encontrar essas pessoas no céu?”, perguntou ao padre jesuíta que o torturava. “Sim”, respondeu o padre. “Então danem-se, eu não quero estar com essa gente. Jamais serei cristão”.

É isso. Danem-se. É mais do que hora de as gentes entenderem que os originários têm direitos. Que eles precisam de seus territórios, que são mais do que terra, são espaços sagrados. Eles precisam e vão tomar. Por bem ou por mal. Pode vir o agronegócio, os jagunços, as balas, a PEC 215, o escambau. Eles vão tomar. Não adianta espernear. Pode vir Temer, Funai, Igreja Universal, padre católico, o que for. Esse povo sobreviveu cinco séculos, no silêncio de suas moradas secretas. E estão aí.

Se não gostam de vê-los pelas ruas, danem-se! Se não entendem seu modo de vida, estudem e aprendam. Como diriam os zapatistas: “nunca mais o mundo sem nós”. E é isso!

As prefeituras vão ter de garantir espaço e segurança quando eles quiserem andar e vender seus artesanatos. Tiraram tudo deles e agora quem o quê? Que eles aceitem o roubo de suas terras e de suas vidas. Não vão aceitar. Não aceitam. Estão aí e estão em luta. Seu silêncio não é subserviência nem medo. Seu silêncio é força e resistência.   

Aprendam e preparem-se.


Caso Daniel Dambrowski – UFSC tem autonomia para decidir


Quando a luta é proibida - Greve das 30h detonou a perseguição a Daniel

A procuradoria-geral encaminhou resposta à administração da UFSC sobre o caso da exoneração do trabalhador Daniel Dambrowski, que foi determinada por ele ter sido mal avaliado, mesmo estando em licença médica. Na verdade, conforme denúncias de vários colegas, a exoneração, que aconteceu no último dia da gestão de Roselane Neckel, teria sido uma represália por conta da participação de Daniel na greve das 30 horas.

Com a chegada da nova administração, o caso foi levado pelos trabalhadores a uma assembleia geral, na qual estava o reitor, e ele se comprometeu a rever a decisão e dar mais prazo para que o advogado de Daniel pudesse se manifestar. Isso foi feito, mas o gabinete e a PRODEGESP reencaminharam o processo para a procuradoria, informando que a reconsideração era sobre o parecer anterior, não deixando claro que a reconsideração encaminhada pelo advogado de Daniel não era sobre o parecer da procuradoria, mas sobre todo o processo e seus flagrantes vícios. E foi assim que o processo voltou para a procuradoria, com o recurso sendo analisado de forma equivocada, segundo nosso entendimento.  

No documento, datado de 12 de fevereiro, encaminhado pela procuradoria à administração, a procuradora Alessandra Rezende aponta para o caráter meramente consultivo do órgão e afirma o poder de autotutela da UFSC em rever seus procedimentos e avaliações. Ela também argumenta que não é cabível recurso sobre o parecer anterior, porque o mesmo foi dado dentro do limite de um questionamento relativo ao período de estágio probatório e não do recurso impetrado pelo requerente, considerando, dessa forma, que um pedido de reconsideração possuía caráter protelatório.

Apontou, todavia, à autonomia da reitoria da UFSC em julgar o caso, frisando que “caso a Administração Central entenda ser cabível a revisão dos atos deflagrados, com base no poder de autotutela, possui plena autonomia para deliberar e determinar os procedimentos que julgar pertinentes na apuração dos fatos”. 

Sendo assim, agora, caberá ao reitor  rever o processo e garantir que a avaliação de Daniel seja refeita, sem os vícios apresentados. Daniel foi avaliado em quesitos como assiduidade e pontualidade, por exemplo, quando estava de licença médica. Como ser avaliado se não está no setor de trabalho por conta de tratamento de saúde?  

Para o movimento dos trabalhadores, que tem se organizado sob o lema: “Somos todos Daniel”, a procuradoria foi bastante clara em deixar para a administração central a decisão sobre o processo. E como o próprio reitor Luis Carlos Cancellier já se manifestou no sentido de rever o caso, tudo aponta para que o trabalhador TAE Daniel Dambrowski possa ter uma avaliação justa.  As portas estão abertas à essa real possibilidade.
  
Cabe lembrar que a primeira avaliação qualitativa, quando ele ainda não estava envolvido no movimento de luta na UFSC, foi bastante positiva. Foi a partir de sua ação mais política dentro da instituição, quando ele começou a fazer parte do Grupo Reorganiza, que a avaliação passou a não levar em conta o trabalho que ele realizou fora do setor. Frisa-se que ele foi nomeado por portaria para essa função. E a terceira avaliação, já depois da greve das 30h, na qual ele foi um dos protagonistas, bem como com participação expressiva no Conselho Universitário, fugiu a todo o bom senso, sendo uma avaliação carregada de afirmações não comprováveis e contraditórias na relação com suas avaliações descritivas realizadas na mesma data das avaliações objetivas.

Agora, se só cabe ao reitor decidir, que ele não leve adiante a perseguição e os erros anteriores e garanta que a justiça seja feita.


Agecom recupera status de diretoria, jornalismo valorizado


 Artêmio de Souza, uma vida dedicada à UFSC



Foi no mandato das professoras Roselane Neckel e Lúcia Pacheco, na Universidade Federal de Santa Catarina, que a Agência de Comunicação sofreu a mais dura transformação. Apesar de ser reconhecida nacionalmente por seu trabalho de divulgação científica – pelo qual chegou a ganhar o Prêmio José Reis de Divulgação Científica - e pela consolidação de uma política pública de comunicação, a Agecom foi completamente desmantelada.

A primeira decisão que chocou os jornalistas do quadro foi a de tirar da Agência o status de diretoria. O setor, que durante anos fora comandado pelo jornalista Moacir Loth, caiu em importância, tornando-se uma mera coordenadoria, completamente subordinada ao gabinete da reitora. Não bastasse essa desqualificação do jornalismo profissional da UFSC, a reitora ainda decidiu que uma professora do Curso de Jornalismo deveria comandar a comunicação desde o gabinete. Um baque, visto que historicamente sempre fora um jornalista de carreira que comandara a agência. Nas duas vezes que isso foi diferente, houve luta e protesto. Mas, a então nova administração não deu ouvidos aos trabalhadores e colocou a Agecom em segundo plano, montando dentro do gabinete uma estrutura chapa branca que se destinava a divulgar as ações da reitoria. A Agecom, antes uma fulgurante agência, ficou praticamente sem função.

Apesar de todo o desmonte, os jornalistas do quadro resistiram e seguiram esperando que o tempo passasse. Afinal, não há mal que sempre dure e os reitores e reitoras de plantão também passam.

Pois agora, com o novo reitor, Luis Carlos Cancellier, a Agecom recuperou sua importância estratégica e os profissionais do jornalismo, concursados, voltam a ser valorizados. Um trabalhador de carreira, jornalista, Artêmio de Souza, foi escolhido para ser o novo diretor. Uma decisão que contou com o apoio da equipe, pelo extremo cuidado e competência com que ele sempre atuou na Agência.

Artêmio entrou na UFSC em 1988 e desde então tem desenvolvido um trabalho irretocável. Dono de um texto singular, marcado por fina ironia, ele não apenas se destaca na área impressa como também na televisiva. Durante um bom tempo, em função do próprio desmonte da Agência, ele esteve atuando na TV UFSC, onde inclusive comandava um programa de entrevistas. Seu temperamento tranquilo o faz a pessoa mais certa para esse novo momento da Agência. Devagar, mas com segurança, ele irá garantir à Agecom um novo tempo.

Entrar na Agecom agora já não causa nenhuma tristeza ou estupor. A vida voltou por ali. Os novos jornalistas recuperam o trabalho cotidiano, novas ideias estão surgindo e a comunicação integrada volta a se fazer. Tudo vibra. Nada mais de assessoria específica de reitor, mas uma proposta pública de comunicação, da qual a universidade inteira pode usufruir.

Para o jornalismo, uma boa notícia. Para os jornalistas também, afinal, como já foi em outros momentos, a Agecom poderá voltar a fazer o que lhe é devido: jornalismo, público e comprometido com a sociedade.


Vida longa e próspera para a Agecom e toda a equipe.