quarta-feira, 26 de fevereiro de 2020

A demência e a noite



Não existe glamour ou beleza na demência senil. É um drama gigantesco que sucumbe com a vida de quem tem e de quem cuida. Isso porque o velho não é criança. Ele ainda tem parte de sua autonomia, de seus quereres. Raramente pode-se impor algo a ele. Emburra, empaca e tudo fica pior. Tudo tem de ser negociado. E isso é um processo de grande estresse, porque é um repetir-se, repetir-se e repetir-se,  à exaustão. 

No geral, a parte da noite é que é mais dura. Durante o dia, com a luz do sol e o movimento da vida, as coisas são mais fáceis de lidar. Até mesmo o mantra do “quero ir embora” a gente vai resolvendo, seja com o canabidiol ou com alguma dose de matreirice. Vamos desenvolvendo estratégias de envolvimento, passeios, conversas, brincadeiras. 

Mas, quando a noite chega e todos desaparecem, é a hora noa do cuidador. Primeiro porque ele já passou o dia inteiro envolvido com o doente. Além disso, no geral, o cuidador ainda trabalha, o que significa que precisa dar conta da vida laboral, com toda a sua complexidade, Por isso não é incomum que a pessoa passe a cometer erros, e a se esgotar fisicamente.  Assim, depois de passar por todo esse processo de trabalho e cuidado durante o dia, o cuidador terá de enfrentar, sozinho, a “mala noche”.

É comum na demência a deambulação, que é o andar sem razão. Isso fica pior no período noturno.  A pessoa anda sem parar e não aceitar deitar. Mesmo quando o sono chega e se percebe que a pessoa está exausta, ela não aceita descansar o corpo. E não há palavras que se possa usar para convencer ao descanso, creio eu que é uma coisa química, que dá no cérebro. É desesperador. A gente prepara tudo, o ambiente, a luz, o cheirinho de lavanda, os chás, mas nada resulta. 

Com o pai já tentei quase todos os remédios que existem para dormir. Cada um deles detona crises horrorosas de delírios, alucinações e quedas. É devastador. Uma impotência tão grande ver o pai da gente naquele nível de sofrimento. Acaba que nem dorme, nem descansa, pelo contrário, fica pior. Já tentei Neozine, Risperidona, Clonazepan, Donaren, e todos apresentaram o mesmo resultado. Nada de sono. Só sofrimento. É ruim porque se a pessoa não dorme, quando chega o dia, fica dormitando e todo o humor fica afetado. Sem sono  a demência piora. E o cuidador, que também não dorme, parece que também vai adquirindo parte da demência. A vida se deteriora. 

É assim que vai se criando também uma espécie de pavor da noite. Quando a barra do dia cai, é como se um grande manto escuro, carregado de dor, começasse a cair sobre nós. As horas vão se arrastar, a pressão vai subir, o desespero vai crescer naquela espera que finalmente venha o dia. 

O mais engraçado nisso tudo são os conselhos das pessoas próximas: Tu precisa dormir, não podes ficar assim, há que encontrar um jeito. Só que não há jeito. Não há com quem dividir a dor e muito menos os cuidados. Estamos sós nessa jornada. E, na medida em que vamos acabando também doentes – do corpo e da alma - mais isoladas ficamos, pois ninguém quer se contaminar com tanta desgraça. 

Sim, é duro. Não há amparo na família, nos amigos, no estado, na medicina. É uma caminhada alucinante, algo que ainda não pude entender. E nisso, vamos definhando, vendo aqueles a quem amamos mergulhados num mundo a parte, nos puxando para dentro dele a cada noite que passa. É um morrer abigarrado – doente e cuidador. Um sofrimento atroz. Há janelas de beleza? Sim, há, mas há que ter muita capacidade de percebê-las no cotidiano avassalador. Coisa que não é para qualquer um. A saída que tenho encontrado é viver o possível, com intensidade, sabendo que é pouco. Lapsos de alegria, uma música, uma cachaça, um filme, um poema. Tudo isso num tempo em que há igualmente uma noite escura na vida política e social. Não é fácil.

Ainda assim, vamos caminhando, desenhando o caminho. Sabe-se lá onde isso tudo vai dar. 



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