terça-feira, 25 de janeiro de 2022

O pai


Quando eu pensava que o seu Tavares não faria mais gracinhas ele mais uma vez me surpreendeu. Hoje, depois do banho da manhã ele veio pra cozinha para tomar café. Eu o trouxe até a mesa e mostrei o café já pronto. Junto, um pratinho com pãezinhos e ovo, preparados pelo Renato. Tirei o guardanapo e mostrei.

- Olha os pãezinhos, pai.

E ele erguendo os olhos para o céu e juntando as duas mãos em prece, largou um aliviado e suspirado: 

- Graaaaaaaaças a deus! 

Era como se estivesse mesmo faminto e não esperasse tamanha graça...

Esse seu Tavares... me sai com cada uma!


sexta-feira, 14 de janeiro de 2022

A batalha pela cidade


Foto: Rubens Lopes

A luta por uma cidade na qual todos possam ter o direito de morar e fruir é diária e sistemática. No caso de Florianópolis vivemos acossados pelos interesses imobiliários que, ao se apropriarem dos espaços mais próximos das praias, expulsam as famílias e constroem monstros de concreto para especulação. "Venha viver no paraíso", dizem. Mas, ainda que consigam construir moradias bonitas e com lindas vistas para o mar, não conseguem dar conta da mobilidade, do saneamento e muito menos entregar uma praia limpa. O paraíso é uma imagem borrada. Quem frequenta a praia no verão sabe muito bem: multidões, lixo, esgoto sangrando para o mar, doenças de pele.

O prefeito Gean e seus grupos de apoio, não satisfeitos com a destruição já provocada pelas sucessivas mudanças de zoneamento e por um Plano Diretor aprovado às pressas, sem levar em conta o desejo das gentes nas comunidades, quer aprofundar ainda mais o adensamento populacional, principalmente na ilha. Daí a sua pressa em aprovar, de novo, um plano alienígena, totalmente descolado daquilo que sonham e querem os moradores dos bairros. No fundo, a proposta base é justamente garantir a construção de prédios. Prédios altos, com muitos apartamentos para vender e, com certeza, de alto padrão.

No caso do Campeche, a luta popular organizada conseguiu ao longo dos anos garantir a continuidade de um bairro menos vertical e ainda que os tais condomínios tenham infestado a comunidade, pelo menos não são espigões. Mas, ainda assim tem sido quase impossível entrar e sair do bairro na temporada de verão. Há congestionamento da Pequeno Príncipe que dura horas e há também congestionamento na rua do Gramal, coisas impensáveis até ontem. Isso significa que a comunidade fica completamente impossibilitada de se mover já que há apenas duas saídas para o centro da cidade: ou pelo Rio Tavares ou dando uma baita volta pela Lagoa. Não bastasse isso, esses caminhos também ficam engarrafados durante o verão e até mesmo fora dele. É o terror. Quem tem de sair para trabalhar sabe bem o inferno que é ficar 40 ou 50 minutos só no trecho entre o Hiperbom e o trevo. 

Mas, a cidade pensada pelo Gean e sua turma não é a cidade dos trabalhadores. Ela é pensada para quem pode ficar o verão inteiro em casa, curtindo a praia, o sol, as baladas. Os trabalhadores que lutem, que saiam de casa mais cedo, estão aí pra isso mesmo: servir   ao capital. 

A nova proposta de mudança de Plano Diretor implica em mais prédios, mais andares, menos mobilidade, menos saneamento, menos água, mais lixo, tudo isso numa ilha. E o prefeito ainda queria brincar de realizar audiência pública para respaldar a proposta. Levou uma cacetada do judiciário que impediu as audiências propostas para serem feitas todas num único dia e no mesmo horário, impedindo assim a mobilização das comunidades. 

Agora o Gean terá de realizar as audiências em dias distintos e discutir com cada uma das regiões as mudanças. Claro, isso não significa vitória das comunidades porque pode acontecer como já aconteceu: os caras do IPUF vêm, apresentam o plano, fingem ouvir e vão embora sem incorporar nada do que foi discutido. Depois, os vereadores, a maioria comprometida com o projeto de Gean e dos empreiteiros, votam, aprovam e pronto. Lá se vai pelo ralo mais uma longa batalha das comunidades. 

Ainda assim isso não significa que devamos ficar de braços cruzados. A luta é necessária e a empreendemos. Depois de muito vai-e-vem e ação firme das entidades comunitárias as audiências foram suspensas. Isso dá um fôlego para que se possa informar a população sobre os absurdos que estão planejados. Não garante vitória, é certo, mas pode barrar alguma coisa. Essa queda de braço sobre o modelo de cidade é um processo sem fim. 

Faço parte do grupo que quer uma cidade aprazível, na qual se possa morar com dignidade, trabalhar e desfrutar das belezas. Não quero que Florianópolis se transforme numa "Las Vegas" tupiniquim, onde apenas os ricos desfrutam. 

É fato que a maioria dos moradores votou pela segunda vez em Gean Loureiro, e sabendo muito bem qual era o seu projeto. Muitos sonham com essa cidade de luzes, feita para ricos e carros, acreditando que aí terão oportunidades. É uma ilusão. 

Nosso papel é seguir informando e lutando. Que venham as audiências públicas e que a gente possa mostrar o que se esconde por trás das propostas mirabolantes e os discursos adocicados dos jornalista de boca-alugada da mídia comercial local. 

A cidade é o cenário da luta de classes no qual mais temos chances de intervir. Por isso não dá pra claudicar. Agora que vencemos essa etapa, há que preparar o ataque.


terça-feira, 28 de dezembro de 2021

Do que fica na memória

 


No Alzheimer a pessoa perde a memória de fatos recentes e, depois, gradativamente, do passado. Mas, ao que parece, algumas coisas ficam, como lampejos da vida vivida. O pai há muito tempo não me reconhece como filha. Ele me tem como referência, mas é porque estou sempre presente desde que ele acorda até quando dorme, ou mesmo quando desperta de noite. Ele se vira e estou ali. Ele sabe que eu sou a pessoa que ele vai encontrar o tempo todo. Mas, se eu falo com ele e chamo de pai, ele ri.

- Pai, pai, não sou teu pai.

Por outro lado, o nome ele não esquece. Se eu quero chamar sua atenção basta eu dizer: “Seu Tavares!” e ele já se apruma. Outra palavra que faz o olho dele brilhar é Uruguaiana, sua cidade do coração. Vez em quando se lembra de Quaraí, a cidade natal, mas é Uruguaiana que faz o rosto se abrir em alegria. Eu até já fiz uma lista de músicas gaúchas que trazem o nome Uruguaiana, ele escuta e diz: ó, ó. Fica como um menino.

Por enquanto também não se esqueceu de fumar. Quando a gente oferece um cigarrinho, ele escancara o riso e diz “ah, mas que coisa querida”, e fica sentadinho na sua poltrona, rindo com o Rolando Boldrin, sorvendo a fumacinha.

Seu Tavares é um fofo...



terça-feira, 21 de dezembro de 2021

Adeus 2021, sem saudade


O ano que passou, no Brasil, foi um tempo de terror. E não foi só por conta do coronavírus, visto que o andamento da vacinação, ainda que lento, foi baixando os casos e as mortes. Apesar de todo o trabalho que o governo federal fez para impedir a imunização massiva da população, mesmo entre os apoiadores do governo o chamado da vida foi mais forte e as pessoas foram buscando a vacina. Isso deu um respiro para a nação uma vez que o combate ao novo vírus só pode ser feito com a imunização coletiva da maioria da população. Ainda assim, nada está bem. As mortes continuam – passamos dos 600 mil óbitos  - e o negacionismo também, a tal ponto de o presidente da nação insistir em criticar a imunização em crianças, tão logo a Anvisa liberou, mesmo que os dados apontem que grande parte dos internados nas UTIs são jovens não vacinados. E, agora, no final do ano, hackers invadiram o sítio do Ministério da Saúde e apagaram dados sobre a vacinação e sobre a saúde dos brasileiros. Um “mistério” do realismo mágico. A quem interessaria destruir as informações sobre esse tema? Um pirulito para quem adivinhar.

A maior taxa de terror veio mesmo por parte do governo federal, como tem sido recorrente desde 2019, quando assumiu o país esse agente da morte. Cumprindo suas promessas de campanha Jair Bolsonaro deu sequência ao processo de destruição do país em todas as áreas. Não houve engano, tudo já estava claro desde o começo. Mas, a responsabilidade dessa destruição não é unicamente do presidente. O Congresso Nacional, com raríssimas exceções dentro dele, tem respaldado cada ação e cada proposta do governo federal. Destruíram direitos dos trabalhadores e abriram os cofres para o desmando e a corrupção. Não bastasse isso ainda aprovaram um tal de “orçamento secreto”, que não dá transparência sobre recursos federais entregues aos deputados. Uma vergonha nacional que é noticiada como se nada tivesse de absurdo.

Em 2021 seguiu forte e sem parada o ataque aos povos originários, com o aumento sistemático da violência e do roubo das terras. A proposta do governo é acabar com eles. Incêndios e desmatamentos arrasando territórios inteiros, nossos biomas mais importantes também seguiram sem freios. Igualmente recrudesceram os ataques da polícia militar, em praticamente todos os estados, contra a população negra e pobre. O extermínio da juventude virou política de estado, a ponto de acontecer um massacre com mais de 25 mortos em Minas Gerais, sem que o tema rendesse qualquer debate nacional. Até hoje não se sabe o que de fato aconteceu na cidade mineira de Varginha. Nada além da acusação de “suspeitos” e “bandidos”. Provas de bandidagem? Nenhuma.

O governo também continuou com o processo de desmonte na educação brasileira, retirando recursos de todos os níveis. A pandemia e a falta de uma política de acesso fizeram com que aumentasse o número de desistências, a taxa de analfabetismo encostou nos 7% e o analfabetismo funcional chega a quase 30% da população. Não bastasse isso, o negacionismo diante do coronavírus fez com que vários estados obrigassem os professores ao retorno presencial, gerando sofrimento mental e mais doença na categoria. O governo federal também estraçalhou com o Enem – porta de entrada para a universidade dos empobrecidos - a tal ponto de fazer com que a juventude da periferia desistisse dele, bem como do ensino superior, com redução de inscrição no vestibular. E, agora, quer garantir mais vantagens para os ricos no sistema do Prouni (programa de bolsas para garantir permanência) afastando ainda mais os empobrecidos da universidade, já que disputarão as já poucas bolsas com quem não precisa delas. 

No campo da saúde assistimos aparvalhados a CPI da Covid no Congresso Nacional que levantou não apenas os crimes cometidos por agentes do governo, bem como pelo próprio presidente da nação, além dos horrores que acontecem dentro dos hospitais privados geridos por planos de saúde, que simplesmente mataram os velhos com medicamentos inúteis para evitar gastos. Meses e meses de apresentação de provas e testemunhos sobre esses desmandos que, ao fim, deram em nada. Um ano inteiro sangrando sem que nem a Justiça nem os parlamentares fizessem qualquer coisa para punir os criminosos. Muito provavelmente tudo isso acabará em pizza ou arrastará processo por anos, que se findarão por inanição. O drama de milhões nas mãos dos bandidos tampouco conseguiu produzir qualquer comoção popular, além da sensação momentânea de estupor.

Vivemos um crescendo do preço da gasolina – com mais de 50% de aumento no ano - causando a alta dos preços de todas as mercadorias, inclusive as da cesta básica. A fome, que tinha sido banida do nosso país voltou com força e não poderia ser diferente, pois todo o apoio governamental está voltado para os fazendeiros, mineradores e multinacionais. A indústria brasileira agoniza, bem como os pequenos produtores e pequenos comerciantes. E as estrelas da mídia ensinando como economizar gás, cozinhando com lenha, ou como trocar a carne por sopa de ossos. Uma perversidade sem tamanho.

O desemprego – conforme dados do IBGE - está na casa de 14 milhões de brasileiros e mais de seis milhões sequer buscam ocupação, pois já não tem esperança, o que dá uma soma de 20 milhões de seres sem ter como ganhar a vida nesse país. Mas, se formos atrás de outros dados, como os do “Mapa da exploração dos trabalhadores no Brasil”, do Ilaese, que usa outra metodologia, o número de desempregados passa dos 50 milhões. Nesse contexto, aumenta também a violência e o desespero. 

A classe média baixa que ainda tinha a chance de juntar um dinheirinho, apostando na poupança, historicamente o único investimento possível, está à deriva também. A caderneta, que valorizava em parco 1% agora só vai render 0,5%, ou seja, absolutamente nada. A inflação de 10% ao ano come tudo o que puder render. Ou seja, só perdas. A classe média, protagonista da ascensão dessa gente que hoje governa o país, pouco se manifesta e quando o faz é para jogar a culpa nos governadores ou nos prefeitos, eximindo o governo federal de qualquer responsabilidade sobre o caos social e econômico. Pagam sete reais o litro de gasolina, quietinhos, os mesmos que gritavam de ódio quando chegou a 2,70 no governo do PT.

A mídia comercial corporativa não divulga, mas o Brasil também vive um  de seus maiores fluxos migratórios. Só no ano passado, o número de brasileiros que decidiu sair do país em busca de vida melhor subiu 122%, passando de um milhão e 800 mil pessoas para quatro milhões e 215 mil. Ainda não há números de 2021, mas certamente deve haver mais gente saindo. Uma pesquisa da Datafolha mostrou que pelo menos 70 milhões de brasileiros dariam o fora daqui se pudessem. Gente jovem e qualificada é o perfil de quem quer migrar. O destino de quase 50% dos migrantes, como em toda a América Latina, são os Estados Unidos, mas há muita procura também por Portugal, por conta da língua. Fossem esses números na Venezuela haveria uma série de matérias emocionantes sobre os migrantes, mas, como o responsável por essa debandada é o queridinho da mídia, não há alarde sobre isso. Só notas de roda pé.

Os dramas vividos pelos brasileiros nesse governo atual, quando passam na TV, são apresentados como um raio isolado num céu azul. Não há a explicitação das razões da fome, da miséria, da violência crescente, dos feminicídios – que aumentaram estrondosamente com a ascensão dos adoradores de armas. E é essa gente que agora quer transformar os invasores de terras indígenas  - garimpeiros ilegais e os grandes fazendeiros - em “comunidades tradicionais”, com o apoio do Congresso Nacional. É uma atrocidade atrás da outra e tudo completamente naturalizado, como se fosse a coisa mais normal do mundo.

No campo da política eleitoral não há novidades. Com o arquivamento das denúncias contra o ex-presidente Lula é ele quem aparece como o candidato preferencial para bater Bolsonaro nas eleições do ano que vem. Mas, isso não significa que a perseguição terminou. Muita coisa pode acontecer até o pleito. A investigação sobre o candidato Ciro Gomes, feita com todo o aparato da Polícia Federal e a espetacularização típica da Lava-Jato agora no mês de dezembro é uma mostra clara de que o estado policial seguirá atuando contra os desafetos do presidente. Com o judiciário dominado, as denúncias de crimes cometidos pelos filhos do presidente e por ele mesmo, caem no vazio, e no campo da justiça nada pode se esperar. Toda essa batalha, infelizmente não tem quase nada a ver com a necessária luta de classes, é um combate interno à classe dominante, visto que nem Ciro nem Lula têm qualquer projeto de transformação radical. Os dois caminham na estrada do liberalismo e a socialdemocracia é o limite. Apesar de todo esse terror, a esquerda brasileira está derrotada, sem projeto para a nação e sem inserção na maioria da população. Os movimentos sociais mais organizados, como os Sem-Teto e os Sem-Terra resistem, mas tampouco conseguem ultrapassar o particularismo de suas bandeiras. 

Vamos nos aproximando do fim do ano praticamente sem qualquer brecha para a esperança de mudança em curto prazo. Temos a nossa frente um país destroçado e uma fatia muito grande de gente alienada, enquanto outra espera que as eleições venham mudar o quadro acreditando que nos bastará um “mais” alguma coisa do tipo: mais democracia, mais justiça, mais educação, mais negros na política, mais mulheres em posição de mando, mais isso, mais aquilo. As questões centrais dos problemas do país, tais como a propriedade, a reforma agrária, o desmandos dos bancos, a questão energética, Petrobras, a justiça, o sistema penal, a dívida externa, não aparecem nos debates, como se a vida fosse se resolver apenas com a inclusão ritualística das chamadas minorias. Tudo acomodadinho dentro dos limites do capital. Falta pegada revolucionária, falta demais.

É certo que ainda há quem observe os tempos criticamente e lute, ainda que sejam poucos. Mas, como sempre foi na história, basta que esse pequeno grupo se mantenha em batalha para que seja possível um amanhã de luz. Ainda assim, será preciso muito trabalho para reconstruir uma estrada pela esquerda.

O próximo ano vem aí e certamente ainda teremos muitos processos de destruição e violência contra o povo brasileiro que se aprofundarão vertiginosamente conforme as eleições forem chegando. Não esperemos uma “festa democrática”. Não.  A peleja será encarniçada e o jogo será o mais sujo e violento possível. Tampouco se vislumbram propostas de real transformação. Por isso há que se manter alerta e em luta. Ainda que não haja ação por parte das históricas centrais sindicais, a realidade material da vida haverá de cobrar ação das gentes. 

Não há paz para a classe trabalhadora. Mas como diria o utópico Dom Quixote, contra os gigantes, vamos travar uma longa e feroz batalha. Nós o faremos. 



quinta-feira, 9 de dezembro de 2021

Te recordo, mãe



A mãe não era bolinho. Apesar de odiar levantar cedo, quando éramos crianças ela não se furtava a ser a primeira a saltar da cama para nos fazer o café. E não era coisa pouca não. Todas as manhãs ela nos obrigava a comer um bife com ovo, além de café com pão e polenta, o que causava sempre muita reclamação entre nós. Poxa vida, era muita coisa. Mas, por fim, mostrava-se sábia, porque com tanta comida no bucho, quando dava a hora do recreio ainda não tínhamos fome, então não se gastava com lanche. Na família temos inúmeras histórias hilárias daquelas manhãs. 

A mãe também gostava de música e suas preferências eram o mexicano Miguel Aceves Mejia, e os brasileiros Agnaldo Timóteo e Ângela Maria. No cinema, adorava o Cantinflas. Nunca soube o porquê dessa paixão pelos mexicanos, mas herdei isso dela e ainda hoje nas minhas listas de música, lá está o Miguel Mejia. Ela também adorava varar as noites vendo filmes na televisão e era apaixonada por jogos de basquete. Vai entender. Era minha parceira segura para ver filmes de vampiro. Nascida e criada nas planuras do Japejú, em Uruguaiana, ela se casou com 22 anos, sem amar o meu pai. Amava mesmo era um garoto que conhecera num trem quando tinha 15 anos. Mas, por conta de obscuras tramas protagonizadas por minha vó, esse amor não vingou. As cartas do jovem eram destruídas quando chegavam. 

E, pensando ter sido esquecida pelo garoto, ela aceitou o destino imposto pela mãe. Carregou esse amor dentro dela por toda a vida, e fez dos filhos sua razão de viver. Quando a vida exigiu, não se achicou e lutou como uma leoa para defender a família. Era nosso pilar principal. Nosso sul. A tristeza lhe consumiu e o fato de ter de sair do Rio Grande abriu feridas profundas. Não por acaso teve tuberculose, a doença da tristeza, e seu pulmão foi minguando dia após dia longe do pago que tanto amava. Tinha mania de limpeza e mesmo quando proibida pelos médicos de qualquer esforço, vez em quando era pega em cima de uma mesa, limpando os lustres ou janelas. 

Também fazia questão de plantar as próprias verduras, mantendo uma horta por toda a vida. Morreu num começo de tarde de fevereiro, deixando um bolo assado no forno. Ela me ensinou a costurar, a cozinhar, a amar as plantas, fazer crochê, tricô, pintar tecido, fazer pudim. Ela tinha orgulho de mim, por eu ter desafiado o destino e ter ido atrás do meu sonho, coisa que ela não fez. Ela dizia que eu tinha o mesmo dentinho torto do seu amado Paulo. Ela me fazia rir e sua voz docinha no telefone, depois que sai de casa, me salvou a vida muitas vezes. 

Num dia como hoje, em 1932, ela nasceu e trilhou seu caminho com simplicidade, ternura, melancolia e força. Eu a reverencio ouvindo suas músicas preferidas e agradecendo, muito e muito. Tenho certeza de que ela está sorrindo, lá na casa da beleza. Feliz aniversário, doce e querida Helena. Te amo e sinto tua falta, embora nas noites de tormento escute sempre a sua voz dizendo: tô aqui, filha.



quinta-feira, 2 de dezembro de 2021

Gildo, o renascido



Era uma manhã de domingo, em Passo Fundo. Um encontro de ex-colegas da TV Umbú, uma turma que marcou época na cidade, na década de 1980, tanto na publicidade quanto no jornalismo. Era uma manhã de festa, mas também de tristeza, porque poucos dias antes tínhamos recebido a notícia de que um de nossos mais queridos companheiros havia morrido. Naquela manhã em meio aos risos e a alegria do reencontro, encontramos um momento para, de mãos dadas, rezar e chorar pelo nosso amigo morto. Depois, abrimos os trabalhos com a mais gelada, porque essa era também uma parceira do amigo que pranteávamos. 

O morto era o Gildo Lima, moleque magricela e risonho, que fizera parte da nossa vida de maneira indelével. Um Saci Pererê de duas pernas, uma explosão de alegria, um dançarino inigualável, um parceiro de noitadas e de segredos. Cada um de nós tinha uma boa história com o Gildo. No que me dizia respeito eu perdia um irmão, porque naqueles tempos em Passo Fundo construímos uma amizade profunda e imorrível. Com ele, Bozó, Kapa e Gilmar, formávamos um quinteto inseparável no dia a dia da TV. Depois, quando a mão descia o cartão-ponto já no começo da noite, partia o quarteto – sem o Gilmar, que não era da farra – para a noite passofundense. O ritual era diário. Trabalhávamos 12, 15 horas, e de noite saímos para comer X-burger . Depois, íamos beber no Bar do Osvaldir. Lá, a dupla Osvaldir e Magrão, oferecia suas canções em apresentações ao vivo. E nós emborcávamos todas, cantando as maravilhas do nosso Rio Grande do Sul. Quando lá pela madrugada o bar fechava, a gente se mandava para a boate Chaplin, onde tomávamos conta da pista dançando até quase morrer. Nunca pude saber como a gente conseguia, na manhã seguinte, estar serelepes e renovados para mais um dia de trabalho. 

Nos finais de semana, como se não fora pouco, a gente fazia parte do grupo que ia jogar futebol nos bairros da cidade ou em cidades do interior, próximas a Passo Fundo. De novo, a farra e a bebedeira. Eram os anos 80, vida louca total.

Assim que a notícia da morte do nosso amado simplesmente nos derrubou. 

Mas, pouco tempo depois surge a notícia: “o Gildo não morreu, ele tá vivo”. Bah, loucura total. Partiu todo mundo a procurar pelo magrinho, saber onde ele estava, que papo fora aquele de morte e tal... Não demorou muito e finalmente encontramos o Gildo, lindo e vivinho da silva muy campante em Ponte Serrada, Santa Canarina. O negro-gato, nosso saci Pererê, moleque de sete vidas. Vivaço. Foi uma explosão de felicidade.

Agora, há menos de um mês, ele e o Menguetti decidiram criar um grupo no uatizapi só com a velha turma da Umbú. E foi como se tivéssemos voltado aos anos 80 numa surpreendente máquina do tempo. Pois nosso ex-morto-agora-vivo é o dínamo que mantém o ritmo alucinante do grupo, com 800, 900 mensagens por dia, muitas vezes avançando a madrugada, tal como fazia nas noites calientes de Passo Fundo. Segue moleque, segue magrinho, segue cheio de risos e encantamentos. Nosso menino-feiticeiro. Vivo, para nossa alegria. 

Te amo, meu irmãozinho... E agradeço aos deuses por termos compartilhado caminhos.


O banheiro


Das lembranças mais impactantes que eu tenho da infância, uma é a do banheiro da casa da minha avó paterna, em Uruguaiana. Era impecável, tão absolutamente limpo que, creio, seria até possível comer na banheira. Sempre que eu entrava para tomar banho, ficava por minutos olhando cada parte, espantada com tanta limpeza. E mesmo tendo o tapetinho no chão eu ainda colocava minhas roupas usadas para pisar em cima, com medo de sujar. Saia dali visivelmente incomodada por ter quebrado aquele aspecto clínico. Lembro como se fora hoje: não era um simples banheiro, era um quarto-de-banho, enorme, com azulejos rosados. Tinha uma imensa banheira, pia grande, um bidê e o vaso. Era possível dançar ali. Como podia ser tão impecável?

Claro, a resposta é uma só: minha avó tinha uma empregada, uma mulher que cuidava da limpeza do apartamento e também cozinhava. Minha tia era bem severa, e todas as manhãs mandava a mulher limpar o banheiro. Meu deus, como aquilo me incomodava. Porque não era um simples limpar, ela esfregava com escova todo o azulejo, a banheira, o vaso, a pia, o bidê. Todos os dias, todos os santos dias. Eu achava aquilo um verdadeiro absurdo. Seria mesmo necessário? Um trabalhão da porra. A lembrança daquela mulher e sua faina diária sempre me fez respeitar sobremaneira a profissão de empregada doméstica ou faxineira. Que troço danado de ruim de fazer.

Por fim eu cresci e, claro, vim a ter meu próprio banheiro. Obviamente que nunca fiz o que fazia a Dona Maria lá da vó. Por não ter muito tempo, por viver na correria, enfim, limpeza só aos finais de semana. Mas, como era de esperar comecei a perceber que banheiros sujam muito mesmo. Três dias sem limpar e lá já vem o mofo no azulejo. Que maçada. Por que raios temos que ter uma coisa assim? A limpeza deveria fazer o favor de durar pelo menos uns 15 dias. Trabalho enfadonho, chato, estraga-mãos. Claro que na minha juventude o banheiro vivia sujo, não digo suuuuuuujo, mas sujinho. Afinal, eu nunca tive uma Dona Maria e havia outras prioridades, como viver, por exemplo. 

Hoje, já passando dos 60, ainda me impressiono grandemente quando vou a uma casa e vejo o banheiro impecável. Que tipo de gente é essa? Provavelmente tem empregada, digo dessas que vêm todo dia, porque não é possível. E se a pessoa não tem quem lhe limpe o banheiro, mas ainda assim o mantém impecável, eu desconfio. Não pode ser normal. Ou é feiticeira ou vem de uma galáxia distante. Que gente estranha... 

Por isso que o melhor banheiro que já tive na vida foi o de uma casa na qual morei em Caxias do Sul. Nem a parede, nem o chão tinham azulejo, era tudo de cimento rootzeira, e o restante era feito de tábua sem pintura. O chão, mesmo, era incrível, porque eu não precisava de pedra pome para lixar o pé. Era só passar o calcanhar no cimento enquanto banhava e pronto, estava lisinho. Aquilo sim é que era vida...