quinta-feira, 25 de outubro de 2012

A cidade desigual: tremei, sem-lanchas...




Circulou na ilha de Santa Catarina uma reportagem sobre os "sem-lancha" que vivem na capital. Em linhas gerais, dizia que em Florianópolis o nível de vida é tão alto que os ricos que povoam a ilha têm como grande demanda social a construção de marinas, porque, agora, muito mais gente pode comprar barcos para passear no fim de semana, percorrendo as 42 praias que há.

Otília lia o recorte tirado da internet no ônibus das 18:15 que faz Centro/Rio Tavares. Ficara  40 minutos na fila porque, pagando 2,90 reais, ela decide ir sentada, mesmo que tenha de deixar passar dois ou três ônibus, sempre lotados. Eu sentei ao seu lado e fiquei rabeirando com o olho o tal recorte. Ela percebeu e começou a falar. Tinha a voz embargada. "Sabe o que eu queria? Conhecer quem escreve isso? Será que os que escrevem nos jornais não vivem na cidade? Será que são de fora? Ou será que são uns filhos da puta, mesmo?" Foi a minha hora de envergonhar, já que jornalista sou.

Otília mora no sul, no bairro Tapera. A rua onde tem seu "barraco", como chama, não tem calçamento nem esgoto. Ela trabalha numa padaria no centro da cidade. Veio para Florianópolis na grande explosão migratória dos anos 80. O pai, lavrador na região de Lages, não  conseguia mais trabalho e decidiu vir para a capital para ver o que dava. Aqui batalharam muito pra viver. "A gente chegou e ficou naqueles barracos que tinha na Via Expressa, lembra, que o Amim mandou derrubar? Meu pai catava lixo e a gente se virava. A mãe foi trabalhar de doméstica e crescemos nessa batalha. Hoje conseguimos fazer uma casinha lá na Tapera, é nossa, mas foi muito sacrifício. A mãe, mesmo, não viu. E lá no bairro não tem classe alta não, a gente é tudo pobre. Essa cidade do jornal só existe em Jurerê".

Otília não está muito errada. Os "sem-lancha" existem na ilha e são muitos. Ocupam os bairros nobres como Jurerê, Daniela, Santa Mônica, Itaguaçu, o centro, a Beira-Mar. E só conseguem desfrutar da vida porque existem milhares, como Otília, que limpam sua sujeira, fazem sua comida, cuidam de seus filhos. Como diz Ítalo Calvino, em suas cidades invisíveis, há uma cidade que aparece e outra que fica velada. Assim em Floripa. Na mesma região dos Ingleses, do famoso Costão do Santinho, vivem centenas de famílias sem-teto, em barracos sobre as dunas ou terrenos de ocupação, alagadiços e insalubres. No sul da ilha outras tantas famílias batalham para barrar a onda imobiliária que vem arrasando o modo de vida, erguendo prédios de alto nível para moradores esporádicos que chegam de helicóptero no verão.

São pelo menos 64 áreas de periferia na cidade, gente vivendo em condições precárias, em constante luta por moradia, por vida digna. Por esses dias, mais de 120 famílias foram jogadas fora de um terreno que ocuparam na vizinha cidade de São José, e estão abandonadas em ginásios. Precisam, em meio ao desespero, encontrar forças para lutar. E com elas vai o movimento social, que se mobiliza, e organiza, e protesta. A ilha da magia não é a ilha de paz e riqueza que a mídia apregoa. O que há são grandes empreendimentos que construtoras e especuladores querem impor à cidade, num "progresso" que só chega para alguns. Desde há anos tentam construir marinas em lugares como a Lagoa da Conceição e a Ponta do Coral, espaços de beleza e de vida comunitária. A meta é privatizar a beleza, entregá-la aos novos e velhos ricos.

Enquanto isso, pessoas como Otília, e toda aquela massa que se acotovela nos ônibus ao final da tarde, só têm direito ao indescritível pôr do sol, que se vislumbra pela janela. Muitas vezes até ele é negado porque não são poucos os que, vencidos de cansaço, fecham os olhos e dormem. Perdem a beleza, e a vida vai se esvaindo. Por isso, a indignação de Otília, a incredulidade diante do recorte, do cinismo do repórter.

Florianópolis adormece, mas nas entranhas, viceja a luta. E enquanto a classe alta sonha com marinas, os pobres se organizam e planejam o assalto a uma vida que seja digna de ser vivida. Tremei, sem-lancha, porque a onda vem...!  

terça-feira, 23 de outubro de 2012

Salvar os Guarani-Kaiowá?


Aprendi com meu irmão, há muitos anos, que não há nada pior no humano do que a hipócrita (por vezes não intencional) musculação de consciência. E isso é coisa que acontece muito no meio daqueles que estão no topo ou no meio da pirâmide social. Olham para o sofrimento dos pobres - a comunidade das vítimas do sistema - como se fossem coitadinhos, e sentem pena. Podem até chorar diante de uma foto ou de uma dada situação. E desde sua pena, buscam ajudar, musculando a consciência. Um quilo de arroz numa campanha para vítimas da enchente, um agasalho para as entidades filantrópicas, uma doação ao “criança esperança”. Depois, consciência musculada, voltam a vida normal, certas de que fizeram tudo que podiam fazer. Arrisco dizer: isso não é suficiente. Apazigua a consciência, mas não muda as coisas.

Detectei essa reação nesses dias em que se resolveu prestar atenção ao sofrimento indígena. Um grupo de índios Guarani, do Mato Grosso do Sul, que desde há 500 anos vêm observando a estranha mania dos cristãos – seus dominadores - em se purificar no sacrifício, resolveu expor a chaga aberta do sofrimento de sua gente numa concreta vivência sacrificial. Ou lhes deixam viver nas suas terras, ou se matam, em grupo. Ato extremo, sofrimento extremo, decisão extrema. Então, como que atiçados pelo sempre excitante momento do sacrifício, as gentes brasileiras decidiram começar a falar do “absurdo” que é essa desesperada decisão. Assim, terminada a novela das oito, que segundo algumas vozes “parou o país”, agora as redes sociais e todos os que têm espaço de voz nos meios começaram a discutir a questão dos Guarani que estão prometendo se matar. Sinto aí certo cheiro de musculação de consciência.

O grito dos Guarani de Mato Grosso do Sul não é o primeiro nem será o último. Desde o momento em que os povos originários perceberam que a cruz e a espada que chegavam com os homens do além-mar eram armas de opressão, a luta pela manutenção do direito de viverem na sua terra, com seus deuses e do seu jeito, começou. Ao longo dos anos, com a colonização europeia, milhões de pessoas foram assassinadas, das formas mais cruéis, simplesmente porque atrapalhavam o caminho para o ouro e as riquezas do novo mundo. Essa gente desesperada que hoje grita em agonia por um naco de terra onde descansar a cabeça, é a mesma gente que antes da invasão aqui vivia em fartura, nas grandes cidades como Tenochtitlán, Cuzco, Tiuahanaco, maiores e mais populosas que Madrid, Lisboa ou Florença no mesmo tempo. Eram homens e mulheres que conheciam a astronomia, a matemática, a hidráulica, a engenharia. Eram os que experienciavam uma forma de vida comunitária, na qual ninguém passava fome, no mesmo tempo em que na Europa medieval as pessoas padeciam de fome crônica. E foram eles os considerados sem alma, os passíveis de todo o tipo de selvageria e escravidão, porque não falavam a língua espanhola ou portuguesa e professavam outra fé, na variedade dos deuses.

O grito dos Guarani de Mato Grosso do Sul é o mesmo grito do cacique da etnia Taíno, Hatuey, que, em 1511, poucos anos depois da invasão, ao descobrir que o deus verdadeiros daqueles homens era o ouro, viajou desde o Haiti até a ilha de Cuba, com 400 guerreiros, para avisar que o que chegava pelo mar era a destruição. Não foi escutado. Mesmo assim se dispôs a lutar contra os espanhóis e só parou quando foi capturado e morto na fogueira. Foi vencido pela força dos arcabuzes, tendo seu povo sido dizimado em castigo. Esse grito segue aí. Também continuam ressoando os gritos de Cuauhtemotzin, no México, quando em 1520 igualmente iniciou a resistência contra os espanhóis que haviam assassinado milhares na cidadela de Montezuma, e os de Ruminahuia, que na região de Quito também se levantou em rebelião contra os que queriam destruir seu mundo e o dos seus. E o que dizer dos Tamoios no Brasil de 1562, que chegaram a constituir uma confederação para enfrentar a vilania portuguesa?

Pois essa gente tem gritado, lutado, batalhado, peleado desde os primeiros momentos da invasão. E, desde sempre esses gritos foram abafados, porque os indígenas não eram vistos como seres capazes de gerir suas vidas. Eram homens e mulheres dominados que tinham de se render calados e servis. Só que nunca foi assim. A batalha pelo continente segue aí, desde então.

Mas, como sempre acontece, os vencedores impõem suas razões. Os povos indígenas foram dizimados em nome do progresso e do bem estar dos invasores. Os que valentemente sobraram acabaram confinados em reservas, ora como bichos raros, ora como coitadinhos e incapazes. Integrar o índio à sociedade passou a ser o mantra dos caridosos vencedores. E os que acreditaram no engodo já viram o que sucedeu. Incorporados a uma sociedade racista, patriarcal, capitalista, seguem sendo vistos como seres inferiores, mesmo os que chegaram aos mais altos postos da estrutura social. Índios, os seres sem alma.

Há poucos anos o país acompanhou a polêmica da reserva Raposa Terra do Sol, uma imensidão de terra indígena que os originários lograram garantir para si. Quem não se lembra dos ferozes argumentos da distinta sociedade pensante? “Para quê tanta terra para índios? O que eles vão fazer com isso? Vão destruir tudo e vender as madeiras.” Esse era o diapasão dos caridosos brasileiros. E as batalhas pela região do Xingu que estão aí, se arrastando há anos, sem que ninguém se apiede das almas das gentes que vão perder seus rios, seus deuses, seu território em nome de uma barragem para gerar energia aos estrangeiros. E os mesmos piedosos argumentam que “essa gente” (os índios) é o atraso, a decadência, o anacrônico, incapaz de ver a importância do progresso que virá com a devastação da Amazônia.

É que esses índios são os que, por estarem em grandes grupos e articulados com movimentos sociais, lutam. Travam a boa batalha contra a destruição do seu modo de vida. E como valentes guerreiros precisam enfrentar as armas inimigas que já não são só arcabuzes e cavalos. Vêm acompanhadas da mídia que fortalece pré-conceitos e visões pré-determinadas do poder. Esses, os “arruaceiros”, não são dignos de piedade por parte da sociedade que fica em frente à TV musculando sua consciência.

Então, das entranhas do cerrado mato-grossense, um pequeno grupo de Guarani-Kaiowá, que luta desde há anos por demarcação das terras, sofrendo violência, mortes, assassinatos, desaparição e o sistemático suicídio de seus jovens guerreiros, resolve usar a última arma que lhe resta: o próprio corpo, sua humanidade, o corpo coletivo de toda a gente. O drama dessas famílias vem sendo denunciado ano após ano pelos Cimi, por jornalistas, por estudiosos, por todos os que se importam, mas nunca tocou o coração das maiorias. O ataque diário dos fazendeiros, a violência da justiça local que não os escuta, o preconceito e o ódio dos que vivem na cidade, picados pela ideia de que os índios só atrapalham o progresso, tudo isso é tema de debate e denúncia nos fóruns de luta social. Mas, nunca houve piedade. As terras seguem sendo griladas, roubadas, subtraídas dos índios. A vida foi se extinguindo, o espaço se apequenando. Foi preciso um ato extremo, uma decisão de desespero, para que a nação se voltasse para esses que são os cordeiros de um novo sacrifício. Agora sim é a hora da compaixão. Os “atrasados” não estão armados, não estão em luta, não fazem arruaça. Eles desistiram. Não têm mais força. São muito poucos, estão sozinhos. Eles desistiram. Já não são mais “perigosos”. São apenas as ovelhas do sacrifício. Eles desistiram. Estão vencidos. Então, por esses sim, podemos rezar, chorar, nos apiedar. Sepulcros caiados. Sociedade apodrecida.

Arrisco dizer que os Guarani-Kaiowá sabem muito bem dessa hipocrisia ocidental, dessa pantomima que os piedosos gostam de fazer para parecerem bons. Ah, eles conhecem essa psicologia desde há 500 anos. E, agora, se valem disso para expor o seu drama e para testar a “bondade” branca. Mas, eles não estão brincando. Seu grito de agonia ecoa anos a fio. Nada nunca foi feito. Já basta. Não há sentido viver quando a vida não pode se fazer real. Diante de uma justiça que protege o rico, o grileiro, o ladrão; diante de uma sociedade que vê como normal a miséria e o abandono de famílias inteiras na beira da estrada; diante do opressivo preconceito que as pessoas da cidade manejam cotidianamente, o que fazer? Se vida não há, porque preservar um corpo? A lógica da simplicidade.

E os Guarani-Kaiowá colocam a sociedade brasileira diante de um dilema também. Salvá-los não basta. Definir uma terra para aquelas famílias não significa o fim do drama indígena no Brasil. O apressado movimento dos atletas de consciência em demarcar áreas para essas famílias em particular não acomodará as tensões que eclodem todos os dias nas áreas permanentemente em disputa entre indígenas e grileiros ou entre indígenas e Estado. Há que ultrapassar esse limite da resolução de um drama singular. Há que se colocar de frente com todos os conflitos. Há que se compreender a realidade indígena, conhecer seus costumes, seus deuses, seu modo de organizar a vida. Salvar os Guarani-Kaiowá de Mato Grosso do Sul não pode ser só um ato a mais de musculação de consciência, praticado numa situação específica, com um grupo específico. O drama indígena em “nuestra américa”, inaugurado com a valentia de Hatuey, atravessando perigosas ondas do Haiti até Cuba para anunciar a desgraça e conclamar a união na luta, não se esgota naquele grupo de homens, mulheres e crianças que hoje assumem a condição de cordeiros de sacrifício. Os indígenas não precisam de nossa pena, nem da nossa comiseração. Eles só precisam ser respeitados nos seus direitos e na sua vontade de ser quem são.

Os Guarani-Kaiowá estão a dar uma lição. Quem tiver ouvidos para ouvir, que ouça. E aprenda!

sexta-feira, 19 de outubro de 2012

Vem aí o Dia Nacional do Saci Pererê...



Preparem seus barretes vermelhos e as estripulias  A revista Pobres e Nojentas promove atividade no centro da cidade de Florianópolis (esquina democrática), no dia 31 de outubro. Celebração do Dia do Saci Pererê e da cultura nacional. Participe!!!

Conheça a ideia do Dia do Saci como luta anticolonial

Até os anos 60 a vida da gente era completamente imbricada com a natureza. As grandes cidades ficavam muito distantes e as crianças vivenciavam toda a beleza de conhecer e compartilhar as figuras míticas, moradoras das florestas e dos cantos escuros do lugar. Desde pequenos, os meninos e meninas aprendiam que no meio da noite vagava um negrinho, pastoreando uma boiada, e que se alguma coisa se perdesse dentro de casa era só acender uma vela, e o negrinho ajudava a encontrar. O negrinho do pastoreio era visto nas noites de chuva, quando os relâmpagos riscavam o céu, imponente, no seu baio, cavalgando no rumo das estrelas.

Nas tarde de inverno, quando os redemoinhos varriam as ruas, a gurizada saia como foguete, com suas garrafas de bocas abertas, buscando aprisionar os sacis pererês. Porque afinal, desde sempre aprendiam que o negrinho de uma perna só costumava estar sempre no meio do redemoinho e só aí, quando estava distraído, girando no vento, é que se podia pegá-lo. De resto era sempre um tal de fazer estripulias, batendo janelas, quebrando as louças, levantando as saias das moças. O Saci é guri frajola, serelepe, cheio de alegria e de liberdade.

E se vinha a noite fechada, as crianças entravam em casa, porque sabiam que lá fora, na mata, haveria de andar o boitatá, a cobra de fogo que come os olhos dos bichos, ou ainda o lobisomem, buscando sangue fresco, e o curupira, arrastando os pés virados, procurando pela mula-sem-cabeça. Esse era um universo conhecido e reproduzido nas escolas, na família, nas rodas de conversa ao pé do fogo.

Mas, com a consolidação do modo capitalista de produção no Brasil, que começou a apertar os laços no final dos anos 50, outra dominação foi tomando conta da vida das gentes: a dominação cultural. Já não bastava mais importar o jeito de produzir, a maneira de fazer as coisas, mas era necessário também copiar a cultura daqueles que os poderosos julgavam ser dignos de confiança. Foi assim que se introduziu a moda, com a calça jeans, a minissaia, ou a música, com a introdução da guitarra elétrica e o rock, abafando de vez a marchinha, o xaxado, o baião e a vaneira. No cinema, dava-se adeus aos musicais inocentes e aos filmes do caipira Mazzaropi, recheados da vida nacional. Era chegada a hora de Hollywood e seus enlatados repletos de ideologia, colonizando as mentes. Os faroestes estadunidenses endeusavam os cowboys e demonizavam os índios. Os filmes de ação apresentavam os soldados estadunidenses como heróis, salvando o mundo dos  horrores das guerras, dos comunistas, e os dramas consolidavam a certeza de que bom mesmo era viver em apartamentos com carpete, fumar Malboro e encontrar o homem dos sonhos, que seria branco, alto e de olhos claros.

A partir daí foram-se ocupando os territórios mentais. As cidades cresceram, se modernizaram, e as gentes se faziam cada vez mais parecidas com aqueles que, de certa forma, já dominavam no terreno da economia e da política. Bom mesmo era cantar em inglês e não foram poucos os jovens cantores brasileiros que iniciaram suas carreiras cantando na língua estrangeira. Um bom exemplo foi Morris Albert, que fez sucesso no mundo todo com a música “Feelings”. Cantar em português era coisa de brega. Nas festinhas a juventude enrolava um inglês que sequer se entendia. Papagaios.

O conceito de colonização diz que essa situação se faz real quando se conquista um território e se estabelecem novos moradores de acordo com o desejo dos que dominam. Pois foi exatamente isso que aconteceu com a gente. Nas cabeças das crianças, desde a mais tenra idade, foram sendo plantados novos conceitos, totalmente alienígenas. E esse tipo de controle chegou também no campo dos mitos. De repente, já ninguém mais falava em Saci, Curupira, Boitatá, Mula-sem-cabeça. Pela via do cinema cresceu a figura do vampiro e das festas estadunidenses. Uma delas é o Dia das Bruxas.

Até uns 20 anos atrás o tal do “Raloim” era celebrado apenas nas escolas de inglês, o que até tinha certo sentido, uma vez que quando se aprende uma língua há que se aprender algo da cultura do povo. Mas, depois, de mansinho, a festa foi se imiscuindo na vida cotidiana dos jardins de infância das escolas públicas e particulares, espaço de terra virgem, onde a colonização mental tem uma força tremenda. Sem que as famílias percebessem, os elementos mais enraizados da cultura estadunidense começaram a fazer morada na vida da criançada brasileira. Abóboras, a lenda do Jack, enfim, todos os elementos da belíssima lenda de origem celta que foi trazida aos Estados Unidos pelos colonos ingleses. Coloniza-se a cultura e movimenta-se a máquina do capital.
Ao contrário do significado cultural e místico que o Halloween tem nos Estados Unidos, aqui, ao ser transferido de forma artificial, o tal “dia das bruxas” nada mais é do que uma data a mais para vender coisas. Desafortunadamente, essa colonização mental não acontece unicamente no Brasil, ela toma conta também de quase todos os países latino-americanos, onde se pode ver a indefectível abóbora nos 31 de outubro de cada ano.

No Brasil, um grupo de ativistas da cultura do interior de São Paulo começou desde há anos um importante trabalho de conscientização sobre a história da cultura nacional. Grupos como a Sociedade dos Observadores do Saci, a Sosaci, tem dado contribuição importante nesse processo, produzindo vídeos e outros materiais educativos visando recuperar os antigos mitos e lendas da cultura indígena e negra. Levando esse debate por todo o país, os militantes da Sosaci querem que seja instituído o dia 31 de outubro como o Dia do Saci, fazendo com que nosso moleque, de raiz indígena e negra, vença de uma vez por todas a dominação cultural do “raloim”, como bem atesta o manifesto do grupo. “Nós, brasileiros, temos nossos próprios mitos, que não ficam nada a dever a esses importados, comerciais, que são usados para anestesiar a auto-estima do nosso povo. Respeitamos os mitos dos outros, mas não queremos que eles sejam usados pela indústria cultural como predadores dos nossos. Cada vez mais, muitos brasileiros começam a compreender isso.

Uma prova são  eventos como “O Grito do Saci”, realizado em São Luiz do Paraitinga, Estado de São Paulo, que atrai muita gente e cria uma catarse geral, uma lavação de alma. Outra prova é a onda de adesões que a Sosaci (Sociedade dos Observadores de Saci) vem recebendo de vários pontos do país. O Saci, a Iara, o Boitatá, o Curupira, o Mapinguari e muitos outros brasileiros legítimos estão aí para serem festejados, sem espírito comercial, como nossos legítimos representantes no mundo do imaginário popular e infantil”. E assim é.


A discussão que foi criada em torno da celebração do Dia do Saci em nada tem a ver com a xenofobia ou o desrespeito a outros povos. Momentos como o Dia dos Mortos no México, o Inti Raimi na América Andina e o Halloween nos Estados Unidos representam a essência cultural de cada um dos povos que os reverenciam. Pois a celebração dos mitos autóctones seria justamente a retomada do nosso território cultural que há tanto tempo vem sendo invadido e colonizado. Respeitar e dialogar com as demais culturas é rico e saudável, mas o preço disso não pode ser a destruição das nossas memórias ancestrais. 
O campo da cultura é sempre um espaço muito mal cuidado pelos movimentos sociais e sindicatos de luta. Faz-se muita política, discute-se o capitalismo, mas muito pouco se discute o pilar de todas as mudanças que é o imaginário popular, a cultura. Desde aí se pode avançar com muito mais eficácia no processo de transformação da sociedade. Se desde bem pequenas as crianças tomarem contato com a beleza que vive no seu próprio espaço de vivência, muito mais fácil será trabalhar conceitos como soberania, liberdade, pensamento crítico, transformação.

A proposta que toma corpo sobre a instituição do Dia Nacional do Saci não é pueril, muito menos folclórica. É uma resposta inteligente e criativa a um longo processo de colonização mental que impera no nosso país desde a invasão européia. Destruíram muitas culturas originárias, impuseram determinadas crenças e hoje, buscam homogeneizar a cultura. Mas, por todos os cantos do Brasil se levantam os amantes do saci, do Curupira, do Boitatá, de Iara, Mãe d´água, Boto cor-de-rosa. Todos juntos prometem vencer o culto à abóbora, fazendo uma grande festa com carne seca, mandioca e viola. Porque nossa cultura autóctone tem beleza demais para se render aos interesses do capital.

Mas, para isso, é preciso que cada brasileiro faça sua parte. Pais e mães precisam retomar as velhas histórias, escolas devem ensinar os antigos mitos e toda a gente deve celebrar esse dia 31 de outubro como o dia do Saci e de todos os seus amigos. Para participar do abaixo assinado, entre na página da Sosaci e dê o clic: http://www.sosaci.org/abaixo-assinado.htm.

Enquanto isso preste muita atenção quando passar por um bambuzal. Ao ouvir os barulhinhos de “cloc, cloc, cloc”, atente-se. São os sacis nascendo. E estão vindo aos milhares, pulando em uma perna só, fazendo bagunça na proposta de destruição cultural que o império tenta nos impor. O Saci vive e está bem aí, do seu lado. Acredite! 

Publicado originalmente na revista Novo Olhar.

quinta-feira, 18 de outubro de 2012

domingo, 14 de outubro de 2012

A cidade...




A cidade é sempre um corpo em mutação. Misturam-se o modernoso, o contemporâneo, as tendências vanguardistas. Mas, sempre, indefectivelmente, apareço o antigo, o que perdura, o que adormece nas memórias e, vez ou outra, assoma em cor e beleza. No centro de Florianópolis pode-se ver esse antigo, tentando respirar por entre os grandes prédios, colorindo-se, para ficar mais perto dos dias atuais. Essa cidade que tanto amo, me surpreende... a cada passo!

sábado, 13 de outubro de 2012

Relógios


Sério. Gostaria muito de saber quem foi o gênio que teve a ideia de trocar os relógios que havia no calçadão e em frente à igreja. O troço é uma tremenda agressão à paisagem. Não tem absolutamente nada a ver com o cenário, com a rua, com o jeito de Florianópolis. Será que não dava para dizer a esses gestores públicos, arquitetos, sei lá quem, que modernidade não precisa significar coisas metalizadas e gigantes? Que é possível enfeitar a cidade com elementos que se encaixem na paisagem como se ali não estivessem? Fala sério! Aqueles relógios são o ó do borogodó! Se eu fosse esse povo da prefeitura, tratava logo de tirar aquilo e colocar alguma coisa mais a fim com o astral do centro.

quarta-feira, 10 de outubro de 2012

Entendendo a marca da bolsa




Entrei no ônibus correndo, atabalhoadamente, como sempre. Carregada com livros, casaco e equipamentos de trabalho. Era fim de tarde e o terminal urbano vazava gente pelo ladrão. A fila do Rio Tavares já tinha parado, esperando o outro horário, mas eu estava atrasada e o jeito era ir em pé. Esperar pelo próximo ônibus equivaleria perder uns 20 minutos ou mais, o que me faria também perder a integração e toda aquela ladainha de quem sofre o transporte coletivo desintegrado de Florianópolis. 

Assim, entrei e fui me esgueirando em meio ao povo tentando achar algum lugar que me permitisse segurar no ferrinho do banco porque, como sou pequena, não alcanço o ferro de cima. Tragédia cotidiana. Foi então que percebi uma coisa que me deixou muito intrigada. Na medida em que eu ia avançando pelo corredor ia esbarrando nas pessoas, é claro. Mas o curioso é que as mulheres pareciam estar todas com a mesma bolsa. Era o mesmo modelo, o que variava era a tonalidade. Algumas a tinham na cor bege e outras, marrom. Imediatamente pensei que aquelas bolsas deveriam estar bombando na novela, porque às vezes acontece de um determinado personagem ditar moda. 

O ônibus saiu rumo ao Rio Tavares e fiquei matutando, tentando encontrar algum globo ocular simpático para entabular uma conversa. Lá pela rabeira do ônibus encontrei uma garota que eu conhecia. Observei que ela também estava com uma bolsa igual. Então, observei: - “Gozado, parece que tá todo mundo usando o mesmo modelo de bolsa, né?”. Ela me olhou e riu gostosamente: “É a Louis Vouitton, Elaine. Uma marca famosa, é super moda agora e a gente encontra, baratinha, no mercado público”. Então mostrou a sua, a qual tinha estampada por todo o corpo a tal da marca, um L e um V entrelaçados. Eu então perguntei: “E quanto é que o pessoal ganha para andar com essa bolsa?” E ela, com cara de espanto: “Nada, a gente compra, é moda”. 

Eu fiquei ruminando a informação. As bolsas são como outdoors ambulantes, estampando uma marca, propagandeando. As pessoas deveriam ganhar por isso, afinal, é um anúncio. A menos que fossem apaixonadas pela marca, ou a marca significasse alguma coisa muito legal, como uma campanha para salvar animais, uma mensagem política ou coisa assim. Mas não, fui informada de que o legal é mesmo ostentar a marca, para que os demais vejam o quanto a pessoa é descolada. Entendi. “Essa tua bolsa, por exemplo, é ridícula...”, ela me disse, entre risos. Eu ri também, entendendo que ela era torcedora do Avaí e não que desfizesse da minha “verdinha”. É que a minha bolsa velha de guerra estampa o símbolo do meu time do coração, deliciosa paixão: o Figueirense. De fato, admiti, é brega. Mas não seria tão brega quanto ostentar uma marca só porque ela é marca de descolados?  Ficamos nesse papo, e o povo todo em volta ouvindo. Ela perguntou: “E tu, não tinha que cobrar por levar o brasão do time?” Mas time é amor, respondi.  “Pois é, e Louis Vouitton para nós é amor também”. Putz, me pegou. Como rebater isso? Não dá.  

Assim, de ponto em ponto, lá se foram as moças com suas bolsas em série. E eu, saí serelepe, com minha mochilinha verde, de pelúcia, com o símbolo do furacão do estreito. Cada uma carregava sua própria significância, o seu amor... E vamos combinar, como dizer qual amor é melhor? Não tem como!