quarta-feira, 9 de julho de 2014

São Petersburgo – a cidade dos czares








Circular por São Petersburgo pode dar a medida exata dos motivos que levaram os trabalhadores russos a fazerem uma revolução, iniciada em 1905, justamente ali, com o episódio da grande caminhada do povo até o palácio real, exigindo reforma agrária e participação política. A manifestação acabou em desgraça com um massacre dos trabalhadores no que ficou conhecido como “domingo sangrento”, abrindo caminho para a revolução de 1917. Foi o fim de um tempo em que os russos consideravam o czar como um pai amoroso e cuidador.

Andando pela cidade é impossível imaginar como poucas pessoas conseguiram acumular tanta riqueza a custos sociais tão exorbitantes. São ruas e ruas repletas de palácios e palacetes que, à época czarista, pertenciam aos nobres. A cidade não é antiga. Foi criada às margens do rio Neva, na entrada do Mar Báltico, em 1703, pelo hoje aclamado czar Pedro, o Grande, que o foi o primeiro da dinastia Romanov a europeizar a Rússia. É conhecido como aquele que abriu a Rússia para a Europa, modernizando a vida.

Em tempos passados, o lugar era espaço do povo sueco, que foi vencido pelo czar na busca por uma saída para os mares do norte. Ali, expulsos os suecos na conhecida “Grande Guerra do Norte”, ele construiu uma fortaleza (a de Pedro e Paulo, em homenagem aos apóstolos) que serviu de base para o crescimento de uma cidade ao seu redor. Todos o trabalho ficou a cargo dos servos do czar, mais os prisioneiros de guerra suecos, e milhares deles pereceram para que a grande cidade pudesse existir. São Petersburgo foi capital da Rússia desde então, só perdendo o posto para Moscou em 1918, depois da vitória dos bolcheviques.

Obcecado pela vida europeia, Pedro mandou buscar os melhores arquitetos da Itália e França para desenharem a nova cidade dentro dos cânones da arquitetura que estava em voga na Europa. Tudo foi planejado conforme seus desejos. Ele queria uma cidade aristocrata, à moda francesa, e tanto que todos os nobres eram obrigados a trajarem-se conforme a moda de Paris. Assim, o centro da cidade foi tomado por palácios imensos, decorados ao estilo barroco. Na praça central pontifica o Hermitage (hoje museu) composto de seis enormes palácios que se comunicam entre si. Era a residência de inverno do czar. Depois, mais tarde, com Catarina II, em 1764, começou a ser o centro da arte europeia. Ela, sozinha, adquiriu centenas de obras de arte, tornando o castelo – e os que se anexaram a ele – um dos mais importantes acervos do mundo. O início da coleção começou com 225 obras e hoje elas somam três milhões de peças.

Circulando pelos palácios é impossível não se chocar com o elevado volume de riquezas. Além dos prédios em si, muito parecidos com os palácios parisienses, revestidos em ouro e decorados com exagerada riqueza, também as igrejas, erguidas para reverenciar a fé cristã ortodoxa, foram construídas de forma bastante luxuosas, não no mobiliário – que é inexistente - mas nas pinturas, feitas por artistas famosos à época. Tudo feito à base do trabalho dos servos, que viviam à margem das grandes muralhas que protegiam os nobres, a base de batatas, cebolas e pão preto.

Cortada por rios e canais, formando ilhas, São Petersburgo é uma cidade boreal, situada na parte mais norte do mapa russo. No verão, praticamente não há noite. E foi justamente Pedro quem decidiu ligar as pequenas ilhas por pontes dando o perfil da cidade atual. É, no geral, uma cidade baixa, pois nenhum prédio podia ser construído mais alto que a mais alta torre da igreja. Até a vitória da revolução de 1917 era ali, naqueles palácios do sistema Hermitage que vivia a família real, e foi dali que o último czar, Nicolau II, saiu para a morte, junto com toda sua família. Hoje, observando a incrível riqueza acumulada nos palácios, em arquitetura, obras de arte e vestuário, fica martelando a pergunta: à custa de quê mantinham tanto luxo? Os guias que carregam os turistas para os passeios dentro do Hermitage – hoje uma dos maiores museus do mundo – evitam falar disso. Segundo eles, os trabalhadores gostavam de servir ao czar, tinham-no como um pai que tudo provinha e por ele eram capazes de todos os sacrifícios. Pergunto sobre o massacre de 1905. Que pai faria isso a seus filhos? O tema é ignorado.

Raros são os guias que falam do período revolucionário soviético. Ele só é citado para explicar a terrível morte da família real. “O czar foi levado com a família para outro castelo e lá foram todos fuzilados. Os soviéticos prenderam os nobres e os padres e mandaram todos para a Sibéria. Mas, agora, tudo está no lugar outra vez”, informava Irina. E está tão “no lugar” que a igreja ortodoxa, reconstituída depois do fim do regime soviético, canonizou o último czar Nicolau II, considerado então um santo e um mártir. Os chefes da igreja não levaram em conta o papel do antigo czar no massacre de Khodynka, no qual 1429 pessoas morreram e mais de 20 mil ficaram feridas enquanto aguardavam para render honras à sua coroação, nem ao massacre do domingo sangrento, quando os trabalhadores que reivindicavam direitos foram assassinados, ou ainda a perseguição antissemita que ele empreendeu ao longo do reinado.

Na Rússia atual, o foco do turismo está na vida antiga, czarista. Qualquer passeio guiado que se faça prioriza o contar das velhas histórias das dinastias imperiais, promovendo nomes como o de Pedro, o Grande, Catarina II e Ivã, o terrível, passando ao largo pelo tempo soviético. É como se houvesse apenas o passado remoto e o presente, agora regido pelo sistema capitalista. Também há uma volta significativa ao mundo da religião, que ficou em suspenso durante o período revolucionário. “Os comunistas prenderam nosso patriarca (equivalente ao papa) e destruíram nossas igrejas. Isso a gente nunca perdoou”, diz Larissa, que ganha a vida como guia. Agora, a igreja recupera novamente todo o seu poder. Sabe-se que no tempo dos czares, na falta desse quem mandava era o patriarca. As igrejas foram reconstruídas e nas mais importantes as obras de restauração seguem a todo vapor. O número de fiéis cresce a tal ponto que, em Moscou, uma das igrejas destruídas foi reerguida em apenas quatro anos, com a participação de mais de 500 artistas plásticos organizados para a decoração, tudo às custas de doações dos fiéis. Hoje ela resplandece do lado do Kremilin, na Praça Vermelha, como um sinal do retorno da religião ao centro do mundo russo.

E assim, na bonita cidade erguida por Pedro, o grande, ressurge também o culto aos czares, cujas caras se transformam em ímãs de geladeira, camisetas, copos decorados etc.... Já os trabalhadores, que desde 1905 pavimentaram o caminho da revolução estão de volta ao submundo, chamados de “inúteis e insignificantes”, tal como no tempo dos imperadores. De qualquer forma, é impossível olhar para toda a riqueza produzida na velha cidade e não compreender que tudo aquilo foi feito por mãos anônimas, as mesmas que se levantaram em rebelião por não suportar mais o peso do jugo imperial. Entre os mais velhos, ainda persiste a nostalgia de um tempo em que os trabalhadores foram os protagonistas da vida russa. Mas, junto a nova geração, que não viveu o regime comunista, pouco importam os czares ou os soviéticos. Sua preocupação maior é o consumo. Nos xópingues, nas grandes redes de departamentos, nas avenidas comerciais, nos quiques do McDonalds, eles se deliciam – tal como um dia o fez Pedro, o grande - com as maravilhas do mundo ocidental.



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