sábado, 21 de fevereiro de 2015

O dia em que o filho da UFSC se aposentou


Por Raquel Wandelli

a Moacir Loth

Nas vésperas do Carnaval, enquanto as gavetas das repartições se esvaziavam, ele se aposentou silenciosamente, como o fazem aqueles cuja grandeza está em não se convencerem de sua importância para o mundo. Jubilou-se, depois de 40 anos de jornalismo, 35 de universidade, mais cinco de trabalhador rural, fora a infância carregando trato na roça e vendendo fruta que não conta para o tempo oficial. No balanço de tudo, obedecendo ao tal fator previdenciário, 13 anos de trabalho rural e urbano ainda ficaram sobrando. Desde os seis anos, quando começou a ajudar o avô, o pai e a mãe a sustentar a família, Moacir Loth só conheceu a vida dos que precisam trabalhar e servir. Sorrir e fazer graça sempre, mesmo em missões sérias: o bom humor compensa o tempo de brincar que o trabalho sequestrou.

Escrevo com isenção, embora sob suspeita, a respeito desse companheiro de 28 anos de vida e dois filhos compartilhados. Nem o conhecia pessoalmente quando fui trabalhar como estagiária na Assessoria de Comunicação da UFSC e já ouvia falar sobre o jornalista Moacir Loth. O meio jornalístico e a instituição já eram marcados por sua personalidade ao mesmo tempo irreverente e prestativa, pela ousadia política e pela consistência do seu trabalho. Nada do que se possa escrever sobre o seu currículo pode revelar mais a respeito da singeleza sagaz desse servidor do que o privilégio de conviver com sua existência absolutamente generosa, espirituosa e solidária. Só ela pode falar da forma a um só tempo séria e rigorosa, leve e criativa de lidar com o trabalho. E da participação autoral na formação de uma política de comunicação pública para as universidades que se tornou referência nacional.

Não é fácil reunir os itens da sua biografia, descrevendo com fidelidade a coleção de prêmios que conquistou, ou arrolando as funções sociais que ocupou e que comprovam a atuação profissional marcante no âmbito das instituições universitárias e a participação importante na organização sindical da categoria dos jornalistas. O que lanço aqui é uma plataforma in progress da narrativa de sua vida laboral, aberta a todos que quiserem participar, inserindo informações e principalmente lembranças.

Aos 15, um emprego no Jornal de Santa Catarina como servente de cafezinho levou o mocinho mirrado do trabalho rural para o urbano. Junto com o salário mínimo vieram pesadas obrigações que se acumularam com os deveres de estudante. Para chegar a tempo ao Colégio Pedro Segundo, em Blumenau, pulava da cama às 4 horas. Da escola, seguia direto para o jornal de onde só retornava para casa, em Itoupavazinha, à meia-noite. Um funcionário da família Schlosmann, que atuava como técnico das máquinas de composição, sensibilizou-se com a odisseia do alemãozinho. Temendo que o corpo franzino não suportasse a empreitada diária, sua família adotou-o durante um ano. Com um lar mais próximo do trabalho para dormir e fazer as refeições, conseguiu encurtar essa jornada hercúlea e sobreviver.

- Aos finais de semana eu ia pra casa disputar campeonatos de futebol de várzea.

De tanto o garoto percorrer a redação servindo cafezinho, os colegas mais experientes passaram a solicitar que passasse na sala da rádio escuta e lhes trouxesse as últimas notícias enviadas pelas agências nacionais e internacionais por telex. Do cargo de office-boy para o de repórter e editor do jornal foi um salto de apenas um ano. No caminho da sala do telex até as mesas dos editores, ia lendo aquelas mensagens cifradas e corrigindo-as mentalmente. Daí pra tomar a caneta e conquistar a confiança dos editores com a função de “pentear telex” foi um passo. Nesse percurso do menino de Itoupavazinha, formou-se o rádio escuta, o operador de telefoto e radiofoto, depois o repórter, o redator e finalmente o editor de cidade, geral e Internacional.

Em 1976, ainda com 18 anos, venceu o primeiro lugar em reportagem sobre Acidente do Trabalho, em concurso promovido pelo Ministério do Trabalho. Em 1979, aos 21 anos, aportou num dia de chuva na Rodoviária Rita Maria com um eslaque de reco costurado e uma pequena bolsa de plástico contendo pouco mais do que uma escova de dente, uma cueca e uma camiseta. O projeto era trabalhar na sucursal do Santa e conciliar com a faculdade de Ciências Sociais da UFSC. Estava de carona no fusca do diagramador quando escutou no rádio seu nome na lista dos aprovados do Vestibular. Saltou do ônibus e caminhou ao longo da Beira-mar procurando um lugar para comer um ovo frito com arroz antes de se apresentar na redação.

- Foi o ovo mais caro que comi na minha vida.

Como estudante de graduação, venceu o prêmio da Andifes com uma monografia que resultou na publicação do livro: “Educação, Cidadania e Constituição”. Jornalista Profissionalizado, venceu cerca de 15 prêmios, incluindo o Esso com uma série de reportagens sobre as enchentes e várias edições do Prêmio Fiesc; três vezes o Prêmio Jerônimo Coelho, da Assembleia Legislativa, com uma reportagem especial sobre o desaparecimento do deputado Paulo Wright. Na década de 90, implantou, coordenou e editou o Caderno C do Jornal de Santa Catarina, eleito o melhor suplemento cultural de Santa Catarina pela Associação Catarinense de Escritores. A vida profissional nunca se separou da atuação política e sindical. Agredido pela Polícia Militar na cobertura da Novembrada, foi internado com lesões na região dos rins provocadas chutes e cassetetes. Além de censurar a reportagem, o Jornal de Santa Catarina publicou uma declaração de que a ação da PM havia sido exemplar, mas o jornalista emplacar sua cobertura em vários jornais nacionais, distribuindo-a pela Agência do Estadão.

Perfazendo uma história de combatividade, ajudou a criar a partir de 1979, o Movimento de Oposição Sindical (MOS), que enfrentou corajosamente uma prática de aparelhamento patronal do Sindicato dos Jornalistas de Santa Catarina. Eleito cinco vezes membro da Comissão de Ética do Sindicato, elegeu-se também diretor de base da Federação Nacional dos Jornalistas. Foi ainda diretor da Associação Brasileira de Jornalismo Científico e presidente do Fórum dos Assessores da Comunicação da Andifes e membro da Comissão Nacional dos Assessores de Comunicação junto à Fenaj (Conjai).

Em Florianópolis, conheceu o grande amor de sua vida profissional: a UFSC, onde ingressou em 1980. Efetivado cinco anos depois em concurso para jornalista, desempenhou as funções de chefe de reportagem e chefe de redação da Assessoria de Comunicação (atual Agecom), na época dirigida pelo jornalista Laudelino José Sardá. Sua designação para o cargo de assessor-chefe pelo reitor Bruno Schlemper Júnior, em 1988, foi festejada numa inspirada crônica de Beto Stodieck. Colunista de inigualável talento, Beto saudou a nomeação de um funcionário de carreira, humilde e despretensioso, que fugia às indicações partidárias e ao jogo de favores predominante no preenchimento dos cargos públicos.

Nessa época, Moacir implantou na UFSC a Política Pública de Comunicação, resultante de suas pesquisas e monografia de conclusão do curso de Especialização em Comunicação Social Integrada na Fundação Dom Cabral e PUC. Ainda hoje essa experiência serve como documento de base e sustentação teórica para a gestão da área em incontáveis órgãos governamentais. Por esse trabalho em defesa de uma práxis pública de comunicação, pelo Jornal Universitário e pelo conjunto da obra de divulgação dos projetos acadêmicos, a Assessoria de Comunicação da UFSC arrebatou em 1993 o prêmio José Reis de Jornalismo Científico, o mais importante do país nessa seara.

Quem conhece sabe, Moacir nunca trabalhou para os interesses pessoais, mas para os projetos coletivos em prol da instituição. Prova disso é que permaneceu na direção da Agecom durante sucessivas mudanças de reitores e da linha de condução. Participou das gestões de Schlemper Júnior, Rodolfo Pinto da Luz, Diomário Querioz, Lúcio Botelho e Álvaro Prata. Durante esse período, a Agecom produziu aproximadamente 700 jornais universitários e manteve uma presença marcante nos meios de comunicação. Moacir Loth também estruturou o trabalho de comunicação na Editora da UFSC, onde editou o jornal Leitura & Prazer. A repercussão de obras publicadas pela editora em cadernos de cultura de veículos nacionais projetou e consolidou a imagem da instituição nesse campo.
O profissional zeloso com a imagem da instituição nunca se chocou com a ontologia crítica e livre do jornalista, que fez do seu trabalho uma permanente arena de lutas. Trivial, Caiu na Cesta, Direto do Campus e Faz Cócegas, colunas que assinou no jornal universitário, expressaram com mais liberdade o talento para criticar, denunciar e ironizar nas entrelinhas. Mordazes e polêmicas, as colunas se notabilizaram pela sua repercussão, conquistaram leitores fiéis e provocaram reações de um modo inédito na comunicação pública. Provaram que um assessor de comunicação não se separa do jornalista quando serve ao público e não ao poder.

É por tudo isso que a universidade se torna um pouco órfã desse filho tão prestativo, um pouco vazia da singeleza, da humildade, da irreverência, da eficiência, da inocência, e do espírito crítico que estavam sintetizadas na figura emblemática do seu servidor. Juntas essas características constituem uma resistência à desumanização que a burocracia, aliada à tecnocracia e à instrumentalização da coisa pública, produziram no capital humano das nossas universidades.

Aposentadoria é um momento de crise: de risco e de oportunidade de reintegração do tempo da vida ao tempo do trabalho, o que fala da própria reintegração da unidade do ser. Não podemos duvidar que o servidor abraçará o caminho das possibilidades e não podemos desejar outra coisa a não ser que continue contribuindo com seu trabalho voluntário, agora como membro da Comissão da Verdade, constituída em dezembro pelo Conselho Universitário, para analisar os reflexos da Ditadura Militar na UFSC. Por favor, jornalista-servidor, não pare de cuidar da nossa universidade, não deixe que a aposentadoria o divorcie dessa outra família, desse outro lar que é um grande amor da sua vida. Ou talvez a outra seja eu.

- É possível que durante todo esse tempo a universidade tenha sido a minha primeira casa.

sexta-feira, 13 de fevereiro de 2015

Salvador




Vinha das profundezas de lugar nenhum. Era um ninguém.  Balançava a cabeça, resmungando coisas meio sem nexo. Circulava para cá e para lá no movimentado Bulevar da Sabana Grande, centro popular de Caracas. Estava descalço e sujo. Vivia na rua desde que a mulher, sua amada, fora embora.  Ele não conseguia suportar a dor. Estar na pequena casa, construída com sacrifício, nas encostas do Ávila, era vivenciar, sem qualquer proteção, aquela ausência malsã.

Conhecera Guadalupe num comício de Chávez, na campanha de 1998. Ela amava o vermelho comandante. Com ele, dizia, vamos ter vida. E ele seguiu aquela certeza, pelas mãos da morena de riso torto e cristalino. Vencida a primeira batalha, Guade meteu-se em tudo o que podia para ajudar a "revolução bolivariana". Era dessas mulheres viradoras, que queria educação, transporte, moradia, gás, participação. E, ele, acompanhava aquela azáfama febril de construção popular.

Quando veio o golpe de 2002, que tirou Chávez do palácio e do poder, ela se fez multidão. Não estava para namorar. Só a luta renhida para trazer de volta o comandante. Foi uma das primeiras a chegar em Miraflores, punho em riste, defendendo a Constituição. Naqueles dias Salvador chegou a sentir ciúmes do presidente, capaz de despertar tanto amor. Mas, Guade ria muito, dizendo que de seu comandante só queria as melhorias para o povo. Amor, mesmo, era ele, negro fininho, de mãos macias e boca quente. Quando Chávez voltou, carregado pelas gentes, ela tornou à casa, feliz, e eles fizeram amor por dias, numa sofreguidão de felicidades e novas promessas de vida boa.

A Venezuela de Guadelupe era a das comunidades da periferia, a dos morros, das favelas. Era a que se mexia na construção dos postos de saúde, dos centros de atendimento às crianças, aos idosos, nas campanhas de alfabetização. Ela que nunca tivera estudo voltou a frequentar a escola. "Vou ser advogada, quero defender minha gente", adiantava, segura, enquanto se debruçava por noites e noites sobre os livros.

Um dia, sem quê nem porquê ela saiu cedo. Ia fazer alguma coisa no Chacaíto, uma promessa para Chávez ficar curado da doença que lhe comia. Ele não recorda muito bem. Só lembra que ela fez café, pois o cheiro inundou a pequena cozinha, e lhe deu um beijo molhado. Ele a agarrou pelas ancas e demorou no abraço. Ela riu e serpenteou, escapando. "Só volto de noite".  Da porta da rua ainda gritou: Viva el comandante! E ele lhe atirou um travesseiro. Até hoje ele lembra aquele riso de cristal.

A tarde ia alta quando tocou o celular. Foi tudo muito confuso. Guadelupe estava morta. Atropelada por uma moto. Os dias que seguiram foram de completo estupor. Reconhecer o corpo, arrumar o corpo, enterrar o corpo. A vida perdia todas as cores. Toda a alegria vivida desde aquele comício vermelho estava embaixo da terra. Não haveria mais as tardes de "missiones", construindo a nova Venezuela. Não haveria mais o corpo quentinho e aquela absurda esperança que  saia pelos poros. Salvador foi minguando.

Não mais que um mês depois da morte de Guade, foi-se o comandante. Aquele que trouxera a onda vermelha e popular, que acolhera os pobres, os velhos, as crianças. O homem que enchia o coração de Guade de tanto amor. Tudo parecia um pesadelo sem fim. Nem Guade, nem Chávez. Que fazer, onde ir, quem amar?

Salvador não suportou. E, enquanto todo o país chorava aterrado - ante a morte do comandante - ele saiu do barraco e foi para as ruas. Misturou-se às gentes, na perplexidade e na dor. Nada mais seria como antes. Desistiu da vida. Agora anda ali, feito um risco, magro e sujo. Come se alguém lhe oferece. Senão, vagueia, sem rumo. Vez ou outra para em frente aos grandes cartazes com as fotos de Chávez e chora. Ninguém sabe se é por ele ou por Guade. Talvez seja por tudo.

Na linda Caracas, a revolução bolivariana vai sobrevivendo aos tropeções. Como Salvador.   

quinta-feira, 12 de fevereiro de 2015

Movimento de defesa da Ponta do Coral faz ato em Florianópolis


 Militantes da defesa da Ponta do Coral e populares exigiram ver o projeto e reiteraram a proposta de uma Ponta do Coral 100% pública

















Nem o calor ou a iminente saída do bloco que abre o carnaval da capital impediram aqueles que realmente lutam por Florianópolis de realizar um ato de protesto em frente à Fundação do Meio Ambiente (Fatma), entidade estadual que é responsável pelas licenças ambientais quando algum empreendimento, governo ou mesmo uma pessoa comum quer construir alguma obra. Ela seria, segundo o prefeito da capital catarinense  - Cesar Souza  - a entidade que daria a decisão final para  a construção de um hotel de 18 andares na Ponta do Coral, um pequeno braço de terra que avança para o mar, bem em frente a já elitizada Beira-Mar.

A polêmica sobre a famosa ponta não é de agora, ela vem de longe, desde quando o governo vendeu o que era uma área pública, sem passar pela autorização de ninguém. Depois de muitas idas e vindas, na luta da população pela recuperação da área e pela construção de um parque público no local, o atual prefeito da cidade, que usou a defesa da Ponta do Coral como mote para se eleger, atirou a bomba na população: o tal hotel seria construído, mas, com uma modificação, sem a fabricação de um aterro. Entendeu Cesar Souza que isso seria visto como um “ganho” e decidiu, sozinho, que a obra iria acontecer mesmo contra o Plano Diretor da cidade. Para isso editou um decreto que autoriza a empresa Hantei a subir os 18 andares porque, segundo ele, teria protocolado o pedido antes da aprovação do plano diretor. É quase uma novela mexicana, com vilões muito malvados e enganadores, cheios de tramoias, subterfúgios e vilanias.

Para ficar ainda mais perverso, o anúncio da obra veio pela boca de uma pessoa que sempre foi defensora das causas ambientais e urbanas, que agora ocupa o cargo de diretor do Instituto de Planejamento Urbano de Florianópolis (Ipuf), o arquiteto Dalmo Vieira Filho. A notícia saiu nos dias que antecedem o carnaval, apostando na desarticulação dos movimentos.

Não funcionou. Rapidamente, os movimentos sociais se organizaram, realizaram reuniões e já marcaram um ato para a frente da Fatma, onde iriam reivindicar a devolução do projeto à prefeitura, em função da ilegalidade do decreto do prefeito. Então, se o decreto é ilegal, a entidade ambiental não poderia nem encaminhar para o parecer técnico. 

Desde a uma hora da tarde começaram a chegar os militantes ambientais, representantes de entidades populares, vereadores, e pessoas em geral, moradores de Florianópolis que já não suportam mais ver a cidade sendo pilhada e destruída. Em pouco tempo já eram dezenas, portando cartazes, gritando palavras de ordem e pedindo a presença do presidente da Fatma. Em assembleia direta foi escolhida uma comissão para subir e conversar com a direção, mas, quando os representantes estavam entrando, um dos diretores anunciou que o presidente em exercício, Paulo Freitas, iria descer e falar com todos.

Em frente à entidade, Paulo Freitas ouviu as reivindicações dos moradores, que exigem a Ponta do Coral 100% pública. Foi cobrado o fato de o decreto do prefeito ser ilegal, ao que o presidente argumentou que não cabe a Fatma definir se é legal ou não. Seu papel, disse ele, é analisar se o projeto está dentro das regras. Muitas vaias e gritos. Elisa Jorge, representando o movimento em defesa da ponta, esclareceu que, ao dar seguimento a um processo que começa ilegal, a Fatma pode ser corresponsabilizada por essa irregularidade. E insistiu que o presidente disponibilizasse o projeto para que os representantes do movimento e os vereadores pudessem analisá-lo. O receio dos moradores é que, durante o feriado de carnaval, o processo possa ser alterado. “Temos muitos exemplos de coisas assim. A moeda verde, a operação ave de rapina (ambas as histórias de corrupção envolvendo licenças), somos gatos escaldados. Essas coisas acontecem. Nós queremos ver o processo, tirar uma cópia, analisar”. 

Depois de muitas falas, gritos e palavras de ordem, o presidente da Fatma propôs uma reunião para essa sexta-feira, às duas da tarde, com os vereadores Lino Peres, Afrânio Bopré e Pedrão, e representantes do movimento de defesa da Ponta do Coral. Nesse encontro ele se comprometeu de apresentar o projeto na sua íntegra, com cópia de todos os documentos. O acordo, fechado às pressas, acabou criando um desconforto nos manifestantes, porque a decisão era ter acesso ao projeto no ato. Então, depois da saída do presidente da Fatma, a plenária continuou discutindo. Não aceitava deixar para o dia seguinte. Ou a Fatma dava as cópias ou ocupariam o lugar.

A proposta final foi entrar de novo na fundação, pressionando um pouco mais, e exigir a cópias dos documentos. Outra conversa com a direção da fundação foi realizada e os documentos acabaram sendo mostrados e copiados. Vitória do movimento. Ainda assim, nessa sexta-feira, a reunião acordada acontecerá, já com uma discussão mais aprofundada sobre o projeto em si. 

A luta pela Ponta do Coral segue firme e não esmorecerá. Agora, outras frentes se mobilizam. Além da discussão com a Fatma busca-se provar a ilegalidade do decreto do prefeito César Souza e sensibilizar a população para que se mobilize em defesa da ponta. Hoje, o argumento usado pela mídia é de que o lugar é ponto de drogas e que o hotel vai “melhorar” o ambiente. Nada mais hipócrita. O que a população quer é investimento num parque público, que seja entregue as gentes da capital. Não querem um paredão de concreto, isolado no braço de terra que dá para o mar, servindo apenas a uns poucos que tenham dinheiro para desfrutar da beleza da baia. A Ponta do Coral é 100% pública. 


terça-feira, 10 de fevereiro de 2015

Os professores e o plano de carreira

Entrevista com Carlos André, professor em Forquilhinhas.

segunda-feira, 9 de fevereiro de 2015

Bolívia: A luta pela água






O ano de 2000 viu a bonita cidade boliviana de Cochabamba se erguer em rebelião. Naqueles dias, que correram de janeiro a abril, uma parte significativa da população protagonizou o que ficou conhecido como “guerra da água”. A administração local havia decidido privatizar o sistema de gestão da água e isso logo após as tarifas dobrarem de preço. Quem iria dominar a água seria a empresa Águas de Tunari, nada mais do que uma filial de um grupo estadunidense, Bechtel. Foi a gota que faltava para que a população – que já vinha se organizando – decidisse enfrentar a privatização, nas ruas. 

A luta foi sem tréguas, com protestos e enfrentamentos, a tal ponto de o então presidente da república, Hugo Banzer, declarar estado de sítio. Muitos dos líderes foram presos, rádios comunitárias foram fechadas e a cidade de 600 mil habitantes virou um barril de pólvora. Mas, a força das gentes definiu a vitória. O governo anulou o contrato de concessão do serviço – que duraria 40 anos – e suspendeu a privatização. 

Uma das lideranças que esteve à frente das batalhas foi Oscar Oliveira. Um homem pequeno, que parece um menino, de gestos comedidos e fala baixinha. Quem o vê não percebe, em primeira hora, o gigante que vive ali. Pois nos dias em que Cochabamba viveu a guerra da água, ele trabalhava numa fábrica de calçados, mas era, já de longa data, dirigente sindical. Sua batalha pela vida começou muito cedo, ainda menino, quando precisava vender massinhas na porta da escola para ajudar nas despesas da família que formava um grupo de 12 pessoas. Não bastasse a pobreza, ainda teve diagnosticada uma doença grave no coração, a qual, diziam os médicos, não lhe permitiria viver mais que vinte anos. Pois Oscar viveu, e não poupou emoções ao músculo que pulsava como uma bomba relógio. 

Enfrentou, nos anos 80, a ditadura de Luiz Garcia Meza atuando no Comitê Clandestino de Bases do Sindicato de Manaco e nos anos 90 dirigiu a Confederação dos Trabalhadores Fabris da Bolívia. Toda sua trajetória se fez no espaço sindical, e não foi fácil fazer a transição para o movimento popular que desembocou na chamada Guerra da Água. “Os companheiros sindicalistas não compreendiam a extensão daquele movimento que crescia no meio da população. Alguns chegaram a me pressionar, dizendo: o que tu tens a ver com isso da água? Então eu explicava para eles que eu trabalhava numa fábrica de sapatos, logo, tinha tudo a ver com a água. Sabe quanto litros de água são gastos para fazer um par de sapatos? Oito mil litros. Imaginem que a fábrica onde eu trabalhava fabricava 25 mil pares por mês. Quanto de água ia pelo ralo? Ora, a questão da água era uma questão para mim, sim, e eu fui atuar naquele movimento. Porque a água é um direito humano, não pode ser vendida”.   

E ele foi às ruas e liderou gentes no rumo da vitória. Hoje, Oscar não trabalha mais em fábrica. Atua em uma escola rural onde ensina as crianças a conviver de maneira harmônica com a terra. E, mesmo ali, enfrenta o olhar de estupefação e a incompreensão dos colegas. “Os professores dizem: mas de que adianta ficar com as crianças na horta. Há que ensinar matemática, biologia, física. E eu explico: para fazer uma horta temos de medir a superfície, o volume, a profundidade. Isso é matemática. Para plantar uma beterraba a gente vai conhecendo sua conformação, seus nutrientes, isso é biologia, é química. E assim, numa simples horta, podemos ensinar geopolítica, economia, qualquer coisa. Nós temos de recuperar essa coisa fabulosa dos nossos ancestrais que era a relação com a terra, com a água, com a natureza. Atuar em harmonia, respeitar, compreender a nossa cosmovisão. Sem isso, não há como fazer política”.

Agora ele foi mais além e está construindo, junto com sua gente, a primeira planta de tratamento de águas servidas dirigida pelas próprias pessoas da comunidade. A ideia surgiu como uma forma concreta de salvar o rio Rocha, veia hídrica importante para a vida da cidade que tem sido poluída sistematicamente por esgoto e resíduos industriais. O trabalho já leva um ano, envolvendo a escola onde trabalha e o governo de Cochabamba. É o trabalho com as crianças dando resultado, ultrapassando a horta da escola. 

Assim, devagar, vai se erguendo a obra que pretende manejar o ciclo integral da água, devolvendo a água tratada à Mãe Terra, conservando o manejo comunitário e participativo do serviço. É o resultado mais importante daqueles dias de batalha. Venceram a privatização e, agora, há que garantir a autonomia das gentes e a capacidade de mobilização que permite a todos tomarem decisões sobre seu território e suas vidas.  

O custo total da obra é de 10 mil dólares e ela vai se fazendo na comunhão com pessoas de todo o mundo. Cada uma pode aportar um tijolinho nesse sonho. Não é coisa fácil porque toda a gente é pobre. Mas, os amigos são muitos. Agora, os comuneiros lançaram uma campanha pela internet, com a qual pretendem arrecadar mais fundos para dar seguimento ao trabalho.  

Desde aqui, nós, que compartilhamos essa luta pela soberania da água, colocamos nosso tijolinho e convidamos a quem mais possa para ajudar. Para isso, basta acessar a página do projeto e fazer uma doação. Tudo de um jeito fácil e rápido. Para aqueles guerreiros da água, qualquer valor é bem vindo porque eles caminham seguros na direção de um sonho que é concretizado a cada dia, coletivamente. 

Então, de novo, nos passos do pequeno Oscar, caminham essas ideias imensas de vida e solidariedade.

http://www.fundacionabril.org/about-2/agua-y-saneamiento/salvemos-al-rio-rocha/


domingo, 8 de fevereiro de 2015

Pelo parque das três pontas, contra o monstro de 18 andares




Era 1988 e eu vi a Praia Brava em Florianópolis pela primeira vez. Eu e minha amiga Roseméri. Subimos o morrinho à pé. Não havia estrada. Era um caminho. E tão logo a gente chegava ao topo, aquela vista estupenda se descortinava: o mar, revolto, mexido, e uma branca faixa de areia ladeada pelo verde da mata. Era como chegar ao paraíso. A gente descia o caminho e ali ficava, reverente, diante de tanta beleza. Hoje, 26 anos depois, como encontrar a beleza por lá? Os prédios, gigantes, tiraram a visão da praia, e ali ficam, como monstros, despidos do verde e de tudo aquilo que fazia da praia um lugar de sonho. “É o progresso”, dizem os vendilhões. “É a destruição e a privatização da praia”, digo eu.

A cidade de Florianópolis é conhecida em todo o país como um lugar de maravilhas. Quarenta e duas praias lindíssimas, todo o tipo de mar. Mas, o que faz dela referência nacional vai pouco a pouco desaparecendo em meio à voracidade daqueles que só pensam em especular. Na bela, calma e quentinha Jurerê, quem está ligando para o mar? O que está “na crista” são os badalados “beach clubs”, barracas de luxo montadas na areia, que privatizam a praia e alojam jovens ricos e descolados, muito mais preocupados em consumir bebidas e outras “cositas”, na preliminar de noites quentes de sexo sem compromisso. Beleza? Natureza? Isso é coisa de bicho-grilo e eco-chato.

Canasvieiras, Ingleses, Ponta das Canas e outras praias do norte são atualmente quase cidades dentro da cidade selvagem, sem praças, sem espaços de convivência, sem preparação para o comunitário. Só paisagem especulada. A pessoa compra um apartamento para estar perto do mar, mas o mar já quase não importa mais.

A região do sul da ilha passou a ser a bola da vez nos últimos anos, uma vez que o norte já estava “craudiado”, tomado, cheio. E, assim, com a bênção dos vereadores, as mudanças de zoneamento foram acontecendo permitindo construções cada vez maiores. De novo, a beleza cedendo passo ao concreto. Uma ocupação desenfreada, sem planejamento, sem cuidado. 

Durante mais de sete anos as comunidades se reuniram, planejaram a cidade, pensaram formas de ocupar sem destruir a beleza, organizaram a vida com espaços comunitários de lazer, desenhando um mundo de equilíbrio. Mas, uma rasteira do novo prefeito, então recém-eleito, colocou todo o trabalho no chão. E, num dezembro, quase natal, a Câmara de Vereadores – exceto por três votos  - aprovou um novo plano diretor, com mais de 600 novas emendas, que nenhum dos vereadores conhecia. Foi um massacre, apesar da mobilização e luta das gentes. Mais uma vez, a cidade pensada pelas autoridades emergia, excludente, segregadora e elitista, escapando das mãos dos moradores. Tudo para os especuladores, migalhas para a população real.

Agora, em pleno carnaval, quando o país todo vive a modorra da festa, a alienação necessária para enfrentar mais um ano de batalhas, outro golpe se abate sobre Florianópolis. Numa manobra digna dos melhores gangsteres, a prefeitura aprova a construção de um hotel de 18 andares na Ponta do Coral, um espacinho de terra que avança para o mar e que ficou perdido na selva de concreto da Beira Mar. Um pedacinho reivindicado pela população para que se transformasse num jardim, um pequeno parque público, capaz de ser vivido por qualquer cidadão. Dali, daquela ponta esquecida, pode-se vislumbrar toda a Baia, uma paisagem de tirar o fôlego. Por isso a luta incessante pelo tombamento. Centenas de atos, passeatas e concertos ao fim da tarde foram realizados. Uma batalha de titãs. De um lado, empresários e políticos dispostos a privatizar a Ponta, e de outro, as gentes, querendo garantir a pequena ponta de beleza para toda a cidade. 

Essa luta é uma peleja que ainda está em curso, apesar da jogada da prefeitura. Segundo os administradores, o licenciamento para a obra saiu antes da aprovação do Plano Diretor, que não permite um prédio de 18 andares ali, por exemplo. Jogada de mestre. A aprovação saiu na calada da noite, quando toda a gente enfrentava a luta contra o Plano Diretor artificial que saiu das mãos da prefeitura. Distraídas as gentes, os burocratas garantiram os carimbos e definiram a concordância para a construção de um hotel – espaço privado – na Ponta do Coral. E, não bastando ignorar a reivindicação da população, ainda usaram da prerrogativa da anterioridade à aprovação do Plano Diretor, para permitir um monstro de 18 andares. 

Quem conhece a Ponta do Coral sabe o que isso significa. É como um estupro, uma violação. A proposta inicial da Hantei, construtora responsável pelo projeto do hotel, era aterrar o mar e ganhar ainda muitos metros quadrados de espaço. Isso parece que não vai mais acontecer. Então, eles erguerão o espigão privado no pequeno braço que se estende para o mar. Não mais jardim, não mais parque, só mais um gigante de concreto, disponível apenas para os ricos. A paisagem especulada outra vez. 

Na TV comercial já começou a campanha contra os que eles chamam de “eco-chatos”, os que travam o progresso da cidade, os que não querem o crescimento. As bocas alugadas tecem loas e agradecem aos empresários bonzinhos que permitem o acúmulo de mais e mais turistas de alto poder aquisitivo. Não percebem eles que, apoiando esse projeto de cidade, mesmo que tenham os bolsos cheios, também serão atingidos pelas consequências. São ventríloquos, sem cérebros, incapazes de defender a cidade, eco-burros. A prefeitura liberou, mas ainda falta a licença ambiental. Todo o foco agora é na Fatma, a fundação que cuida do meio ambiente.  

A nós, os que amam a cidade e querem que ela possa ser vivida por todos – os com dinheiro e os sem dinheiro – cabe travar o combate. A Ponta do Coral não pode ser violentada. É nossa obrigação denunciar e militar em favor da Ponta pública, comunitária, livre. Cada um, cada uma, é responsável por esse trabalho de conscientização que a mídia comercial não faz.  Que bem ao “progresso” pode fazer um hotel de 18 andares na Ponta do Coral? A quem servirá? A uns poucos...

O único progresso possível numa cidade como Florianópolis é a manutenção da beleza, da natureza exuberante, em equilíbrio com as gentes e os bichos. Por isso a proposta é a formação do parque das Três Pontas, público, que permitirá o usufruto a qualquer um. Um caminho úmido ligando Ponta do Coral, Ponta do Goulart e Ponta do Lessa, três pequenos braços de terra entrelaçados por mar e mangue. Um criadouro de vida. Essa é a nossa batalha. E vamos nela até o fim. 

quinta-feira, 5 de fevereiro de 2015

Armandinho...


 Todos autografados pelo criador...




Um presente precioso!!!

















Não sei se é por conta da cornucópia de notícias ruins, bizarras e torpes que pululam nas redes sociais, mas o mundo parece que está mais gris. Todos os dias a mente da gente é invadida pela dor, o medo, o terror, a hipocrisia, a violência. E como uma planta sem sol, até o corpo vai minguando. Nem o verão ostentação consegue dar luz ao dia. Pelos menos é assim que enfrento o cotidiano, todas as manhãs, já com um certo cansaço de existir.

Então, como um náufrago, me agarro a pequenas delicadezas que se fazem sol. E, no encontro com a beleza, que surge em átimos, recupero a força para seguir construindo caminhos.

Uma dessas maravilhas solares me chegou dia desses pelo correio. Quatro singelos livrinhos nos quais quase me agarro nas horas noas (de angústia). Eles são como madeira flutuando no oceano, ao meu alcance, me salvando. Dentro deles vive um menino que desperta os sentimentos mais puros, que liberta a criança escondida e endurecida nas nossas vidas de autômatos ganhadores de salário. Seu nome é Armandinho e ele tem por amigo um sapo, do qual não espera nada a não ser que pule e coaxe e brinque e salpique nas poças de água. “Não tenho amigos por interesse”, diz.

Esse gurizinho de topete e calção azuis abre os meus dias, incendeia minha alma, apascenta meu coração. Ele é pureza, é ternura, é delicadeza, é doçura, é encanto. Ele desperta o que de melhor há em mim. Sobre a mesa da sala ele já é da família. Nenhum dia se passa sem ouvir sua voz, fugida das páginas.

De dentro do Alexandre, seu pai/amigo/cúmplice, ele salta e voeja pelo universo das minhas rotações diárias. E eu agradeço por ter essa pequena delicadeza para atravessar o mar revolto da falta de esperança. Quando tudo fica pesado demais, eu escuto sua voz de menino a dizer: perdeu a esperança, vem, vamos ajudar a encontrar. E o sorriso que baila na cara da gente é a certeza de que já encontramos.


Os livros do Armandinho me chegaram como um milagre de natal. Com toda a ternura de seu criador. Vida longa, Alexandre Beck. Porque o Dinho já é eterno...