sábado, 10 de outubro de 2015

O Sérgio, do Box 40




Vinha de uma jornada num hospital, onde o tempo para, apenas na espera da recuperação da vida. Cansada, triste, sombria. Então, na rodoviária de Porto Alegre, antes de pegar o ônibus para Florianópolis, fui buscar um lugar para comer. Espiei aqui, ali, aquelas "lancherias" ( é como se diz no sul, lanchonete) cheirando a gordura. Não tinha muita escolha. A fome era grande.

Parei numa delas, de nome Box 40. Cabisbaixa, algumas lágrimas insistindo em sair, fiquei ali, esperando o prato. Então, passei a reparar no rapaz que preparava as refeições, bem a minha frente. Cada prato que saía, vinha com alguma tirada engraçada, uma brincadeira, uma espécie de bailado entre ele e a menina que atendia as mesas.  

Acompanhando aquele alegre ritual fui desenferruscando a cara, sorrindo, entrando no mesmo clima de alegria e brincadeira que ele propiciava. Ali estava, num pequeno espaço, fedendo a gordura, possivelmente superexplorado, irradiando tanto riso e bem-querenças. 

Comi minha milanesa, sempre de olho no cara, rindo de suas bobagens. Minha alma foi ficando leve. Quando terminei, paguei e fiz questão de ir até ele perguntar seu nome e agradecer. Sérgio. É assim que se chama. Ficou meio envergonhado quando agradeci pelos minutos de pura alegria que ele me havia proporcionado naquela hora de almoço. Mas, olhando para o dono da casa, que estava no caixa, arriscou: "Viu como as brincadeiras são legais". Eu confirmei. Sim, são legais.

Num mundo cada vez mais perdido de amor, aquele homem, Sérgio, com seu contentamento em simplesmente viver, encheu meu coração de ternura.  Saí dali sorrindo, achada de novo, impregnada de belezas.

Agora, quando voltar a Porto Alegre, ali estarei, no Box 40, com uma milanesa e uma Bohemia gelada, ouvindo a algaravia festiva do Sérgio, no doce desejo de ser feliz. 
 
   

sexta-feira, 9 de outubro de 2015

As alas do SUS nos hospitais privados



Imaginem um hospital no interior, pequeno, privado, com uma pequena ala do SUS, esse incrível sistema de saúde criado no Brasil,  que permite a qualquer pessoa ser atendida gratuitamente. Mas, que, por conta de maus administradores municipais ou de outros âmbitos, acaba sendo no mais das vezes o saguão do inferno. Pois, ali estava eu, num desses hospitais. Poucos médicos na ala SUS, poucas enfermeiras, poucos técnicos e muito doentes. Muitos. Na emergência chegam os estropiados, os quebrados, os urgentes. Os poucos leitos vivem lotados e os que chegam ficam nas macas, nos corredores. Não por maldade dos médicos ou atendentes. Não há vagas mesmo. E se a pessoa não tem dinheiro para um atendimento particular tem de se submeter.

Meu pai foi um desses tantos urgentes que amargou um dia inteiro, entre delírios e fraquezas, deitado numa maca no meio do corredor por onde entram as emergências. Só no segundo dia conseguiu leito, depois de diagnosticada uma infecção renal, coisa que, em velho, tem todas as chances de ser fatal.
O quarto onde agora se trata é simples e coletivo. As coisas estão velhas, mas parece limpinho. Há que destacar o trabalho quase desumano a qual estão submetidas as assistentes de enfermagem. Garotas guerreiras que seguram na força do braço um andar inteiro de gente para trocar, medicar e cuidar. É de emocionar, e algumas ainda conseguem ser humanas, engraçadas e gentis.

Junto com meu pai estão mais outros dois doentes. Um deles é o senhor Brasil, ele está com o pé necrosado e precisa do oxigênio para respirar. É o que está melhor dos três, podendo falar e andar. Negro, pobre, ele não sabe muito bem o que tem. “O médico vem, mas não explica direito, ou eu é que não entendo, não sei”. O que sim, sabe, é que lhe falta o ar e lhe explode o coração. Sem outro recurso, tem de confiar no tratamento que lhe dão.

O outro companheiro de quarto chama-se Marco, é um jovem que está morrendo. “A médica veio aqui e já desenganou ele”, conta a mãe, dona Maria, uma mulher de uns 60 anos que parece ter 80. O corpo magrinho se debruça sobre a cama e ela reza, entre lágrima, ao longo do dia e da noite. Há três semanas ela está ali, acompanhando o filho. E como no quarto coletivo não tem lugar para o acompanhante descansar, ela se encolhe na cadeira fria. Diz que já não há lugar no corpo que não doa. Está sozinha no cuidado, não tem como compartilhar a dor. Quando fala é para reclamar do tratamento do pessoal do hospital. “É triste ser assim, pobrezinha, feínha e velha. Eles tratam mal. Ontem eles me tiraram do quarto pra limpar meu filho. Mas chegam com brutalidade, dizendo sai, sai, como se a gente fosse lixo. Será que eles não têm mãe”.

Na noite de vigília que compartilhamos, chovia à cântaros, e ela se sentiu ofendida com a maneira da enfermeira falar e foi ficar lá fora do hospital, no meio da rua, chorando e clamando aos céus. Uma cena de cortar o coração. As assistentes, penalizadas, tentaram trazê-la de volta, mas ela não quis, preferindo a chuva a ser maltratada. Só no comecinho da manhã, quando o filho gritava por ela, sem parar, é que as jovens conseguiram fazê-la voltar, toda molhada. Ela veio, e ali ficou chorando, chorando, sem parar. Nenhum consolo parecia possível.

Em parte dona Maria tem razão. Há certo descaso com os pobres. Os médicos falam como se estivessem fazendo um favor e, se as perguntas são muitas, fazem cara de irritação e respondem sem paciência. Não explicam. Falam na língua de médico e esperam que as pessoas apenas confiem. Por vezes não é suficiente. Um pouco de ternura com uma mãe, ou um filho, ou uma esposa que cuida do parente, poderia ser muito producente. A gente confia, não há saída, mas custava ter um pouco de compaixão? Parece que eles aprendem na faculdade que não é para ter “envolvimento” com o doente, mas nada impede um pouco de humanidade. “É porque a gente é pobre, com os ricos não fazem isso”, insiste dona Maria. Vai saber, nenhum de nós nunca foi rico.

Outro aspecto alucinante é o barulho durante a noite. Os trabalhadores passam pelo corredor conversando alto, riem, gritam, arrastam máquinas, tonéis de lixo, escadas, pouco se importando se os doentes estão querendo dormir. Parece que eles, os pacientes, ficam invisíveis, e aí se pode entender o significado literal da palavra “paciente”. Não há saída. Estão ali prisioneiros da situação, sem força para sequer reclamar. Há uma perplexidade no olhar de cada um, que já estão assustados pela morte que espia nas portas, e ainda tendo de se submeter a situações tão constrangedoras.

Por isso que a madrugada acaba sendo também um espaço de solidariedade. Os doentes que podem ficam andando de quarto em quarto, procurando saber como está o colega de infortúnio, contam histórias, procuram ajudar. Os familiares que ficam como cuidadores, porque não há serviço de enfermagem, também buscam puxar conversa, se confortar mutuamente, encontrar algum olhar de ternura, de compaixão. É um momento no qual a humanidade se expressa, viva. A tal ponto que alguns fazem a ronda junto aos que estão nas macas e cadeiras, nos corredores, procurando apoiar, levando um café, um pão, para os que ficam esperando quarto, sem apoio de ninguém. É de enternecer.

Assim, os corredores do SUS são universos de tristeza, de abandono, de desespero, de repulsa, mas também são territórios da beleza, da solidariedade, da ternura. Tudo está ali, ao mesmo tempo. E o que sustenta aquele que está parado ao lado da cama do seu familiar é justamente o terno compartilhamento da dor e do sentimento de abandono. Parece que assim, juntos, todos conseguem atravessar, com certo consolo, o caudaloso rio da doença.


Como são longas, tristes e inacreditavelmente belas as madrugas nas alas do SUS. 


terça-feira, 6 de outubro de 2015

As eleições para a reitoria da UFSC



Lendo os "devaneios" do meu colega Helio Rodak, fiquei tentada a alguns pitacos sobre a eleição. Tenho ouvido de tudo nesse ano triste, no qual a universidade ficou parada por quatro meses, por conta de uma greve dos TAEs, que sequer acabou, ainda que esteja nos estertores. Nesse período sumiram os trabalhadores, os docentes e os alunos e o campus, dia após dia, ficou vazio de vida, como se esse não fosse um lugar de efervescência cultural e intelectual.

É fato que a eleição para o cargo máximo da UFSC não encanta ninguém, mas não é correto dizer que não haja candidatos da "massa", se considerarmos que a "massa" é a maioria. É claro que há. E o candidato da massa é justamente o da maioria silenciosa, essa que não se agita, que se esconde, que espia e espera. E que vota no projeto que melhor se identifica com seus desejos, sejam eles egoístas ou altruístas.

Também não vejo como certo dizer que não há diferentes projetos de universidade em disputa. Mas é claro que há. E cada candidato que se apresenta hoje tem deixado muito bem claro qual é o seu. Mesmo aquele que não fala, que tartamudeia, que tergiversa, está expressando seu projeto, porque o que é neutro no meio do rio está a favor do rio.

Eu escolhi o Irineu para meu candidato, não escondo de ninguém, até porque acredito que temos de tomar posição sobre a nossa casa. E por conta dessa escolha tenho ouvido pessoas me dizendo que até votariam nele, mas... E aí vêm os argumentos mais esdrúxulos.

1  - O Irineu não é de esquerda  - Posso até concordar que ele não seja de esquerda, assim, essa esquerda clássica que está nas passeatas, nos movimentos, nos palanques. Mas, o Irineu abraçou as pautas da esquerda como o "Não à EBSERH", as 30 horas, a democratização dos espaços da UFSC, contra as terceirizações, pela recuperação de cargos extintos. E ainda que ele não tenha discursos inflamados, firmou compromisso e, penso eu, vai cumprir. Por outro lado, o movimento de esquerda da UFSC abandonou a luta política dentro do campus. Não há movimento. Sobrevivem alguns indivíduos que, identificados como esquerda, batalham sozinhos ou em outros espaços da luta da cidade. Não há movimento de esquerda na UFSC, as forças segmentadas não se reuniram, não discutiram e não planejaram lançar um candidato. 

2 - O Irineu não é fruto da escolha democrática das massas - Muito bem , estamos de acordo, ele não é. Até porque como já disse ali em cima, não há movimento massivo na UFSC. Pequenos grupos, partidos, divididos, brigando por pequenos poderes. Ao longo de todo o mandato de Roselane não procuraram construir uma proposta alternativa. Boa parte deles aliou-se à atual gestão e outros ficam em cima do muro, num purismo que não ajuda. E além do mais, nenhum outra candidatura é fruto de qualquer outro "debate democrático". Essa é a realidade na UFSC.

.3  - O Irineu não empolga  - E que deveria fazer o candidato? Gritar, gesticular, sapatear, contratar um marqueteiro para esconder seus defeitos e apresentar um boneco palatável aos eleitores? O Irineu é o que é, o que sempre foi. Um trabalhador dedicado, honesto, capaz de incorporar propostas progressistas, disposto a fazer da universidade um lugar bom para trabalhar e viver. Um professor capaz de pensar a realidade, a instituição, a cidade. Quer dar à UFSC o lugar que ela deveria ter em Florianópolis. Um lugar aonde o pensamento aflore e que possa dialogar com os problemas da cidade e do estado.

4  - O Irineu não tem postura de reitor - E o que isso significa? Que ele anda de calça jeans? Que ele circula pela universidade conversando com as pessoas? Que ele é um cara simples, sem arroubos egóicos? Pois bem, o Irineu é isso. Uma pessoa tranquila, de gestos calmos, de vida simples, de falar manso. Em que medida isso é defeito? Precisaria ele ser um arrogante sem coração? Alguém que não olha os trabalhadores nos olhos, que foge pela porta dos fundos? Isso seria uma boa postura para um reitor? Pois a mim encanta que um reitor possa ser sereno, capaz de ouvir o diferente, disposto a dialogar. Essa é a postura que espero de quem vai comandar os rumos da UFSC.

6  - O  debate da campanha é superficial - Ora, pois. A campanha política é o espaço da propaganda. É o momento em que precisamos marcar alguns aspectos do projeto para que o eleitor decida seu voto. O processo de formação política e explicitação de projeto é bem anterior. Ele existe colado na vida e nos atos do candidato. Por isso é importante saber quem é a pessoa que pleiteia o cargo. Como ele viveu sua vida laboral? Que projeto defendeu? Como se comportou diante de determinadas lutas que nos são caras? Eu vi muito bem como se comportaram os candidatos durante a batalha da EBSERH, coisa que para mim é fundamental. E, tirando o Irineu, nunca vi qualquer outro candidato ou candidata participando dos debates e dos atos em defesa do HU público. Irineu não apenas aportou trabalho às comissões de estudo como circulou pelo HU, ajudando na campanha pelo Não. 

Eu poderia ficar aqui, rebatendo cada mau argumento, mas creio que basta. Finalizo dizendo que sim, há projetos claros em disputa. Um é de adequação completa ao modo de ser universidade que aí está, modelo do Banco Mundial (que claramente quatro candidatos defendem, por palavras e atos) e outro que procura encontrar veredas para romper com essa proposta, avançando com democráticos e seguros passos. Pode não ser o revolucionário projeto da esquerda brasileira, mas está disposto a dialogar com ele, no que dele ainda resta, apesar de toda a destruição da esperança.

Se os modelos de projeto não empolgam a massa talvez a resposta esteja justamente no triste processo de desmonte da universidade pública (o projeto em curso). A proposta de educação defendida e levada pelos gestores ano após ano deu nisso aí. Uma universidade calada, fechada no coronelismo, sem pensamento crítico, esperando o grande salvador branco.

A triste notícia é que  não existe o "salvador". Quem nos salva somos nós mesmos, coletivamente, aglutinados  em torno de um projeto que mude essa gosma. Sem isso, seguiremos sendo esse amontoado de pequenos grupos, siglas e lutas particularistas, incapazes de caminhar para o grande meio-dia.  

Eu declaro meu voto no Irineu e insisto. O voto no candidato não nos libera da responsabilidade da crítica. Assim, respondo aos que me dizem: 

- E se o Irineu ganhar, e for uma merda?  

Pois bem, se for uma merda, vamos estar na primeira fila da luta, porque estamos na batalha por uma universidade necessária e não na defesa de uma pessoa. Hoje, é o Irineu que, para mim, encarna essa proposta. Se não for assim, serei a mais feroz combatente. Caminhamos por um projeto coletivo, e assim seguimos.

Ensacando Dias Velho





O dia nascera emburrado, mas no alojamento, o povo já se preparava. Estavam ali há três dias, em intensos debates sobre como sobreviver na universidade. Eram jovens de vários lugares do Brasil, de variadas etnias indígenas. Já tinham discutido o acesso, a permanência, o preconceito, a demarcação das terras, a violência que ainda enfrentam, seja ela sutil ou explícita, como a que vive o povo Guarani Kaiowá, no Mato Grosso do Sul. Tinham também ouvido as experiências de parentes da Colômbia, do México, do Equador e de outros cantos da América Latina.

Haviam compreendido que estar na universidade dos brancos era também uma forma de resistir. Entrar, colocar a cunha, mostrar a cultura, dividir saberes ancestrais. Aprender, mas também ensinar. E, no diálogo com os companheiros latino-americanos, também entenderam que o movimento indígena brasileiro tem de avançar para a criação de uma universidade própria, indígena, para que, aí sim, possa realmente existir o diálogo intercultural. Um desafio que ficou para ser desvelado e superado.

Só que naquela tarde não haveria discussão. Eles marchariam até o centro da cidade, ocupando as ruas com suas cores, danças e cantorias. Florianópolis, tão acostumada a presença silenciosa dos Guarani, haveria de conhecer a garra Tuxá, o grito Xavante, Pataxó, Pancararu. E assim foi. Saindo da UFSC, a coluna indígena foi passando pelos caminhos, incendiando a cidade. As janelas se abriam e caras admiradas surgiam, bocas abertas. O que era aquilo?

Cantando e dançando os estudantes iam mostrando a beleza de suas culturas. Quando chegaram ao túnel que leva ao centro, eles tomaram conta de todas as pistas e, por alguns minutos, bailaram em círculos, com gritos e passos cadenciados. Era a expressão da alegria, o encontro sagrado com as raízes, a apoteose da cultura.

Seguiram caminho até o centro, percorrendo mais de 20 quilômetros e lá, no meio do Mercado Público gourmetizado, ocupado agora apenas por turistas e riquinhos, de novo entoaram seus cantos, no bailado xamânico. As pessoas paravam, admiradas e estupefatas. E os Tuxá puxavam seus cantos caboclos, evocando os deuses das florestas e dos igarapés. Momento mágico.

O próximo passo era o mais esperado. Sob a ponte que liga a ilha ao continente, desde há anos se mostra, arrogante, o colonizador. Uma estátua erguida para homenagear aquele que, conforme dizem os não-índios, “fundou” a cidade: Francisco Dias Velho. Em pé, nariz empinado, segurando o mosquete, o bandeirante matador de índios, que comandou caçadas por todo o sudeste antes de chegar à ilha, olha para o centro da capital e dá nome ao elevado que corta a beira do mar.

Numa correria louca, os estudantes atravessaram a perigosa autoestrada no rumo da estátua. Burlando a polícia que acompanhava a caminhada eles assomaram, gritando como se fossem para a guerra. Num átimo, sem que os policiais esboçassem reação eles já estavam ao pé da estátua. Dois deles subiram no pedestal e a enrolaram numa faixa, na qual estava escrito: DEMARCAÇÃO. Depois, afixaram cartazes com apoio aos parentes Guarani Kaiowá.

Falas repúdio ecoaram frente a estátua do assassino que havia varrido do litoral a presença Guarani. “Homens como Dias Velho ainda estão por aí, com suas armas na mão, matando índio. O massacre de nossa gente continua. Não é possível que continuem fazendo homenagens aos escravistas assassinos.” E, em volta da figura do matador, eles dançaram e fizeram pajelanças. Nenhum passo atrás, a luta vai prosseguir.

Dois dias depois, quando todos já tinham partido da cidade para suas regiões, passei pela ponte e, surpresa, vi a estátua ainda coberta com a faixa. Ninguém se preocupara em desembrulhar. Dias Velho estava cegado pela palavra “demarcação” e só o mosquete aparecia. Antes, como hoje, as armas ainda estão apontadas para os índios. Mas, a diferença é que agora, eles não têm medo algum.  

Que vivam os povos indígenas desse país e de toda Abya Yala.

sábado, 26 de setembro de 2015

Os bebês


O dia mal ia vencendo a noite e ouvi os gritos no portão. Meu nome sendo chamado numa voz apressada. Já era hora de acordar e levantei depressa. Do outro lado me esperavam três crianças de olhar assustado.

- Que foi?
- A nossa cadela deu cria, mas o pai disse que vai matar todos os filhotinhos. Por favor, por favor, fica com eles.

Primeiro relaxei. Não era nenhuma desgraça. Mas, no semblante dos três a impressão era de que o mundo ia se acabar.

- Quantos são?
- Quatro.

Argumentei que tinha os gatos, que eles não iriam gostar, e que os cachorros também poderiam estranhar. Enfim, não podia ficar com os bichinhos. Mas do outro lado, só aquelas carinhas e um repetido "por favor, por favor". De novo ponderei que os bichinhos, que tinham nascido naquele instante , não poderiam ficar sem a mãe. Ela tinha de vir também para dar de mamar. "Tudo bem, a gente traz. O pai não quer mais ficar com ela também. Ele vai matar eles, por favor, por favor".

Aquela altura  já estava toda a minha família (que não é essa da Câmara) no portão, acompanhando o drama. Meu companheiro relutava em deixar ficar os bichos, afinal, já tínhamos outros que escolheram nossa casa para morar. Mas, quem podia resistir ao pedido desesperado daqueles três pequenos?  Os guris já se aviavam arrumando um canto para os filhotes. "Tá bom, traz eles, mas vamos por para a adoção". E o riso veio aliviado na cara deles. Nem ouviram o que eu dizia, saindo correndo para pegar os bichinhos.

Logo estavam ali com os filhotes dentro de uma bacia. Quatro fofuras mais a mãe, uma cadelinha estranhinha e saltitante. Foi ela entrar e perturbar todo o ambiente. Os gatos saiam correndo, os cachorros latindo. Senhor! Que tumulto... Mas, os garotos eram só alegria, os filhotinhos viveriam.

Agora os bichos estão aqui. A Mel amamentando os filhotes, e os cachorrinhos tentando sobreviver nesse mundo tão vazio de amor. Dois dos bebezinhos morreram, não sei porquê, mas os outros dois estão seguindo, fortinhos e barulhentos. Os gatos, que corriam amedrontados, já se acostumaram com a Mel e até arriscam lamber os cãezinhos. Os cachorros acolheram a Mel como se fora uma namorada. Fazem carinho e compartilham a ração sem rosnar. Os garotos vêm todos os dias depois da escola ver os filhotes, fazer carinho e conversar. O maiorzinho até ofereceu vender uns livros que tinha para ajudar na ração. Declinei. "Onde comem dois, comem três. Vai ficar tudo bem". A Mel já pula na minhas pernas e eu nem sei mais se posso ficar sem ela.

Do alto do meu altarzinho de belezas, Francisco, o santo, sorri.

Essa é a vida, nossa cotidiana vida...


quinta-feira, 24 de setembro de 2015

A debutante



A televisão é um mundo surpreendente para mim. Ontem, passando os canais, deparei-me com alguém falando do seu baile de debutantes. "Meu pai trouxe o Caio Castro para dançar a valsa comigo". Bom, o Caio Castro é um artista global e cobra em torno de 20 mil reais para ficar uma hora na festa, incluindo dançar a valsa. Choquei. Que tipo de pai paga um cara para dançar com a filha? E que garota é essa que aceita algo assim?

Divagando sobre isso lembrei do meu baile de debutantes. Fiz 15 anos em São Borja, cidade fronteiriça com a Argentina. Lá, a vida social se dava nos clubes e o baile de debutantes era o ápice. Havia três clubes grandes na cidade. O Comercial, que era o espaço dos ricos, o Recreativo Samborjense, da classe média, e o Esperança, dos negros. Nós frequentávamos o Recreativo e minha mãe insistia que as duas filhas debutassem. Quando me tocou a vez, ainda esbocei resistência. Achava aquilo uma maçada. Uma coisa meio besta. Mas, não teve jeito, minha irmã mais velha já tinha cumprido a tradição e eu não escaparia.

Naqueles dias eu já era quem sou. Bicho do mato. Poucos amigos. Não tinha ninguém com quem dançar a valsa. Mas, tímida e envergonhada por tão pouca popularidade escondi esse detalhe. Todos os preparativos para o baile foram sendo finalizados. Vestido bordado, feito em costureira, convites e tudo mais. Nos ensaios eu mentia que o meu par estava com esse ou aquele problema e não viria. E o tempo foi passando. 

Faltando dois dias para o baile continuava sem a menor ideia de quem seria meu par. Tinha duas saídas. Ou entrava em pânico ou aprendia a gerir meus problemas cotidianos com criatividade e valentia. Ao fim,o acaso me deu um empurrão. No recreio da escola escutei alguns guris falando do baile e um deles saiu com essa: 

- Queria ir no baile, mas não sou sócio. 

Foi a deixa e a salvação. Fiquei à espreita e quando ele se separou dos amigos encostei e fiz a proposta.

- Olha, eu vou debutar e preciso de um par. Se tu quiser, eu posso te por para dentro. Tu entra como meu par. Só precisa dançar a valsa e depois, pode se esbaldar. 

Ele estranhou, não me conhecia direito. Mas, topou. Dois dias depois, lá estava ele na porta do clube, com seu terno preto e gravata borboleta. Com o nome na lista, feito par de debutantes, entrou e esperou a hora da valsa, bem tranquilo, na mesa com meus pais. A cerimônia correu bonita, com rosa para mãe, valsa com o pai e, finalmente a valsa com o par. Como um milagre, ali estava o meu, contrariando todos os prognósticos que eu antevira ao longo dos meses de preparação. E o que era para ser um grande fracasso social e pessoal, passou sem nuvens.

Aquele tinha sido, talvez, meu primeiro grande drama. Chegar ao baile sem um par. E, também contrariando minha própria natureza tímida, eu resolvera de maneira super pragmática, sem que ninguém a minha volta soubesse do fato. Enfrentara e vencera, sozinha e sem alarde. Estava nas nuvens. Dancei a valsa e liberei o rapaz, que curtiu o baile a noite toda. Bruno era seu nome, nunca o esqueci. 

Hoje, tão distante no tempo, percebo que aquela foi uma decisão bonita demais. Minha e dele, ambos vencendo nossas limitações. Isso em muito determina os caminhos que vamos trilhar. Imagine se eu tivesse pedido ao meu pai que arranjasse um par para mim? Toda a determinação para enfrentar os pequenos problemas da vida se perderia. E eu talvez me tornasse uma tola. Naquele dia eu tomei meu primeiro pileque e acho que foi de pura alegria por ter enfrentado sozinha o terror social. Eu não sabia, mas já era uma mulher. Vejo isso claramente na foto que olha para mim do passado e no riso radiante que marca minha cara.


domingo, 20 de setembro de 2015

Ananda Marga - uma experiência de bem-aventurança


Entrevista com o monge Dada Pavanananda, da organização sócio-espiritual Ananda Marga. Ele mora no Campeche, onde oferece práticas de meditação gratuitamente. Também dá aulas de Yoga no Centro Comunitário do Rio Tavares. No programa Campo de Peixe, ele falou sobre a Ananda Marga e sobre os tempos atuais.