quarta-feira, 29 de agosto de 2012

As batalhas no Chile


No último mês de agosto tem sido assim: praticamente todos os dias os estudantes chilenos saem às ruas a protestar e exigir gratuidade na educação. O Chile que até bem pouco tempo era mostrado como a menina dos olhos do neoliberalismo mostra as rachaduras de um sistema que exclui a maioria, enquanto enriquece a elite entreguista. Como o país viveu muito tempo mergulhado numa ditadura brutal e sanguinária (Augusto Pinochet), os reflexos desse estado de exceção repercutiram nas gerações seguintes levando ao medo e ao silêncio. Mas, agora, os estudantes, principalmente os do ensino secundário, resolveram batalhar pelo direito de estudar com qualidade e sem os altos custos da educação privada.

As primeiras grandes revoltas começaram no governo da socialista Michele Bachelet, em 2006. Quase um milhão de pessoas foram às marchas e aos protestos de rua. A revolta contra a privatização do ensino foi puxada pelos secundaristas e ficou conhecida como a “revolta dos pinguins”, numa alusão ao uniforme usado pelos alunos. Naqueles dias um garoto de 16 anos foi morto pela polícia e o país se levantou. Desde então, as lutas não param. Arrefecem um pouco, mas depois voltam à carga. Em 2011, já durante o governo de Sebastian Piñera, reconhecidamente um linha dura, os protestos revelaram a bela líder estudantil universitária Camila Vallejo, que nos dias atuais ocupa o cargo de vice-presidente da Federação de Estudantes das Universidades do Chile, cedendo passo a novas lideranças. E, agora, em 2012, as grandes manifestações voltaram com força, de novo puxadas pelos secundaristas. Todas elas com toda carga de repressão bem típica dos tempos da ditadura. Grandes contingentes policiais e aparatos bélicos para enfrentar meninos e meninas saídos da escola.

Na última semana os jornais chilenos estamparam denúncias de abuso sexual por parte de policias em garotas presas durante os protestos. A comunidade está em pé de guerra. Porque, afinal, a gurizada não se intimida com as prisões e segue se expressando nas ruas, como sempre contando com a adesão de sindicalistas e outros movimentos sociais que convocam greves e paralisações para acompanhar os protestos.

No campo da economia o Chile segue apresentando números recordes de crescimento e a população quer ver esses números expressos em serviços públicos. Mas, isso não acontece. A saúde pública é um fracasso, a educação perde qualidade, foi municipalizada e não recebe investimentos, a universidade só pode ser cursada por quem tem muito dinheiro ou se dispõe a alimentar uma dívida gigantesca. Por isso a juventude trata de batalhar por um futuro digno. Os estudantes já se deram conta a bastante tempo que o tal do “sonho liberal” só é sonho para alguns. A maioria está submetida à falta de qualidade nas escolas pagas e à exclusão.

Assim é que a batalha nas ruas, que levam milhares aos protestos, exigem mudanças radicais no processo educacional, tais como democracia, qualidade e gratuidade. No rastro dessa massiva revolta dos pinguins, vêm os universitários, professores, sindicatos e movimentos sociais. Eles aproveitam para reivindicar a refundação do estado chileno, ainda eivado de leis oriundas do regime ditatorial. Para se ter uma ideia, o povo Mapuche, comunidade originária que vive no Chile e reivindica território e autonomia, tem sido perseguido e aprisionado com base nas leis de segurança nacional do tempo de Pinochet. São encarcerados como terroristas. Não é sem razão que toda a comunidade chilena esteja reivindicando uma nova Constituição para o país, afinal, o mundo mudou, o Chile mudou e as gentes de hoje já perderam o medo.

O presidente Sebastian Piñera tem sido muito duro no trato com os estudantes assim como com os indígenas. Seu governo – reconhecidamente de direita – vem perdendo popularidade, mas, ainda assim não oferece solução para o problema da educação. Mesmo em meio ao fervo dos protestos ele insiste que não vai tornar pública as universidades. A queda de braço vai continuar.

As eleições e a outra campanha




Quando em 2005, às vésperas de mais um pleito eleitoral que iria eleger o presidente do México, o movimento zapatista lançou a "outra campanha", não foi poupado pela esquerda tradicional. Chamados de traidores e, depois, como responsáveis pela derrota de Lopez Obrador (candidato mais à esquerda), os zapatistas nunca se intimidaram em defender aquilo que acreditavam melhor para o México naqueles dias. O contexto de tudo isso é que o povo do sul do país - fundamentalmente os indígenas e camponeses - sempre estiveram esquecidos do poder público. E, como em todo o chamado "mundo democrático", em época de campanha eleitoral, não eram poucos aqueles candidatos que apareciam dizendo que iam melhorar isso e aquilo. Eleitos, nunca cumpriam.

Nos anos 80, os indígenas de Chiapas decidiram iniciar um movimento de base para recuperar sua autonomia e sua dignidade. Já estavam fartos de promessas não cumpridas e de seguir amargando  a miséria e o abandono. Esse movimento cresceu, se consolidou e, em 1994, quando o mundo capitalista cantava em verso e prosa o fim de todas as utopias, os índios de Chiapas ocuparam, armados, 12 cidades do México. Cobertas as caras  com lenços vermelhos e pasa-montañas (gorros negros) - porque eram todos iguais - eles lançaram a sua palavra: "nunca mais o mundo sem nós". Durante 12 dias combateram as tropas do exército e ao final desse prazo, o governo foi obrigado a ceder. Desde aí, os zapatistas se mantém em paz armada, construindo uma forma diferente de organizar a sua vida em várias cidades autônomas. Estão, é claro, inseridos na "democracia" mexicana, mas, de alguma forma, a duras penas, conseguem levar a diante seu projeto de mundo, sempre no embate cotidiano com o governo neoliberal e entreguista.

A "outra campanha" durante a campanha eleitoral de 2005 foi, de novo, uma outra forma de encarar a tal da "festa democrática" que, no mais das vezes apenas dá o direito do voto ao povo, mas sem que haja o compromisso real com as demandas das gentes. O mais comum é ver os candidatos fazerem promessas, jogarem palavras ao vento e, ao serem eleitos, voltarem as costas aos que os elegeram, governando para pequenos grupos de poder que, no mais das vezes, são os mesmos que injetam dinheiro nas campanhas. Assim, os compromissos financeiros com as empresas são cumpridos à risca, enquanto o povo, fonte real do poder, é deixado às moscas.  Na "outra campanha", durante meses, o sub comandante Marco viajou pelo país fazendo esse debate. Discutindo política, conversando com as gentes sobre essa situação, sobre o sistema eleitoral, sobre a farsa do processo, sobre o não comprometimento dos candidatos. Um trabalho de desvelamento desse misterioso sistema de eleição democrática que, de democrática, não tem nada. Ele dizia: "O processo eleitoral a começou e alguém virá a dizer que sim, nos apoiam e que iram resolver tudo. Nós vimos a dizer que eles não vão resolver absolutamente nada e nem os vemos trazer soluções, se não problemas, e o convidamos de que nos juntemos com os companheiros que estão alçando em outras partes do país para construirmos o novo México".

Essa que foi uma decisão tão criticada, talvez seja mesmo a melhor forma de enfrentar o período eleitoral. Não é a "vontade" de alguns candidatos que faz mudar - pontualmente - alguns aspectos da vida do povo. Como bem lembra Karl Marx, no livro Glossas Críticas marginais ao artigo  "O rei da Prússia e a reforma social", os males sociais não podem ser explicado pelo intelecto político, já que esse é a expressão teórica da perspectiva da classe burguesa. Um exemplo disso é o transporte coletivo de Florianópolis. A maioria dos candidatos à prefeito insiste que vai melhorar a viabilidade urbana desde planos mirabolantes de "reformas" no sistema, tais como a quarta ponte, o transporte marítimo, o BRT, sem mexer na lógica que constitui a cidade para os carros.  Ora, a seguir a linha de Marx, a raiz dos problema do transporte público, assim como da falta de moradia, falta de estrutura na saúde, na educação, acaba sendo buscada em vários lugares, menos onde ela efetivamente está - que é o modo de vida liberal/burguês. E é por isso que o caminho é sempre uma reforma, um remendo, e nunca a revolução. Marx ainda orienta: enquanto os trabalhadores se moverem pelo intelecto político, as lutas serão mal orientadas. Assim, quando um político  - mesmo de esquerda - propõe substituir uma forma de governar por outra - dentro do estado burguês e sem transformações estruturais  - está pensando apenas no ponto de vista da política e não do social. Com isso apenas desorienta teórica e e praticamente a luta dos trabalhadores.

Marx aponta também que o trabalhador, ao se alienar no trabalho e na batalha cotidiana para vencer seus obstáculos, não têm condições de pensar a cidade. Está fora não só da comunidade política, mas também da comunidade da vida mesma, a vida física e espiritual, "está separado da essência humana".  É por isso que Marx reivindica a necessidade de uma revolução social com alma política. Diz: "A revolução em geral - a derrocada do poder existente e a dissolução das velhas relações - é um ato político. Por isso, o socialismo não pode efetivar-se sem revolução...No entanto, tão logo tenha início a sua atividade organizativa, logo que apareça seu próprio objetivo, a sua alma, então o socialismo se desembaraça do seu revestimento político".

Tudo isso é para dizer que o período das eleições, como bem perceberam os zapatistas, é um momento muito fértil para se discutir política, a grande política. Não dá para cair na armadilha de confiar apenas nas pequenas e, muitas vezes, irrealizáveis promessas que os candidatos de todas as cores fazem. Se a proposição real não for a organização de outra forma de sociedade, sempre estaremos arriscados ao engano.

Em Florianópolis, e em vários lugares no Brasil, há grupos pensando nessa lógica da "outra campanha", e isso mostra maturidade política. Mas, isso deve se espalhar pelos bairros, nas associações, nos sindicatos. O debate não pode ser só o de votar nesse ou aquele candidato que vai resolver pequenas demandas do nosso bairro ou da nossa rua. A cidade precisa ser pensada como um todo e é necessário que as gentes percebam que os males sociais que nos tocam não são relativos à imperfeição humana, a falta de recursos ou incompetências administrativas - como diz Ivo Tonet, no prefácio do Glossas Críticas. O que Marx tenta nos mostrar é que esses males não são defeitos da "matrix", mas absolutamente inerentes ao modo de vida burguês, capitalista. Levar essa reflexão e garantir a compreensão disso pode ser muito mais eficaz para a vida numa cidade do que eleger um ou mais enganadores.

Há quem salte, acusativo: Mas, então, votar não adianta? A resposta é uma só: sim, não adianta. Se um povo acredita que pelo simples voto, pela simples entrega das decisões nas mãos de um "prometedor", as coisas vão acontecer, está enganado. A pessoa pode votar sim, em quem acreditar, fazendo o movimento de pequena reforma. Mas, sabedora de que os males sociais são causados pelos sistema em si precisa se manter alerta e conectada nas lutas coletivas. Não por reformas, apenas, mas por também por revolução. A mudança total do sistema.  trocar um governo por outro não resolve... Já vimos esse filme, há que mudar o sistema.

terça-feira, 28 de agosto de 2012

Das entranhas do norte, se levantam as gentes...


Famílias moradoras de comunidades do norte da ilha de Santa Catarina lutam por moradia - na foto, povo do Papaquara enfrenta enchente e despejo

Quem passa pelo norte da ilha de Santa Catarina pode até pensar que está em Miami. Jurerê Internacional ostenta luxo e futilidades. Ali, no alto verão, jovens lavam os pés com champanhe nos “lounges” cobertos com linho egípcio. Em Canas'vieiras, assim como nos Ingleses, os turistas circulam por entre prédios de luxo e agitadas baladas. O mar, tranquilo e quentinho, foi a beleza vendida nos anos 80, quando a região iniciou uma explosão imobiliária, que alterou de vez a cara interiorana do lugar. Pescadores foram iludidos com a força da grana e, logo, expulsos da praia. A orla especulada virou mercadoria, espaço dos ricos.

No final dos anos 90, a ilha seguia seu processo de inchaço. Sem condições de vida melhor no interior de tantos estados desse imenso Brasil, outras gentes foram também atraídas pelas belezas da ilha, cantadas em verso e prosa na televisão e nas revistas nacionais. Mas, esse povo, sem posses, nunca foi alvo das empreiteiras. Para eles não havia anúncio de prédios, nem deliciosos reclames de vida boa à beira mar. Mesmo assim, eles vieram, e exigiram seu espaço na cidade. Como diz a moradora do Papaquara (uma comunidade de ocupação), Marisa Moreira: “nós somos brasileiros e cada pedacinho desse chão também nos pertence”.

E esses que chegaram buscando vida melhor foram se ajeitando como podiam. Ora morando com um parente, ora ocupando espaços públicos ou áreas de preservação. Muitos deles sabiam que era um risco entrar nas terras devolutas, mas, que fazer? Com os filhos à tiracolo, com a vida para ganhar, qual opção? E, assim, foram se formando novas comunidades de periferia, boa parte em áreas de risco. Foi assim para os que ocuparam as dunas dos ingleses ou a margem do Rio Papaquara. Na Vila do Arvoredo, a areia vai aos poucos comendo os barracos e na margem do rio, a enchente foi roubando tudo o que o povo tinha até que em 2011, depois de mais um alagamento, quando ainda se recuperavam da desgraça em abrigos públicos, acabaram definitivamente despejados. “Eu nem pude ver a minha casa. Quando saímos do abrigo, já tinham demolido tudo. Se foi tudo o que eu tinha”, lembra Josinei Plácido.

Mas, quem pensa que essa gente guerreira fica por ali chorando as pitangas, se engana. Não, eles se juntam e se organizam na luta pela moradia. Aprenderam na escola da vida que só a luta renhida faz avançar a existência daqueles que, de seu, só dispõem dos corpos e da força de trabalho. Por isso, quando é noite, por entre os caminhos de areia pode-se ver o carreiro de gente andando para as reuniões. Desde há meses que eles encontraram na força de uma militância nova, as Brigadas Populares, o entusiasmo que faltava para a luta coletiva de todas as comunidades do norte da ilha que estão na batalha por uma casa digna para morar.

Foi assim que a luta mais antiga, do povo da Vila do Arvoredo, pode se juntar com a peleia dos moradores do Morro do Caçador e dos despejados do Papaquara, todos moradores do norte da ilha. A ideia era realizar uma manifestação conjunta no norte da ilha, para fazer visível essa luta que é travada nos cantões da ilha, despercebida pela imprensa e desconhecida da maioria. Foram muitos encontros e reuniões. Muita conversa e muito debate. Tudo acertado sem pressa, buscando acertar cada aresta, cada dúvida, cada desesperança.

Então, na quinta-feira, dia 23 de agosto, o povo que passava apressado pelo terminal de ônibus de Canasvieiras, parou. É que ali estavam as famílias que vivem no rico norte, na parte pobre. Os que ganham a vida fazendo reciclagem, cuidando das gentes nos hotéis e nas casas chiques. Os sem lugar, sem casa, sem endereço. Mas, ao mesmo tempo, com garra, com desejos e com valentia. Munidos de faixas, feitas com as próprias mãos, eles anunciavam suas dores e suas esperanças. Gritando palavras de ordem, defendiam seu direito de morar e viver bem na cidade. Caminharam pelas ruas, pela estrada, mostraram sua cara. Na firmeza de cada criatura que ali se fez presente, depois de mais um exaustivo dia de trabalho, estava firmada a palavra bendita: “queremos moradia”. Uma casa, um lar, uma morada. “Pobre nunca tem endereço dentro da ilha, não existe endereço pra pobre. Parece que eles não querem pobre aqui dentro da ilha”, diz Carlos Roberto Miranda, que mora na ilha há 25 anos e ainda não pode ter a sua casa. Mas, ele, assim como todos os que participaram da passeata não vão se render ao desânimo nem aos políticos oportunistas que prometem e não cumprem. Eles decidiram lutar.

A caminhada no norte da ilha foi só o começo. Como um rastro de pólvora, a luta pela moradia e pelo acesso irrestrito à cidade – o que inclui também a mobilidade, o lazer - vai se espalhar, buscando unir as 64 comunidades de periferia que existem hoje em Florianópolis, e nas quais vivem muitas famílias, ainda sem endereço, em casa mal ajambradas, de papelão, de lona ou de madeira velha. Junto com elas caminha também a militância das Brigadas Populares, não como uma entidade externa que pretenda indicar caminho, mas como mais alguns companheiros que, juntos, buscam garantir o direito de cada pessoa que vive em Florianópolis poder morar e viver feliz. “Nosso trabalho como organização que luta pela reforma urbana é fazer formação e organização popular, construir junto com os moradores as ligações entre a ausência de diretos para alguns e a acumulação de poder para outros e encontrar saídas coletivas para garantir o acesso à cidade”, diz Vitor Hugo Tonin, das Brigadas Populares.

Ao final da manifestação que expôs a ferida aberta que ninguém quer ver, os moradores do norte da ilha foram para um debate com os candidatos à prefeitura de Florianópolis que deveria acontecer na Escola Jacó Anderle. Mas, sem que ninguém soubesse o motivo, o diretor da escola suspendeu tudo e não permitiu que as gentes entrassem. Dos seis “prefeituráveis” que disputam a cidade apenas Élson Pereira, do PSOL e Gilmar Salgado, do PSTU, respeitaram os sem endereço se fazendo presente. E dialogaram com as famílias através de um megafone, discutindo a questão urbana, tão caótica e desigual na “ilha da magia”.

Mas, cada um que ali estava sabe muito bem que a luta pela cidade não se resume a votar no dia da eleição. Ela é cotidiana e permanente. Assim, pelos caminhos de areia do norte da ilha, nessa parte ainda invisível dos bairros nobres, as gentes continuarão caminhando para se encontrar e definir os rumos da longa luta que precisa ser travada. Junto com elas, as Brigadas Populares, também mergulhadas na batalha pelo direito à cidade. E não só para alguns...

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quinta-feira, 23 de agosto de 2012

Um homem...



















O homem que eu amo não me dá flores no dia dos namorados e geralmente esquece o dia em que nos conhecemos. Não tem vocação para datas inventadas, não lembra aniversário, dia da mulher ou coisa assim. Mas, todas as manhãs ele me acorda com riso e carinhos. Seu bom humor é meu equilíbrio. Liga o rádio bem alto nas manhãs e cantarola engraçado enquanto toma banho. Ele não pergunta como foi meu dia nem vem com o papo de discutir a relação. Não, ele chega contando as histórias que ouviu por aí, as coisas da vida comum, e faz brotar em mim a alegria. Se percebe que não estou bem, não diz nada. Respeita meu silêncio e compartilha dele, a cara constrita. Se pá, ele me abraça forte, e só. Não discute a dor, ele sente junto.

O homem que eu amo divide comigo todas as tarefas da casa, não como quem ajuda, mas como quem partilha mesmo. Ele brame a vassoura e espanta os gatos. Ele puxa a geladeira e limpa bem limpinho atrás dela, fazendo o mesmo com os armários e o fogão. Espoca a lata de cerveja e liga o som, bem alto, arriscando os passinhos do samba. Tem sempre uma coisa engraçada para dizer e nunca come qualquer fruta sem me oferecer um pedaço. Do nada, qualquer dia, ele pode aparecer com um presente. “Vi, era tua cara, comprei”. Essa é a sua poesia concreta.

O homem que eu amo é um homem simples, de poucas palavras, mas de gestos largos e coração gigante. Ele se frustra com as minhas derrotas e, impotente, me acolhe nos braços quando chego chorando depois de uma eleição perdida, ou um ato político fracassado. Ele cuida de mim e lambe minhas feridas sem fazer alarde, sem cobranças inúteis. Ele adora futebol, ama o Figueirense e se tiver de escolher entre uma pelada e um jantar romântico, fica com o jogo: "eu conheci a bola primeiro que tu, lembra disso?", alega, sorrindo.

O homem que eu amo gosta da noite, do samba, de estar com os amigos do bar. Ele tem vida própria, descolada da minha, e respeita as escolhas que faço, os longos silêncios, as leituras intermináveis, os livros espalhados pela casa, as reuniões nos finais de semana, e a mania de dormir cedo, com as galinhas. Seu máximo resmungo é dizer: "licença, livros", enquanto afasta uma pilha para se mover na casa. Ele se enternece quando me vê chorando, mesmo se for por conta de um filme bobo na TV. Vocifera contra os gatos, diz que vai matar e retalhar, mas é capaz de cozinhar miúdos da galinha e fazer uma deliciosa refeição para os bichanos, os quais secretamente ama. Vez em quando o surpreendo, com um doce sorriso nos lábios, acompanhando as estripulias dos pequeninos. Ele faz a melhor caipirinha do mundo inteiro e pode passar horas entretido com a lavagem do carro. Se eu pergunto: "quem tu ama mais, eu ou o carro?" Ele abre o riso largo e responde urgente: “o carro, claro”.

O homem que eu amo me tira para dançar a qualquer hora do dia e liga pra mim no meio da tarde, “para descansar”.  Ele recolhe a roupa do varal e transforma os domingos em dias santos. Quando ele chega, seja a hora que for, traz o sol, a primavera, a festa, o riso. Com o homem que eu amo nunca é noite escura. Ele existe e é bom...  

"Bonita é a nossa vida, nossa ordinária vida", diz a poetisa Adélia Prado. E assim é...


domingo, 19 de agosto de 2012

Uma volta anunciada



Os jornais estamparam na sexta-feira: acabou a greve dos técnico-administrativos das universidades. Eles repercutiam a reunião do Comando Nacional de Greve em Brasília, a qual decidira encaminhar a proposta de saída de greve aos sindicatos de suas bases. Até aí, tudo bem. O triste foi ver lideranças dos trabalhadores dando entrevista como se a “Inês” já estivesse morta. “Foi o possível no momento”, disse um colega chamado Ronaldo Ribeiro. Depois, em outra reportagem, o coordenador-geral da Fasubra (federação que congrega os sindicatos de todo o país), Gibran Jordão, repete o mantra: “A proposta ainda ficou inferior ao que estávamos reivindicando, mas foi o possível no momento”.


Ora, quando lideranças importantes da Federação começam a se manifestar dessa forma, antes de os sindicatos de base discutirem e deliberarem, significa que já estão influenciando as decisões. Isso pode até ser legítimo, mas não é ético. O certo seria que as lideranças se limitassem aos fatos: o CNG está indicando o fim da greve, mas são as bases que decidem. Há que esperar.


O CNG dos técnicos-administrativos fez a sua escolha. Numa conjuntura em que tudo apontava para uma negociação na qual os trabalhadores poderiam arrancar bons frutos, as lideranças da Federação, respaldadas pela maioria dos delegados do CNG, decidiram rebaixar a proposta e aceitar a migalha oferecida pelo governo. O governo federal está numa sinuca de bico. Ao mesmo tempo em que libera rios de dinheiro para as grandes empreiteiras e para o pagamento dos juros da dívida – essa chupando mais de 60% do orçamento – enfrenta mais de 30 categorias de trabalhadores públicos dizendo que não há dinheiro para melhorar os salários. A greve no serviço público cresceu, foi tomando corpo e já se configura uma imensa parede de resistência.


É fato que não há uma unificação orgânica das lutas, mas essa união acaba acontecendo na prática, porque cada uma – a seu modo e com suas especificidades – vai pressionando e exigindo do governo algo mais do que sequer a reposição das perdas. Isso fortalece cada categoria e enfraquece o governo. Também há que considerar que o governo petista enfrenta toda a carga do julgamento do “mensalão” em plena época eleitoral, o que faz com que os milhares de candidatos em todo o país se comprometam com as lutas das ruas, visando votos. Tudo isso pesa contra o governo e ajuda a luta dos trabalhadores.


Assim que esse era um momento em que a correlação de forças estava a favor dos trabalhadores e não contra. Havia fôlego para empurrar mais, exigir mais, esticar a corda. Mas não. As várias correntes que compõe a Fasubra, e que de alguma forma apoiam o governo do PT, decidiram dar uma força e topar uma negociação rebaixada. Há os contrários, é claro, mas são minoria. O governo acenou com 15% divididos em três anos, a começar em 2013. Isso sequer repõe as perdas do ano. O CNG decidiu então apresentar uma contraproposta rebaixada, retirando pontos de pauta e incluindo alguns que significariam pouco impacto na folha. Até o histórico step de 5% foi deixado de lado. Rifou-se o reposicionamento dos aposentados, os trabalhadores que estão fora da racionalização dos cargos, os extintos, a luta contra a privatização dos HUs.Fortaleceu-se a proposta da qualificação individual. Os que conseguem fazer mestrado e doutorado terão maiores ganhos. Ou seja, as vantagens são maiores para os mais qualificados. Os mais frágeis seguem frágeis. Nada de novo num mundo onde a solidariedade é só uma palavra.


A proposta do governo Dilma segue a lógica definida ainda no governo Lula, a separação cada vez maior entre os trabalhadores mais qualificados e os menos qualificados. Divisão. Foco na excelência. Lição de poder tão antiga quanto o mundo.


Agora, com a decisão do CNG os sindicatos de base vão realizar assembleias na semana que entra para decidir se acatam ou não a proposta governista. Óbvio que uma grande parte da categoria já está contaminada pela fala das lideranças, pela peremptória realidade colocada pela mídia: acabou a greve! Muitas serão as defesas inflamadas de que essa foi uma luta vitoriosa, que os trabalhadores conseguiram arrancar um bom acordo. Que isso era tudo o que se podia conseguir. “Foi o possível” dirão outros líderes, emocionados. E muita gente boa, trabalhadores dedicados que se entregaram na luta por três meses inteiros se sensibilizarão. E a maioria fatalmente acatará a decisão acreditando piamente que “isso era o possível”, porque essa é a correlação de forças hoje dentro da federação.


Arrisco dizer que lutar pelo “possível” é pouco demais. Imagino Che, Fidel e os outros gatos pingados que aportaram em Cuba no velho barco Gramnna, dizendo um ao outro que haviam feito o possível. Não haveria revolução, não haveria Cuba. Imagino Prestes abandonando sua coluna a dizer aos seus: Fizemos o possível. Ou Lenin, segurando os bolcheviques, a dizer que já haviam feito o possível. Não, esses camaradas foram além do possível. Observaram a realidade e se contrapuseram a ela, captando com inteligência todas as brechas. Porque eram seres de depois de amanhã. Sabiam que tinham de ultrapassar o possível. E eles estavam colocados diante da possibilidade da morte. Nossas perdas seriam bem menores.


Nós, nas universidades, hoje, temos esses líderes. Os que vão só até o possível, e um possível que eles mesmos definem. É nossa realidade atual. Já foi diferente e pode voltar a ser. Mas, para isso, haveremos de renovar as trincheiras, inflá-las com novas almas e novas mentes. Uma longa e cansativa jornada precisa começar. Vamos em frente! O processo da emancipação dos trabalhadores é árduo e demorado. Não há que esmorecer. Podemos perder uma batalha, duas, cem... Mas haveremos de seguir caminhando no rumo do meio dia. Sempre há a possibilidade de uma rebeldia. Quem pode saber?...

quarta-feira, 15 de agosto de 2012

Quem tem medo da infelicidade?




Outro dia um amigo observou: "só tem gente feliz no facebook". Ele tem razão, é verdade. E isso acontece porque o nosso tempo impõe a felicidade a ferro e fogo. Qualquer turbação da alegria e já se começa a buscar alguma razão psíquica ou física para tanto. Proibido chorar, proibido sentir-se arrasado diante do sofrimento do outro. Eu lembro quando eu era jovenzinha que eu não me permitia gargalhar porque achava um desrespeito com as gentes que sofriam na África. Todos me chamavam de louca e foi só quando fiquei mais madura que entendi que apesar de todas as dores do mundo, a gente pode sim vivenciar momentos de alegria, e reaprendi a rir. Mas, ainda assim, vez ou outra me pego chorando no ônibus. Claro que não é só uma piedosa manifestação de pena. Os que sofrem não merecem nossa comiseração, como diz meu amado irmão. Choro porque me sinto infeliz,  mas luto com todas as unhas para mudar esse mundo. Não fico a fazer musculação de consciência. Sei que o pouco que fazemos não muda quase nada, mas gosto de saber que não estou parada no meio do rio da vida.

Por esses dias ando assim, em turbilhão. Me ardem os olhos, me oprime o peito, me acelera o coração. Sinto como se o chão se abrisse, embora alguma coisa muito perversa me mantivesse onde estou. Sem condições de sucumbir e tendo de enfrentar os terrores, sem chance de opção. A tristeza vem forte, como essa que bate no pôr-do-sol e temos a certeza absoluta da finitude.   Tenho falado pouco e meu riso não ecoa pelos corredores. As ideias andam embaralhadas, e tudo parece estar fora de ordem. O trabalho está parado - estamos em greve - mas a vida segue correndo lá fora. Há pressa, muita pressa e eu tropeço no nada que me oprime.

Penso no grande Nietzsche, para quem o sofrimento devia ser vivido até o toco. Descer até o fundo e, depois, irremediavelmente, subir. Mas entre uma coisa e outra, é viver o inferno. O mundo moderno tem opções. Uma dose de alprazolan, quem sabe. Mas, essas são baguinhas que só mascaram as verdadeiras causas da dor. E nos oferecem, felizes, na grande arena do dragão, para sermos devorados com cara de alegria. Sei que às vezes é preciso sim uma muleta para que possamos sustentar tanta dor. Mas, hoje, não quero isso.

Prefiro a máxima do velho Friedrich. A felicidade não pode ser imposta quando não existe. Ela que fique lá, no seu não-lugar, até que toda a dor seja consumida. E o doloroso sofrimento que fique aí, roendo até o osso. Até que chegue a hora de subir para o grande meio-dia. Sim, há riscos. Pode ser que não tenhamos força. Mas, o que é, enfim, viver? É essa grande batalha entre o agora e o talvez. Encarar é o desafio.

Então, sigo, atravessando essa noite escura, sem medo de parecer anormal. Não. Não estou feliz. E de cor-de-rosa só o meu sapato. Talvez para iluminar o caminho de subida, se vier... 

domingo, 12 de agosto de 2012

O interminável massacre do povo indígena


Até quando veremos, impávidos, o extermínio, sem fazer nada?

Quando os portugueses chegaram à costa brasileira nada mais queriam do que ouro e riquezas, da mesma forma que os espanhóis na região central de Abya Yala. Dar de cara com outros povos, outra língua e outra maneira de organizar a vida não causou problema. Eles tinham o poder das armas. E, assim, pela força dos arcabuzes, impuseram um deus, escravizaram, dizimaram, destruíram. A invasão de Pindorama nunca foi um “encontro de culturas”. Foi genocídio. Naqueles dias, milhões de pessoas foram mortas por conta da ganância dos estrangeiros. “Não têm alma”, diziam os piedosos padres. Os que resistiram se embrenharam nas matas, fugiram do litoral e conseguiram ficar à margem do extermínio por algum tempo. Mas foi um curto período. Com a colonização, os portugueses abriram caminho para o interior e nesse movimento tampouco pouparam pólvora. Os indígenas eram apagados do mapa. Depois, com a chegada dos imigrantes, novamente os indígenas passaram por violentas levas de extermínio.

O tempo passou e as comunidades indígenas que sobreviveram foram travando suas lutas. Houve páginas memoráveis de resistência. Na região norte, de mais difícil penetração, muitos grupos conseguiram seguir com suas vidas. Mas, no início do século XX, com a nova política de ocupação nacional, os indígenas voltaram a ser contatados, dessa vez com menos violência física, mas com a mesma intenção de negação da sua cultura e do seu modo de vida. A proposta era a de integrá-los à vida nacional, considerada “a civilização”. Apesar das boas intenções de figuras como o Marechal Rondon, a decisão de integração era unilateral. Ninguém perguntara aos indígenas se era esse o seu desejo. Era uma política de estado e estava baseada na ideia de que o modo originário de vida não era bom.

Na verdade, essa proposta de integração forçada também se configurava uma violência contra as comunidades. E, os que não aceitaram “se integrar” ao “mundo civilizado” tiveram de se manter em “reservas”, lugares previamente demarcados para sua “proteção”. Assim, aqueles que eram os donos legítimos dessas terras passaram a viver de favor, confinados e dependentes do governo em praticamente tudo, inclusive a comida. Não bastasse serem tutelados, os indígenas acabaram na linha de fogo de uma batalha contra aqueles que haviam se apropriado das terras: fazendeiros, grileiros, latifundiários. Não foram poucos os conflitos que se seguiram quando o Brasil decidiu ampliar sua fronteira agrícola. As comunidades que estavam em áreas férteis logo passavam a ser acossadas. Na região amazônica, as riquezas em madeira e biodiversidade tornaram a área extremamente cobiçada e também nas profundezas da selva os indígenas tiveram de enfrentar os mesmos inimigos de sempre: missionários, grileiros, ONGs, os “bem-intencionados”.

Todas essas lutas sempre se deram num contexto desigual. Primeiro, os indígenas eram os selvagens que precisavam ser civilizados, depois eram os preguiçosos que não queriam saber de trabalhar no mundo novo que tão bondosamente tinha sido dado a eles. De um jeito ou de outro eram apresentados à nação como seres inúteis, passíveis apenas de se manterem como “coisa exótica”. Quando essas comunidades começaram a lutar, outra vez, pelos seus territórios, toda essa carga de preconceito voltou à tona. E os índios passaram a ser apontados como aqueles que impediam o progresso do país. Garantir grandes extensões de terra a essa gente era vista como um absurdo, afinal, eles não trabalhavam. Tal e qual os portugueses de 1500, as gentes do poder seguiam olhando para os indígenas como seres de segunda categoria, incapazes, atrapalhos, coisa para ser aniquilada.

Ainda assim as lutas prosseguiram. Na Constituição de 1988 as comunidades indígenas lograram conquistar direitos. Seguiam ainda tuteladas, mas consolidavam um espaço de disputa no qual já era impossível negar a importância dessas gestes, de sua cultura e seu modo de vida, tão absolutamente outro, diferente do proposto pelo modo de produção capitalista hegemônico no mundo ocidental.

As lutas do presente

Quando o século XXI alvoreceu, em todo o planeta assomava um movimento gigantesco de recuperação da memória das culturas que foram oprimidas pelo colonialismo europeu do período chamado de “modernidade”. Nos anos 90, ainda no século XX, comunidades do Equador invadiram o centro da capital Quito, ocuparam igrejas e decidiram que tomariam a sua vida nas mãos. Em 1994 os índios chiapanecos, do México, também se insurgiram, em armas, tomaram cidades e decidiram que nunca mais o mundo viveria sem tomar em conta as suas demandas. Depois, foi um espocar de lutas e rebeliões por toda a faixa andina, na América do Sul, e nos cantões da América Central, no Caribe, na América do Norte (Estados Unidos e Canadá). O Brasil não ficou de fora. As comunidades, caladas por 500 anos, assomavam com suas palavras, seu mitos, sua cosmovisão. Queriam gerir suas vidas e proteger seu território, sistematicamente consumido pela voraz ambição do capital. Para esses povos a terra não é objeto de especulação, é espaço sagrado. Terra é mãe da vida, água é morada dos deuses, bichos são parte de um equilibrado sistema de sobrevivência. Essas coisas não tem preço, têm valor.

Para os homens do poder, esse movimento indígena é coisa que precisa ser freada. Não aceitam entregar a eles o domínio sobre suas terras, até porque muitas delas estão repletas de riquezas. Seus argumentos são singelos: os índios não sabem proteger seus territórios, vendem madeira por cachaça, não conhecem os instrumentos do progresso. Ou seja, não teriam condições de gerir com sapiência, as terras que lhe são confiadas. Assim, nada melhor do que eles, os capitalistas, para dirigir e controlar os territórios. Eles são trabalhadores, empreendedores, podem trazer o progresso, como é o caso das barragens que se constroem na Amazônia. Isso é cuidar, isso é proteger, isso é dar função social para a terra. E não essa ideia indígena de deixar a terra sem uso, que segundo eles, é anti-progresso. E assim vai se fazendo a queda de braço, tão desigual. Basta uma espiada na obra de Belo Monte para se ver os estragos causados à mata, à biodiversidade, às famílias ribeirinhas. Os índios resistem e são sufocados por armas e preconceito. E, na derrota dos indígenas vem a miséria de todos os que por ali vivem, porque o “progresso” dos capitalistas significa progresso apenas para alguns.

Não bastasse toda a história de extermínio, preconceito e opressão, agora a Advocacia Geral da União, órgão do governo, decidiu baixar uma portaria que estende para todas as terras indígenas no país, as condicionantes decididas pelo Supremo Tribunal Federal (STF) na Ação Judicial contra a Terra Indígena Raposa Serra do Sol (Petição 3.888-Roraima/STF). E o que isso significa? Mais um golpe na vida dos 800 mil índios que ainda resistem nesse país.

O Brasil na contramão

Concretamente, as tais condicionantes permitem que as terras indígenas possam ser ocupadas por unidades, postos e demais intervenções militares, malhas viárias, empreendimentos hidrelétricos e minerais de cunho estratégico, sem que os indígenas sejam consultados sobre isso, coisa que contraria frontalmente a Constituição e também a Convenção 169, da Organização Internacional do Trabalho (OIT). Da mesma forma permite que haja uma revisão das demarcações em curso ou já efetuadas que não estejam dentro dessas regras, mais uma vez violando a autonomia dos povos sobre os seus territórios. Com isso, o governo tira das comunidades a possibilidade de elas mesmas decidirem sobre as riquezas naturais que existem em suas terras. Ou seja, entrega aos capitalistas o direito de explorar.

Outra forma de pressionar as comunidades indígenas é a transferência, para o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBIO), do controle das terras indígenas, sobre as quais, de maneira indevida e ilegal foram sobrepostas Unidades de Conservação. Ou seja, de maneira perversa buscam colocar os indígenas no papel de destruidores, poluidores e invasores de áreas ambientais.

A portaria 303, da AGU, é a forma moderna de dominação dos mesmos velhos opressores. Se antes eram os arcabuzes, agora é a lei. E o que é mais espantoso, uma lei que viola a Carta Magna. Ora, a decisão do STF só tem validade para a área da Raposa Terra do Sol, e já foi uma grande derrota dos povos indígenas. Por isso mesmo que a luta contra essa decisão específica não acabou. Os indígenas que ali vivem seguem questionando, em luta e na justiça, essa decisão. Ainda existem embargos não julgados. Como então a AGU pode editar uma portaria estendendo as condicionantes ainda não definitivas para as demais áreas? E quem disse que a AGU tem poderes para isso? Só o Congresso Nacional pode legislar sobre terras indígenas. A resposta só pode estar na pressão que vem sendo feita pelos latifundiários e empresários que querem ocupar e explorar as terras ricas em poder dos índios.

O mundo moderno é um mundo em luta pela energia. Esgota-se o petróleo e todo o modo de produção capitalista - que é destruidor na sua essência – está em colapso. Por conta disso, aqueles que detiveram o controle sobre a água e sobre a biodiversidade serão, sem dúvida, os que dominarão o mundo. Não é sem razão que grandes extensões de terras vêm sendo compradas por investidores internacionais em regiões como o Pantanal, a Amazônia, o Aquifero Guarani, justamente onde estão os indígenas “atrapalhando” o processo de dominação dos recursos e das riquezas. O governo brasileiro, seguindo a mesma mentalidade entreguista da maioria dos seus antecessores, se dispõe a conceder direitos aos ditos “empreendedores”, mais uma vez condenado os indígenas ao extermínio, e o povo em geral à dependência.

A se concretizarem os pressupostos da Portaria 303, qualquer terra já demarcada pode ser revista e tirada das comunidades, basta que dentro delas haja algo que seja do interesse dessa gente sempre pronta a sugar as riquezas do país. E, esse tipo de coisa só acirra ainda mais os conflitos existentes, nos quais as comunidades indígenas seguem em franca desvantagem, entregando todos os dias, os seus mortos. Como combater jagunços fortemente armados? Como se defender de milícias de mercenários bem treinados, franco-atiradores, assassinos de aluguel? É a história se repetindo.

Só a união de todos garante a vida

Para a sociedade, o governo faz propaganda e usa dos meios de comunicação mentindo descaradamente sobre diálogo e promoção de direitos indígenas. Mas, na prática, a política segue sendo a do extermínio e do massacre das culturas autóctones. Na contramão de tudo o que acontece na América Latina, aonde os povos originários vão conquistando cada dia mais direitos, o governo brasileiro caminha para o retrocesso, aliado ao agronegócio e aos interesses internacionais, jogando o povo inteiro nas malhas da eterna dependência.

É preciso que as gentes brasileiras conheçam o que está por trás das letras pequenas das leis. Que os sindicatos informem os trabalhadores, que se faça uma aliança entre os trabalhadores da cidade, do campo e as comunidades indígenas. Esses 800 mil índios que ainda resistem ao massacre iniciado em 1500 são a nossa herança histórica, a célula mãe da nossa cultura, legado imortal, parte constitutiva da nossa essência como povo. Defender o seu direito de viver nas terras originalmente ocupadas, de preservarem seu modo de vida, seus deuses, sua cosmovisão, de gerirem suas riquezas dentro dos princípios que lhes são únicos, como o equilíbrio ambiental e a reciprocidade, é garantir a possibilidade da construção de outra sociedade, justa e soberana.

Não é possível que as gentes brasileiras permitam que se entreguem as nossas riquezas aos poderosos de plantão, aos estrangeiros, aos ditos “arautos do progresso” que, na verdade, nada mais são do que os destruidores da vida. As comunidades indígenas nos mostram que há outras formas de vida, outro “progresso”, outro modelo de desenvolvimento. Negar isso é compactuar com um crime, é agir como agiram os invasores, os assassinos, é defender o massacre.

Já basta de sangue indígena em nossas mãos. Todo o repúdio a portaria 303.