terça-feira, 29 de novembro de 2022

Eu, o pai e a ceifadora


Há muito tempo vi um vídeo sobre a morte. Ela se enamora da vida. E é um sofrimento, porque se ela toca na vida, a vida se esvai. Ainda assim, a morte segue a vida

e está ali, todos os dias, do seu lado, extasiada de amor, mas sem poder sentir o calor do abraço, a doçura do beijo. É um filme extraordinariamente triste, mas absurdamente belo, a ensinar que a ceifadora está conosco, o tempo todo, amorosamente esperando, a vida inteira. 

Passei a observar mais a morte quando meu pai foi diagnosticado com a doença de Alzheimer. Porque, desde ali, tenho caminhado com ela. A doença é degenerativa, a pessoa vai passando por várias fases até chegar o fim. Não é como cuidar um bebê, que a gente vai preparando para a vida. É o contrário. Vamos preparando para a morte. E a doença vai lentamente apagando tudo. Primeiro é a memória. Depois, vai afetando o movimento até que a pessoa

não anda mais. E depois vai se agravando. A pessoa esquece como comer e como respirar. É avassalador.

Ontem, mexendo nos textos que já escrevi sobre o pai desde que

ele veio morar comigo em 2016 fui percebendo, assombrada, o quanto ele mudou. Quando chegou era serelepe, caminhador, fugia de casa,  molhava as plantas, juntava os cocozinhos dos

cachorros, cuidava da cachorra doente, caçava carrapatos, fazia bagunça nos guarda-roupas, nos armários da cozinha, quebrava todos os meus bonequinhos, fumava, rasgava meus livros. Agora, desde há alguns meses ele já não anda e não bagunça mais nada. Fica ali, sentadinho, o dia todo, e só se anima quando a gente conversa, daí a necessidade de ter alguém sempre ao seu lado, puxando assunto. A doença é assim, ela dá saltos. Uma hora tá bem e na outra, záz. E por mais forte que sejamos, a gente desaba.

Quando vem a noite e eu me deito ao seu lado, fico vigiando

seu sono. Vez em quando parece que ele se afoga, faz barulhos estranhos e eu sinto a presença da ceifadora, num misto de dor e de amor. A gente se olha e sorrimos uma para a outra. Momentos há em que eu sinto vontade de abraçá-la, para fugir do sofrimento. Mas ela se afasta. São horas noas, para nós duas. 

Quando clareia o dia ali estamos, lado a lado. A azáfama do

dia permite que eu esqueça um pouco sua presença, mas basta apagar a luz, e lá está, com seus olhos amorosos. É um duro aprendizado, mas vamos cumprindo.

Assim, enquanto não vem o toque, vamos saltitando, cantando, dançando, vendo futebol e compartilhando esse imenso jardim.



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