Por José Newton Tavares
Chegamos ao Egito tarde da noite. A longa viagem do aeroporto até o hotel, aproximadamente 25 kilômetros, mostrava a dimensão do que nos esperava. Lá nada seria pequeno. Entre uma e outra conversa com o guia, que nos mostrava, pacientemente e em detalhes, lugares e monumentos ao longo do caminho, percebemos que estávamos diante de um mundo novo. Meu olhar se deliciava com aquele mundo “exótico”. Jamais eu havia saído da cultura ocidental. Jamais estivera do outro lado da linha. Estava agora dentro do “eixo do mal”.
Ali estava eu imerso no mundo muçulmano. Mundo esse que a mídia ocidental teima em demonizar, desfigurar, fazendo com que olhemos para ele com um olhar de mão única. Somos “obrigados” a vê-los a partir daquilo que nós temos e eles não têm. O que nos tira a delicia de vê-los a partir daquilo que eles têm e nós não temos. Mas é preciso estar do outro lado da linha para perceber isso. É preciso trocar de pele.
A grandiosidade do Egito não se resume a templos e estátuas magníficas, pirâmides e faraós. Há isso também. Essas coisas vão buscar os turistas comuns, aqueles que, ao viajar, nunca deixam a si mesmo na soleira da porta de entrada; nunca de despem das suas verdades eternas; nunca se deixam beber pelo mundo que visitam. “Os outros são os outros e só”. Esses são os turistas profissionais. Vão apenas visitar a “exoticidade” alheia e voltam como foram: cheios de fotos e vazios por dentro.
Eu, ao contrario, fiz um esforço hercúleo. Andei na contramão. Escutei histórias, contos e sons....percebi lugares, roupas e olhares. Como os antigos beduínos daquelas paragens desérticas, eu esperei que eles se mostrassem para além das chilabas e véus. Esperei que eles mostrassem seus rostos marcados pelo sol escaldante. Fiquei atento a seus mundos escondidos para além das nossas notícias organizadas e editadas pela CNN. E então a surpresa: um oásis de beleza se revelou. Uma humanidade escondida, preterida, sufocada em nome do capital.
Nosso guia, um muçulmano convicto, mas não radical, apaixonado pela sua cultura, nos brindou com um emocionante relato sobre a forma de viver de seu povo. “Vocês nos olham de fora e não entendem a nossa lógica” dizia. “Nós queremos apenas que nos deixem ser do jeito que desejamos. Não queremos a democracia ocidental. Ela não nos fará bem”. Com uma delicadeza de emocionar ele nos disse o óbvio: confundimos autocrático com autoritário. Acreditamos que nossa “democracia” ocidental é libertária. Será democracia? Liberdade para que?
O Egito é um país pobre, mas lá ninguém passa fome. Todos se ajudam. Há um senso de comunidade já completamente extinto em nosso “mundo livre e democrático”. A religião muçulmana, longe de pregar a “guerra santa”, estabelece o dízimo não a uma instituição ou a seu ministro. O dízimo deve ser dado a outro irmão em dificuldade. Com um detalhe: em segredo. Lá não se compra o céu. Ele é dado de graça. Presente divino. Basta alguns instantes dentro da mesquita na Fortaleza de Saladino para perceber isso: a beleza custa barato. Um olhar apenas e nos sentimos no paraíso, aconchegados, ternamente, nos braços de Alá.
Uma pequena história exemplificará. Eu e minha irmã estávamos comprando chilabas em uma pequena loja - numa espécie de shopping do islã - na delicada cidade de Aswan. Cada vendedor se esforçava para ganhar seu freguês. A insistência beirava a insanidade. Na correria para dar o troco, e não perder os clientes, nosso vendedor caiu e machucou a perna. Imediatamente todos os que, antes, de digladiavam em busca de freguês, acorreram ao irmão machucado. Ele parecia importante demais. Lá é assim: primeiro a pessoa, depois a mercadoria. Quão diferente do nosso mundo “democrático e livre”.
As ruas do Cairo também falaram, assim como suas roupas, seus gestos e buzinas (lá a buzina é uma forma de cumprimento). Há algo naquela cidade incompreensível para nossa cultura “democrática e livre”: o trânsito. Aparentemente não há lei. Os carros, em disparadas, entram onde podem e, pasmem, ninguém briga. As batidas são frequentes. Os carros, quase todos, são marcados. Ninguém mata nem morre por um para-choque amassado. É um carro, de plástico/lata. Apenas um carro. Porque brigar? Só pensa assim quem não inverteu valores. Lá amam-se as pessoas e usam-se as coisas. Quão diferente do nosso mundo “democrático e livre”.
E o que dizer das mulheres muçulmanas? Tão aviltadas pela mídia ocidental como oprimidas, relegadas a segundo plano, massacradas e esmagadas na sua feminilidade? Pergunte a elas. Foi o que fizemos. Qual a surpresa? Elas não se sentem oprimidas. A maioria se sente muito bem usando o véu e a chilaba. É a cultura. É seu jeito de viver. Isso em nada depõe contra sua feminilidade. Lá a maioria das famílias está integrada. Vivem juntas até a velhice na saciedade da comunidade, com os filhos e netos. A ideia do amor romântico não é preponderante. Casa-se pelo olhar.
A nossa ideia de relacionamento amoroso seria melhor ou mais livre? Nós que casamos por tesão seríamos mais felizes? A crítica é que lá os casamentos são arrumados, não há amor. E aqui há? As estatísticas dizem que no Brasil a cada oito minutos uma mulher é agredida por seu companheiro. A cada dia uma é morta por esse mesmo homem que lhe jurou “amor” eterno. As delegacias da mulher se entopem a cada dia. Sem contar as milhares que não denunciam, por medo. E a mulher ocidental, escrava de uma beleza inatingível, de uma ideia de amor idílica e criminosa, ainda acredita ser livre. Livre para apanhar ou morrer como quiser nas mãos do seu amado. Mas morrerá sarada, linda de morrer.
É preciso estar do outro lado da linha, verdadeiramente, para perceber que nós somos os escravos. Nós somos os coitadinhos. Nós é que estamos doentes. O mundo “livre e democrático” da democracia estadunidense ora imposta ao mundo é escravizante, desestruturante e assassina. Por isso eles, lá no Egito, não a querem. Sabem que nessa democracia os grandes valores da vida humana jazem sob o capital e a única ética que sobrevive é a ética do mais forte.
No “mundo livre” as mercadorias falam. Surpreso? Vá a um shopping qualquer. Fique atento e ouvirá o grito das mercadorias. A moça entra na loja, experimenta uma calça, mas ela não entra. A moça está acima do peso. Delicadamente a vendedora coloca a calça de volta na prateleira. A calça grita: “Moça! Você está gorda. Vá fazer uma lipoaspiração. Academia. Se vira. Você está feia. Depois volte. Eu ordeno”. Dito e feito. A moça investe tempo e dinheiro, sofrimentos e angustias. Faz regime. Caminhada. Academia. Fica gostosa. Volta na loja na ilusão de que agora ela vai comprar a calça. Ledo engano. A calça a comprou. Há muito tempo. A mercadoria a monitorou o tempo todo, silente, da prateleira. Escrava. Totalmente escrava. Mas não tem importância. Ela vive num “mundo livre”. Poderá passear linda e saltitante com sua calça nova, seu corpo escultural e uma estranha sensação de que nunca será amada, somente desejada.
“Aqui não sabemos o que é depressão” nos disse o muçulmano Abdel Aziz. Palavras estranhas para um ouvido ocidental. Nós vivemos numa angústia crassa. Os consultórios psiquiátricos estão lotados. Crise de ansiedade, crise de pânico, depressão. Essa é a maravilha do “mundo livre”. Preferimos um corpo sarado, malhado, a mostra, umbiguinho de fora, embora desfigurado por dentro. Retorcidos. Almas em escombros. Mas, “livres”.
O corpo e o sexo se tornam as vias régias para a felicidade. Consumir. Somos corpos que consomem corpos. Mas há algo errado. Os urologistas afirmam que 48 % dos homens acima de 18 anos sofrem de algum tipo de disfunção sexual. Aproximatamente metade das mulheres nunca sentiu orgasmo. Confundem a profundidade do amor com um ralo prazer sexual. Estranho. Se no “mundo livre” felicidade é consumir coisas e sexo e se nesse mundo nunca foi tão fácil consumir coisas e sexo, porque a metade dos homens e mulheres são infelizes? Incapazes de sentir o mais terno dos sentimentos: o amor? Mistérios do mundo livre.
Uma conversa rápida com qualquer egípcio médio, esses que estão olhando agora para um novo Egito, basta para perceber que eles vibram em outra frequência, lutam por outros valores e querem outros paraísos, não esses prometidos pela democracia liberal, mas o verdadeiro paraíso humano da bondade, fraternidade e liberdade. Claro que há problemas. Não estou idealizando e glamourizando a cultura muçulmana. Nem tudo são rosas, como em todo lugar. Apenas acredito que não cabe a nós, “democratas ocidentais”, interferir nas suas buscas. Eles têm outra lógica, outra forma de olhar o mundo. Portanto, tem também as soluções. A questão é deles. Porque raios deveríamos dizer o que é certo ou errado? Acaso estamos nós em melhores condições?
Olhar o mundo muçulmano através daquilo que eles têm e nós não temos muda tudo. É um exercício psicanalítico. Um mergulho no nosso vazio. Uma imersão na nossa dor e nossas mazelas. Não é para todos. Dói. Perceber que entregamos ao deus capital a nossa dignidade humana não é algo muito seguro. Perceber que eles ainda mantêm valores essenciais, nos incomoda. Para eles, quem deve mandar na sociedade é Alá e não o capital. Que heresia! Disso decorre toda uma outra forma de viver. Outra lógica. Outro olhar. Outra delicadeza. Mas para perceber isso é preciso sempre estar do outro lado da linha.
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