quarta-feira, 5 de fevereiro de 2020

A moral é política

A família margarina é um desejo de felicidade


Das coisas que me incomodam nos tempos atuais uma é ver companheiros do espectro da esquerda tripudiarem das pautas morais que têm sido impostas pelo governo e seus apoiadores. Não compreender a importância desses temas é desconhecer por completo a natureza humana. Desde o princípio dos tempos, quando homens e mulheres começaram a pensar sobre o mundo, o tema moral está posto, seja na religião ou na filosofia. Grandes pensadores foram astutos moralistas, inclusive o nosso ícone revolucionário Che Guevara.  E no que se constitui a moral: a elaboração de uma série de regras para alcançar a felicidade e o bem viver. 

Aristóteles dizia que a felicidade só vinha através da virtude, e virtudes aqui seriam não apenas as atividades racionais, mas também as sentimentais, afetivas, passionais que deveria ser governado pela razão embora não pudessem ser totalmente resolvidas pela razão. Ele entendia que a razão podia dominar a paixão, mas não conseguia aniquilar ou destruir. Isso significa que o extraordinário filósofo sabia muito bem ser a paixão algo capaz de desestruturar tudo se não fosse domada pela razão.  

Adam Smith, considerado um ícone do liberalismo, discorreu largamente sobre a moral e considerava a simpatia – que ele entendia ser a capacidade de sentir aquilo que o outro sente – o elemento natural que deveria balizar o agir humano.

Che Guevara, como já disse, foi pródigo em estabelecer regras morais para que a revolução pudesse se fortalecer e avançar. O chamado “homem novo” que ele reivindicava era justamente isso, a instauração de novas regras para viver numa sociedade socialista. Outros valores, outras paixões. A virtude como aplicação da razão, mas não só razão. 

Cada um desses pensadores entendia a moral como uma regra para a humanidade, com caráter universal. E, esse é um debate que vem sendo travado através dos séculos por intelectuais de todo o planeta. Mas, com a emergência da chamada pós-modernidade, esse tema da moral foi escasseando e chegou-se inclusive à proposta da destruição da moral. As pessoas foram “autorizadas” a fazer tudo o quem bem entendiam, tudo passou a ser permitido em nome de uma felicidade individual ou particular. Daí a lógica das “tribos” ou do que outros chamam de “identitarismo”. As regras morais valem só no e para o grupo, não se estendem ao universal. E há inclusive, a regra do eu-sozinho ou o que Lipovetzki conceitua como o “self-made man” . O tempo da anomia, o tempo sem-lei.

É esse tempo, iniciado em 1968, que vem se fortalecendo desde então.  E é esse tempo, o da anomia, que a moral neopentecostal ataca com relativo sucesso. A desestruturação de todas as esferas da vida causada pelo capitalismo enche as pessoas de angústias, dúvidas e vazios. E é nesse buraco, muitas vezes sem compreensão por parte da maioria, que se infiltram os tentáculos da religião ou de qualquer instituição que apresente uma mínima tentativa de ordenamento universal. É importante percebermos que as “tribos” não conseguiram dar uma resposta para todos e as pessoas estão aí, perdidas, esperando um salvador. Não deveria ser assim. Mas, as coisas não são como a gente quer e sim como a história se nos apresenta na sua materialidade. 

Quando observamos o ascenso do conservadorismo ou das práticas fascistas no mundo, esse é um tema que deveria ser melhor compreendido. Por quê? O que leva as pessoas ao medo ou à tentativa de recuperar um passado que – na verdade  - só existe na memória, visto que é impossível fazer com que as coisas sejam como antes? Tripudiar desse medo seria o melhor caminho?

Tenho uma amiga que acha formidável a ideia de uma campanha pela abstinência sexual. Ela tem quatro filhos saindo da adolescência. Ela se depara todo o dia com as notícias do aumento das doenças sexualmente transmissíveis, ela sabe que Florianópolis tem alto índice de contaminação pelo HIV, ela sabe que o Posto de Saúde não dá respostas rápidas para os problemas de saúde. Ela não tem dinheiro para uma emergência médica. Ela se desespera. Ela então acredita que se os garotos não transarem, estão protegidos. E se agarra no pastor, e no governo, e em deus. E ela encontra respostas. Pensa que as coisas vão se resolver assim, de maneira mágica. Não compreende que seus filhos são sujeitos históricos, que estarão submetidos a outras relações, que estão no mundo e não na redoma da casa. E não compreende também que as doenças poderiam ser evitadas por políticas públicas eficientes, com educação de qualidade, com possibilidade de alimentação saudável etc.. Ou seja, não consegue racionalizar que o motivo da emergência das pautas morais é a situação política/econômica/cultural. 

As pessoas não conseguem ver que o precisam é de uma revolução.

Por isso creio que estamos bem atrasados no debate sobre a moral. Por isso penso que o governo atual está conseguindo ganhos importantes no campo da política utilizando o discurso moral. Esse povo aí no poder sabe o que está fazendo. Está dizendo claramente: vou colocar ordem nesse mundo desestruturado. E muita gente acredita que sim, isso é possível. Que a ordem virá por um impulso da vontade. Não virá. O que vem é ordem de um grupo muito pequeno, bem específico, sobre a maioria, que aceita por sentir-se perdida e sem respostas. 

Penso que é chegada a hora de parar de rir e tripudiar das pautas morais. Elas são importantes e definem caminhos. Seguir a deixa do Aristóteles: a razão no comando, mas sem esquecer que as paixões são selvagens e arrebentam os muros da razão. É um extraordinário esforço garantir o equilíbrio. Disputar nesse terreno é fundamental. 

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