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As memórias e o pai
Há dias nos quais o pai acorda muito agitado, nervoso mesmo. Não sei o que é, deve ser da doença. Hoje foi assim. Chegou na porta da cozinha com o rosto crispado, perguntando por que as coisas estavam como estavam. A pergunta não tinha resposta, mas eu vou dando as que posso. Ele pra lá e pra cá. E, a cada retorno, fazendo a mesma pergunta e eu dando novas respostas. Aquilo é turbilhão. Vai nos desconcertando. Mas, temos de manter a fleuma para não deixá-lo ainda mais nervoso.
Fiz um mate e chamei ele para conversar. Veio resmungando, mas veio.
- Cadê o povo?
- Tá todo mundo trabalhando
- Eu também tenho que ir.
Aproveitei o gancho trabalho e comecei a ladainha de que ele já tinha trabalhado muito, agora estava aposentado e era hora de descansar.
- Mas, eu trabalhei?
Então comecei a desenrolar o novelo dos lugares onde ele tinha trabalhado na vida. Lembra quando tu foste soldado? E ele ia lembrando de Quaraí. Lembra do escritório dos Fagundes. Ele começou a rir e disse que lembrava. Lembra da Rádio Fronteira do Sul? E ele assentindo. Lembra do DEER? Fui nominando um a um os seus velhos companheiros de trabalho. E para todos eles ele tinha uma lembrança. Já estávamos rindo, bem descontraídos. Ufa...
Então, de repente, ele desconfiou:
- Mas, para aí, como é que tu sabe tudo isso de mim?
- Ora, eu sou tua filha, querido.
- Minha filha?
- É.
Ele ficou me olhando, olhando. Até que uma lágrima se formou no seu olho. Ele levantou, emocionado, e me abraçou.
- Mas, que coisa mais querida. Minha filha.
E ficamos assim, por um tempo.
Essa é aquela hora em que a vontade é de chorar todas as lágrimas. Mas, há que manter a cara alegre, o sorriso e a firmeza. Não é fácil fingir que a alma não está em escombros.
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