quinta-feira, 26 de junho de 2014

Cem anos do contato










Guerreiros xogleng

















Uma crônica de amor

A noite caíra, e Helga seguia espiando pela janela. Esperava ver o homem que havia dias a espreitava desde o mato, poucos metros adiante. A mãe advertira para que denunciasse qualquer movimento suspeito. Mas como dizer suspeito àquele olhar de doce surpresa? Nunca vira ninguém assim, nem sentira esse sentimento oceânico, que lhe enchia o corpo e a alma. “São bugres, perigosos”, dizia o pai, que já mandara seus homens pelo mato para caçá-los. Mas, para Helga, aquele que lhe tomara o coração, era quase um deus.

Foi no princípio do inverno que eles se encontraram. Ela saíra com um cobertor e depositara no lugar onde ele sempre estava. Não imaginava que ele aparecesse. Enganou-se. Devagar, ele saiu do meio das árvores. Ela estacou, sem palavras. Ele sorriu, ela também. E ficaram olhando um para o outro, no encantamento. Ele pegou a coberta e se foi. Ela correu. Desde aí se viam todas as noites. Ela pulava a janela e seguia para o mato, onde ele a esperava. Conheciam um ao outro sob o luar, no toque suave de mãos. Ela amava sua cor de cuia, ele amava a tez branquinha. Ela não sabia o significado das palavras xokleng, ele tampouco entendia as dela. Mas, sorriam e tudo estava compreendido.

Até que um dia, ele não veio mais. Ela temeu. Sabia dos “bugreiros”, matadores de índios. Já vira, inclusive, o tal de Eduardo Hoerhann, chamado de “pacificador”. Ouvira que ele andava convencendo os índios a se integrar ao mundo branco. Parecia-lhe tarefa impossível, tendo eles uma existência tão livre e pura. O pai dizia que eram selvagens, mas a ela parecia que os selvagens eram os brancos. Ouvia e cismava, olhando pela janela, buscando na mata.

Soube, era outubro, que Hoerhann havia atraído uns 400 índios para um posto em Ibirama, mas que ainda havia alguns espalhados pela região de Blumenau. Os “bugreiros” seguiam atuando, caçando os “hostis”. Pensou no homem que amava e soube que ele jamais seguiria para o posto. Era certo que estava morto. Não sabia seu nome, não sabia nada além da doçura de seu olhar e do toque suave de suas mãos. Mas, era o suficiente para uma vida. Quando o pai lhe apresentou o futuro marido, nem piscou. Faria o que era devido. Casaria, teria filhos. Sempre fora assim. A diferença é que ela tivera aquelas noites de puro amor.

Passou todos os anos da vida espiando pela janela. A vila cresceu, as árvores sumiram, tudo desapareceu. Tinha noventa anos quando contou do momento mágico que vivera quando era ainda uma menina. A neta andava metida com gente do Cimi, circulando pelas aldeias do povo Xokleng. Viu na garotinha de cabelos esvoaçantes a mesma guria que fora um dia, na velha Blumenau de 1914. Numa tarde de abril falou do encontro com o homem que lhe roubara a alma. “Era um xokleng, vó”. Sim, era. E vivera dentro dela esse tempo todo. No silêncio.

Agora, nesse junho de 2014, quando a história registra 100 anos da “pacificação”, a neta de Helga escuta pela televisão sobre a luta do povo Xokleng. Eles estão na Barragem Norte, exigindo que o governo cumpra o acordo feito em 1992, quando precisaram também invadir a barragem construída sobre suas terras. Cem anos se passaram e nada mudou. Na mesa ao lado, alguém maldiz: “são os bugres, vagabundos”. Nora pensa na vó, na coragem que teve em viver seu amor, na força que precisou para aguentar a ausência. Olha de novo para os dois casais que sorriem ao lado. “Bugreiros, tal e qual os do passado”. Haverá de passar muito tempo até que realmente aconteça o contato, capaz da pureza e do amor, como o vivido por Helga e o jovem guerreiro Xokleng.

quinta-feira, 19 de junho de 2014

Infernos telefônicos



Parafraseando Manoel de Barros eu estou menos para pedra e mais para socialismo. Digo isso porque fui buscar na memória um tempo em que tínhamos apenas a Embratel. Empresa Brasileira de Telecomunicações. Naqueles longínquos dias era apenas essa empresa que cuidava dos telefones. Não havia as múltiplas opções do capitalismo moderno. No começo, apenas os mais endinheirados podiam ter um telefone, depois, a tecnologia foi avançando e o produto barateando. A empresa, que era estatal, começou também a colocar telefonia no campo. Era uma alegria aquele orelhão nas vendas do interior, nos quais as pessoas faziam fila para falar com os parentes. E o dono da venda acabava sendo o “recadeiro”, fazendo a ponte entre os que estavam fora e a gente do local.

Na cidade, mesmo as pessoas que não podiam ter uma linha telefônica em casa, tinham a sua disposição as cabines da “telefônica”. Elas estavam sempre à mão. Lembro que eu descia a Felipe todos os domingos de manhã, até a antiga Telesc, na Praça em frente ao INSS, para falar com a minha mãe, em Minas Gerais. Não tinha estresse com isso. Ou se tinha o telefone em casa, ou se ia à telefônica. E para falar localmente, os orelhões estavam por toda a parte. E caso se precisasse de alguma informação, ali estavam as moças e os moços da Telesc, em carne e osso.  

Hoje, com a modernização do setor, o que temos? A empresa brasileira de telecomunicações foi sucateada e fatiada. Depois de montar toda a estrutura de telefonia nesse gigante país, foi entregue aos “empreendedores”. O grosso do empreendimento foi estatal, os lucros estavam entregues ao capital privado.  Grandes empresas de telefonia vieram pegar o seu quinhão. “Tudo vai melhorar”, diziam. E àqueles que defendiam o monopólio estatal chamavam de atrasados, uma gente contra o progresso.

Pois aí estão a Vivo, a OI, a Claro, a Tim, com maioria de capital estrangeiro. O que trouxeram de bom? Temos mais opções? Sim. Temos. Mas qual a qualidade dessas opções? Eu luto contra a Oi há mais de um ano, tentando provar – eu tenho de provar  - que pedi para desligar um número que eles insistem em me cobrar. As contas vêm cheias de cobranças de telefonemas que nunca dei. Os planos são verdadeiras armadilhas. Para vender um plano, existem as moças bonitas, os rapazes simpáticos. Mas, para reclamar, ou solicitar qualquer reparo já não há pessoas. Só o infindável pular de um atendente a outro, que te perguntam as mesmas coisas 10, 20 vezes para, ao fim, não resolverem os problemas. Encerrar um serviço é mais difícil que ganhar na loto. Não há lojas com pessoas, só aquelas vozes em gerúndio, que ficam sabe deus onde.

Semana passada encerrei tudo que tinha em casa. Tirei telefone, internet, celular, tudo. Mandei cortar. Agora é esperar para se incomodar por meses, pois certamente as contas seguirão chegando. Oi? “Senhora elaine, a senhora tem de estar pagando para depois reclamar”. E lá vai dinheiro. Pode-se ir ao Procom. Sim, pode-se. Mas tem de ter todos os números de protocolo dos telefonemas dados. Impossível isso. Pode-se também fazer queixa na Anatel. Mas tem de ser via sistema. Não há pessoas. E quem, e são consciência consegue  encerrar aqueles formulários? Eu não!


O mundo coloridos das “opções” não serve pra mim, sou fraca com quantidades inúteis, por isso sou menos pedra e mais socialista. Uma única opção. Uma empresa estatal, com humanos no atendimento. Com todos os seus problemas e limitações.  A vida moderna exige os serviços. E lá vamos pulando. De Oi para Net, de Net para Claro, de Claro para Tim, de Tim para o inferno, e assim por diante. Não há paz para meu bolso, nem para meu coração.  Que os deuses me ajudem!!! Dinossauricamente eu clamo por uma empresa brasileira, que cuide de nós... Que seja mais afeita a gente que a moeda. 

quarta-feira, 18 de junho de 2014

Já estão abertas as inscrições para o 2º Seminário Unificado de Imprensa Sindical



De 6 a 8 de agosto/2014 será realizado em Florianópolis, Santa Catarina, pelo Fórum de Comunicação da Classe Trabalhadora, o 2º Seminário Unificado de Imprensa Sindical. O evento será um importante espaço de debates sobre a imprensa sindical na disputa de hegemonia. O tema do seminário deste ano é: “A Democratização da Comunicação e a luta contra a Criminalização dos Movimentos”. 

Entre os temas que serão abordados estão: Lei de meios – realidade e perspectivas no Brasil e na América Latina; Como andam o jornalismo sindical e as condições de trabalho nas assessorias de imprensa?; A importância da Mídia Alternativa na luta contra a criminalização dos movimentos e a disputa de hegemonia; e A aplicação das redes sociais no jornalismo sindical. O Seminário é voltado para jornalistas, assessores de comunicação, dirigentes sindicais e estudantes na área de comunicação. Durante o evento haverá espaço para exposição dos materiais dos sindicatos. 

As inscrições estão abertas de 9  a 23 de julho.

Veja abaixo mais informações sobre o vento, a programação completa e como se inscrever.

Nos encontramos todos lá! 

2º Seminário Unificado de Imprensa Sindical do Sindprevs/SC

Público-alvo: jornalistas, assessores de comunicação, dirigentes sindicais e estudantes na área de comunicação.

Vagas limitadas

Informações

imprensa2@sindprevs-sc.org.br e imprensa@sinasefe-sc.org.br ou pelos fones (48) 3224.7899 (com Marcela Cornelli, das 13h às 18h) e (48) 3028-5787 (com Luciano Faria, das 13h às 18h)

Inscrições 

De 9 de junho a 23 de julho de 2014 

Valor da Inscrição:  R$ 130,00

(a inscrição cobre a alimentação)

Hospedagem

Sugerimos hospedagem no Hotel Canto da Ilha, local do evento. Fone: (48) 3261-4000 e 3261-4054  reservas@cantodailha.com.br | www.cantodailha.com.br. Endereço: Av. Luiz Boiteux Piazza, 4810 – Praia de Ponta das Canas.

Valores da hospedagem no Hotel Canto da Ilha 

com café da manhã

Quarto com duas pessoas: R$ 150,00 - R$ 75,00 por pessoa

Quarto com três pessoas: R$ 195,00 - R$ 65,00 por pessoa

*preços promocionais somente para quem participar do evento.

* diária inicia às 14 horas e encerra às 12 horas. 

Como se inscrever?

- a inscrição pode ser realizada pelo e-mail: imprensasindical2014@gmail.com, contendo o nome do participante, telefone para contato, cidade/estado e local de trabalho.

- o valor da inscrição deve ser depositado no Banco do Brasil, agência 4236-6, conta nº 7011-4 ou na Caixa Econômica Federal, agência 1078, operação 003, conta nº 333-9. (CNPJ Sindprevs/SC: 782671430001-51)

- o comprovante do depósito da taxa de inscrição deve ser enviado através do e-mail: imprensasindical2014@gmail.com com o nome completo do participante.

- a inscrição só estará confirmada após o envio do comprovante do depósito. 

Programação:   

Dia 6 de agosto (quarta-feira) 

18h30min – abertura

19h - Palestra: O jornalismo sindical na era da disputa pela hegemonia, com Vito Gianotti, Coordenador do Núcleo Piratininga de Comunicação (NPC).

20h30min - Debate

21h – Coquetel de confraternização e lançamento de livro. 

Dia 7 de agosto (quinta-feira) 

9h – Mesa: Lei de meios – realidade e perspectivas no Brasil e na América Latina, com Nora Veiras, jornalista argentina, subeditora da Seção Política do Jornal Página 12, integrante da equipe jornalística do programa 678 da TV Pública da Argentina e condutora do programa diário Manhã Mais da Rádio Nacional Argentina, e a jornalista, Elaine Tavares, mestre em Comunicação Social pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, pesquisadora no Instituto de Estudos Latino-Americanos (IELA/UFSC) e editora da revista Pobres & Nojentas.

10h30min – Debate 

12h – Almoço 

14h – Mesa: Como andam o jornalismo sindical e as condições de trabalho nas assessorias de imprensa?, com Roberto Ponciano, mestre em História, Coordenador de Imprensa da Fenajufe, diretor de imprensa do Sisejufe e um dos criadores da  Revista Ideias; Magali Moser, professora do curso de jornalismo da FURB e jornalista do Sinsepes/Blumenau; e Glauco Marques, ex-diretor de imprensa do Sinergia e comunicador da Rádio Comunitária Campeche. 

15h30min – Debate 

16h – Café 

16h30min - Palestra: A importância da Mídia Alternativa na luta contra a criminalização dos movimentos e a disputa de hegemonia, com Pablo Capilé, do Coletivo Fora do Eixo, e Vívian Virissimo, editora do Brasil de Fato Rio de Janeiro e diretora do Sindicato dos jornalistas do Município do Rio.

18h – Encerramento 

19h30min - Jantar 

Dia 8 de agosto (sexta-feira) 

9h – Palestra: A aplicação das redes sociais no jornalismo sindical, com Gustavo Barreto, jornalista, pesquisador, professor e colaborador do Núcleo Piratininga de Comunicação (NPC).

10h30min – Debate 

12h – Almoço 

14h – Mesa de avaliação, propostas e encaminhamentos

17h – Encerramento

terça-feira, 17 de junho de 2014

Funai reconhece que estado tem dívida com os Xokleng

Entrevista com João Maurício Farias , superintendente da Funai.


sexta-feira, 13 de junho de 2014

Povo Xokleng ainda luta pelo cumprimento de um acordo de 1992












Fotos: Woia Patte










A história do povo Xokleng em Santa Catarina vem do princípios dos tempos, mas o processo de destruição da cultura e da vida desse povo antigo começou em 1771, quando os tropeiros paulistas fincaram as primeiras povoações na região de Lages, expulsando os indígenas. Mais tarde, a chegada dos imigrantes daria novo impulso ao extermínio. Os conflitos com os brancos eram inevitáveis, uma vez que estavam tomando suas terras. Chamados de "bugres", eles passaram a ser caçados como bichos e vendidos como escravos. Terminado o tempo da escravidão, mas já com sua população bastante diminuída, os Xokleng começaram a ser, então, "civilizados". A lógica governamental era a de integrar os indígenas, mas o caminho que escolheram para isso foi o do confinamento em reservas. O processo conhecido como "pacificação" só foi bom para os brancos.

Desde aí, o povo Xokleng vem resistindo como pode.  Como conta o professor José Cuzung Ndilli,  na tal da “pacificação” muitos morreram - por doença ou violência - sobrando míseras 120 almas que, a duras penas, geraram filhos e ainda mantêm as tradições originárias. Mas, a batalha por uma terra própria, capaz de garantir a sobrevivência das famílias é muito semelhante a da maioria dos povos indígenas do Brasil. Tem de ser travada todos os dias e contra todos os interesses. Passados séculos da invasão que lhes tirou o território, eles ainda precisam se levantar em rebelião cada vez que precisam defender um direito básico.

Nos anos 70, os Xokleng mais uma vez foram retirados de seus espaços de vida por conta da construção de uma grande barragem, a Barragem Norte, em José Boiteaux. Essa obra acabou alagando grande parte do território e, mais uma vez os indígenas foram deixados à própria sorte. Muitas das promessas feita à época da construção da barragem não foram cumpridas, o que obrigou os Xokleng a ocupar o canteiro de obras em 1991. Foi a primeira vez que o estado de Santa Catarina percebeu que esse povo de história larga ainda resistia e brigava por seus direitos. Como todos sabem, quando os índios estão quietos nas suas aldeias, fala-se deles no 19 de abril, mas, se decidem lutar por direitos, voltam, outra vez, a ser vistos como "selvagens", incapazes de compreender o progresso.

Ora, os Xokleng compreendem muito bem o que é o progresso. O têm sentido na pele desde o século 18. Mas, o fato é que desse pretenso "desenvolvimento" eles não fazem parte. Seguem aldeados, em condições precárias, tendo de mendigar o que deveria ser um direito garantido. Desde o alimento até as condições dignas de moradia, saúde, educação. Para os brancos que vivem suas vidas nas terras ocupadas, isso passa desapercebido. E é por isso que os Xokleng, volta e meia, empunham suas armas e marcham na direção da conquista do que lhes garante a vida.

Por uma coincidência irônica, nesse ano de 2014, completam-se 100 anos do início da saga da "pacificação" realizada por Eduardo Hoerhan, na época (1914) à frente do Serviço de Proteção ao Índio em Santa Catarina. Naqueles dias ele prometia uma vida de paz aos Xokleng. Uma vida que não veio. 

Nessa semana, as chuvas torrenciais que caíram em Santa Catarina alagaram o território Laklãnõ, coisa que todo mundo sabia que iria acontecer com a construção do lago da barragem, que foi imposta nos anos 70. Uma enchente a mais, poderia alguém dizer. "Pequena e rápida", como afirmou o governador Raimundo Colombo. Mas, para quem vive esse drama desde anos, sem que nada seja feito, a história é outra. Os Xokleng não recebem obras de infraestrutura ou de contenção. Os Xokleng não dormem em camas quentes de palácios governamentais. Eles estão entregues à própria sorte. É por isso que lutam.

Com as terras alagadas e isoladas, eles partiram na noite de quarta-feira para a Barragem Norte e trancaram a passagem. Se aquela obra foi o símbolo de mais um onda de destruição da sua gente, eles já sabem que é lá que as batalhas precisam ser travadas. Única forma de os governantes olhares e enxergarem as demandas indígenas.   Então, quando eles se mexem, mexem-se também as forças de repressão. Em primeiro lugar, proteger os "bens". Depois, as gentes. E se essas gentes forem índios, bem, aí pode esperar mais um pouco.

Assim, os Xokleng enfrentaram mais uma batalha.  Só na quinta-feira o governo resolveu agendar uma reunião. Cíntia Núbia Moraes, cacique interina, insiste que já é hora de se cumprir o protocolo de intenções assinado em 1992, quando os Xokleng precisaram ocupar a barragem para serem escutados. O não cumprimento total do acordo até os dias de hoje mostra o quanto esse país se importa com a vida indígena. Ela lembra que no dia 28 de outubro do ano passado foi protocolado um documento no Ministério da Integração pedindo respostas, e o governo havia prometido uma em 20 dias. Já se passou quase um ano e nada. "A gente vê que sem o movimento, sem esse barulho que é feito, a gente não consegue as coisas. A gente vive como cozinhando um alimento duro: só na pressão. Nós temos nossos direitos e exigimos que nos respeitem", diz Cíntia.

E ela tem razão. Bastou os Xokleng marcharem para a Barragem Norte e as autoridades já se movimentaram.  Ítalo Goral, da Secretaria de Desenvolvimento Regional, que recebeu os indígenas na quinta-feira disse que reconhece a justeza das reivindicações. Ele reconhece que as casas foram alagadas por conta do nível da barragem, que ficou muito alto com as chuvas. Jonas Pudwel, prefeito de José Boiteaux também esteve na reunião e prometeu auxiliar com as estradas, embora reconheça que a prefeitura não tem sequer os equipamentos adequados para agir em casos como esses. "Quando a barragem baixa, o prejuízo fica aqui. Os governos estadual e  federal têm de cumprir suas promessas. Além disso, a obra da barragem foi mal feita. E agora, quem vai pagar por isso? Quem vai garantir que a obra seja refeita para que isso não mais aconteça?", apontou.

Hoje nova bateria de reuniões será realizada, com promessas e que tais. Muitas casas na aldeia ainda estão submersas. Há famílias ilhadas. As estradas seguem sendo um terror. As medidas paliativas serão tomadas. Como sempre. Mas, há coisas a tratar para além do emergencial. A Barragem Norte mostrou suas falhas, tal qual foi denunciado durante sua construção, denúncia que ficou no vazio porque era feita por índios ou "eco-chatos". Quem vai arcar com isso? Serão necessárias novas chuvas e novas tragédias? Será preciso que alguém morra? E o protocolo firmado em 1992 será ou não respeitado? Até quando o governo federal vai adiar o seu compromisso com os Xokleng?

Na pequena José Boiteaux, onde estão as aldeias, a vida seguirá. Os indígenas, na sabedoria milenar do silêncio, se recolherão para lamber as feridas. Mas, não se enganem. Enquanto viva, essa gente guerreira vai lutar por seus direitos. 

Em nome de deus


Santa destruída em uma igreja de Montes Claros  - MG

No dia em que morreu havia parado, como sempre, para conversar com Idaléia. Ficara mais de hora, na tarde modorrenta de maio. Gostava da guria. Casaria com ela, pensava. Depois, atravessara o campinho até o mercado, onde compraria pão e leite.  Assoviava um ponto de macumba, distraído. Não sentiu dor. Só a sensação de explosão, como se múltiplas luzes piscassem de forma brutal. Enquanto caia, ouviu uma voz: “matamos o feiticeiro”. Não entendeu! 

No átimo de tempo entre as luzes e frio do chão, Artur passou a vida em tela. Viu-se à beira da sanga, no interior do Rio Grande, cantarolando a mesma cantiga que a mãe. Ela lavava a roupa devagar, com as pernas negras e luzidias estendidas na margem. Tinha porte de rainha e riso de pérolas. Nas noites escuras lhe contava as histórias dos orixás. “São deuses?”, perguntava. “Sim”. Cada um guardava algo do sagrado: as águas, os ventos, os raios, os trovões, a luz. “Mas e esse, do qual fala o padre Miro?”, insistia, confuso. “É outro deus. Existem muitos deles. Cada povo tem os seus. E é bom que sejam muitos, porque assim não nos aprisionam”. 

Na escola, o padre dizia: “só há um deus verdadeiro. Os demais são `falsos ídolos´, só Jesus salva”. E o guri apavorava, temendo que a mãe ficasse fora do céu. Ela ria: “não tem sentido um povo eleito. Que deus seria esse que escolhe uns e não outros? Seria como eu gostar mais de ti que da tua irmã. Não, não, não. Há deuses em tudo que vive, assim, nenhum nos domina”. Aquilo era pura teologia.

O tempo passou, ele entendeu. A religião tinha de ser libertadora. Re-ligare. Ligar com o sagrado, com o profundo em nós. Quem disse que precisava existir um deus?  Ele vira que o monoteísmo (religião de um único deus) fazia era mal. Quantas guerras, mortes e maldades foram realizadas por conta do deus único? Quantos terrores foram impingidos em nome de ser um povo escolhido? Não, de fato era melhor viver na harmonia com a vida, encontrando as coisas sagradas em tudo o que há. 

Agora, já homem, ele via na televisão alguns pastores dizendo que alguém estava “possuído” pelo diabo. E outros dizendo que “deus”, o único, repudiava os homossexuais, porque eram anormais. E outros que pregavam ódio aos negros, aos índios, aos ciganos, ou a qualquer outro que não fosse igual. E outros que diziam que os deuses dos outros eram o próprio demônio. E se arvoravam em sabedores da verdade verdadeira, ditada por deus, o único. Ele se recolhia e seguia vivendo na harmonia com a terra, estabelecendo vínculos sagrados com cada coisa viva, as auroras, os entardeceres, as noites escuras, o sol. E quando chegavam os solstícios e equinócios ele dançava, nu, no quintal de casa, revivendo antigos rituais de amor com a vida. 
Era um homem comum na pacata vila. Um funcionário público, cumpridor de deveres, pagador de contas. Brincava com as crianças, ajudava os velhos, cuidava dos bichos. Seu rosto era plácido, terno e rescendia a pureza. Ninguém lhe prestava atenção até o dia em que uma das mulheres da igreja próxima o vira dançando entre tochas de fogo, fazendo amor com a terra. “É o capeta”, espalhou.

E, do nada, os bons cristão da vila começaram a hostilizar o homem que amava a terra. Ele não entendeu, mas seguiu a vida. Até que naquela tarde, alguns lhes arrebentaram o crânio com um pedaço de pau. Ele suspirou e, entre luzes, pareceu ver a mãe, com seu riso de pérolas a lhe estender os braços. Os vizinhos entraram na casa em busca das coisas do diabo. Tudo o que acharam foi um lar, simples e limpo, de alguém que só tinha amor no coração.   


terça-feira, 10 de junho de 2014

A Banda Parei




















Poucas coisas ainda mexem com o meu coração no que diz respeito aos Sintufsc. Uma delas é a Banda Parei. Ainda vivem na minha memória aquelas noites da greve de 2001, com os trabalhadores acampados no NPD, envoltos em cobertores, o Assis em alvoroço, a Mida cozinhando,  e a gente pensando sobre o que fazer. Eis que, então, tivemos a ideia de criar uma banda, sem muita pretensão, apenas para infernizar a vida da administração e dos colegas que ainda não tinham parado. A proposta veio da incansável guerreira Ângela Dalri. Nosso modelo eram as caminhadas do povo argentino, sempre barulhentas e alegres.  Discutimos no comando e a assembleia aprovou. Em poucos dias lá estavam os tambores, os pratos, as tarolas e, sob o comando do Pepê, a Banda foi se construindo. O Moisés Eller deu o nome: Parei! Não demorou muito e as gentes estavam incorporadas. Cada um queria aproveitar e fazer o barulhão. Eu, a Terezinha, a Nilza, o Ivalter, a Valdete, o Marlove, o Eduardo, o Batinga e tantos outros companheiros queridos.

A Banda Parei começou a circular pelo campus, e sua batucada meio desarticulada chegou a levantar a ira do professor Espíndola, porque passávamos pelo laboratório de som e perturbávamos as pesquisas. Foram dias de muito conflito, mas de muita beleza. Depois, a Banda começou a ser levada para Brasília quando tinha caravana e, em pouco tempo, já era uma referência nacional. A Banda Parei liderava as caminhadas e dava  colorido para as lutas, normalmente sérias demais. Marcava presença, inclusive, nos Gritos dos Excluídos, puxando as marchas  e alegrando os atos de protesto.

A Banda Parei foi uma das coisas que permaneceu ao longo do tempo, mesmo depois que o sindicato passou para as mãos de outro grupo. Venceu a beleza e a alegria, sem dar lugar a sectarismos. E é assim, que desde aquele vitorioso ano de 2001, essa banda tem sido a sentinela de toda a luta que se trava aqui na UFSC. Basta que se anuncie a rebelião e lá vem ela, com seu barulho infernal, ora desarranjado, ora arrumadinho, mas sempre arrasador.

Hoje, na assembleia, na qual esperávamos a vinda da reitora, a Banda Parei, mais uma vez, derreteu meu coração. Antes dos trabalhos, a alegre banda passou em revista, circulando pelo auditório, como fazendo um chamado para a luta. O toque firme do tambor é como o toque do coração. Ele vibra na corda mais profunda e nos mostra que passe o que passar, a vida segue brotando. Entre os "tocantes" muitas carinhas novas, misturadas às "velhas". A certeza da renovação.

Lá no longínquo 2001, quando, entre lágrimas,  realizamos a última assembleia com o desmonte do acampamento do NPD, foi a Banda Parei que abriu o caminho para aquele dia de vitória. E desde então, o batuque do tambor tem se misturado a essa batida vital que mantém acesa a luta de todos nós.

Tenho certeza de que passe o que passar, nossa universidade manterá vibrando esse som, que é o som da força, da valentia, da resistência, da alegria, do compromisso. Depois, quando minha pressão subiu a 15, ao final da assembleia, eu vim andando, pensando: "Y bueno, se eu passar dessa pra melhor, que seja a Banda Parei a fazer a batucada da minha semeadura".

Para além de todas as divergências, a Banda Parei é dona do meu coração.