sexta-feira, 19 de setembro de 2014

Uma conversa com Mauro Iasi

Entrevista com o candidato à presidência da República pelo PCB, Mauro Iasi.


 

Paradoxo na UFSC: trabalhador que trabalha pode ter ponto cortado
















Assembleia do dia 17 manteve a greve

A Universidade Federal de Santa Catarina vive um momento inédito. Pela primeira vez na história dos trabalhadores, eles estão sendo ameaçados de punição por trabalhar e ampliar o atendimento aos usuários. Para entender todo esse enredo, é preciso antes falar sobre como funciona uma universidade. Mais do que uma "escola" onde se ensina uma profissão em nível superior, a universidade é um espaço onde se articulam esse ensino, mais a pesquisa e a extensão. É como um órgão vivo, pulsando todas as horas do dia. Para comprovar isso, basta circular pelo campos a qualquer hora do dia e mesmo da noite. Sempre tem alguém trabalhando e até nas madrugadas pode-se vislumbrar uma ou outra luzinha em algum laboratório. Por todos os cantos está em ebulição a criação do saber.

Esse processo de trabalho - na sua maioria imaterial - é vivenciado pelos docentes, os técnico-administrativos em educação e os estudantes. Em maior ou menor medida cada uma dessas categorias atua nos três campos, de ensino, pesquisa e extensão. Isso mostra que a universidade não é um espaço que pode funcionar como uma fábrica, em horário comercial e muito menos um lugar no qual as tarefas estão claramente demarcadas. Aqui, a "produção" desse trabalho imaterial nunca para e é possível ver um estudante de pós dando aula, um técnico coordenando pesquisa e um professor administrando um centro. As atribuições são complexas e se misturam. A tal "divisão do trabalho" tem fronteiras muito largas.

Por conta disso desde há muito tempo os trabalhadores discutem a possibilidade de, segundo garante a lei, realizar turnos corridos de seis horas, garantindo atendimento ininterrupto nos setores de toda a instituição. Leva-se em conta toda a complexidade do trabalho realizado aqui e o fato de haver aulas nos três turnos - manhã, tarde e noite -  o que garantiria atendimento a uma parcela significativa de alunos/trabalhadores que não podem vir à universidade no período comercial. A lei é clara. Um contrato de trabalho de oito horas pode ser cumprido com turnos de quatro horas/um intervalo de duas/um turno de quatro, ou com seis horas ininterruptas. Por isso a batalha pela segunda opção. Para os trabalhadores, a organização do trabalho - melhorada com as novas tecnologias - exige um outro olhar sobre a questão da jornada de trabalho. É voz corrente que as novas tecnologias proporcionaram uma considerável diminuição de tempo na operacionalização de muitas tarefas. Hoje, os trabalhadores já tem as condições objetivas para reduzir a jornada, sem deixar de cumprir todas as tarefas  que tem sob sua responsabilidade.
Assim, unindo essas condições à necessidade de a universidade atender cada vez mais pessoas, por conta de seus cursos noturnos e à distância, a luta pelos turnos de seis horas com atendimento de 12 horas ininterruptas cresceu.

Com a eleição de uma nova administração há dois anos, garantida pelo seu perfil progressista, os trabalhadores iniciaram um debate sobre esse tema e conseguiram que a nova reitora, Roselane Neckel, aceitasse a ideia de criar um grupo para estudar a viabilidade da redução da jornada aos moldes propostos: com ampliação de atendimento, abrindo setores no horário do meio dia e à noite. O grupo trabalhou,  estudou o tema e apresentou um relatório, que, segundo um acordo realizado com a administração, deveria ser discutido em todos os Centros de Ensino da UFSC. No relatório, trabalhadores e representantes da gestão, concluíram que a UFSC estava preparada para iniciar o processo de turnos ininterruptos. Mas, a administração não cumpriu o acordo e não colocou o relatório em discussão.

Em 2014, os trabalhadores técnico-administrativos realizaram uma longa greve, com uma pauta nacional, em luta por reajuste salarial, data base e outros temas históricos dos TAEs. Essa greve iniciou no mês de março e terminou em julho, sem que houvesse avanços nas negociações nacionais. Na UFSC o movimento foi forte e envolveu os trabalhadores nas discussões. Muitos foram os atos e protestos realizados, nos quais se aproveitou para cobrar as promessas locais, como a da discussão do relatório das seis horas. A reitora fez-se surda aos apelos.

Surpreendentemente, poucos dias  depois do final da greve nacional, a administração central, sem qualquer debate com os trabalhadores sobre o tema, baixou uma portaria mudando o processo de controle de ponto. Até então, os setores organizavam-se conforme suas características específicas e o controle de frequência era o controle negativo: ou seja, caso o funcionário não comparecesse ou chegasse atrasado, a chefia anotava o fato e enviava ao setor de pessoal. Se nenhum registro fosse enviado, o setor de pessoal considerava frequência total.  Com a portaria, a reitora reinstalou a folha ponto, que deveria ser preenchida diariamente, com jornada de oito horas. A medida foi considerada uma espécie de "vingança" contra os trabalhadores por conta da movimentação da greve e também como um profundo retrocesso administrativo.

A greve de ocupação

Por conta disso, os trabalhadores resolveram discutir a portaria e depois de vários debates decidiram entrar em greve contra a forma antidemocrática com que a reitoria definiu o processo de controle de frequência. Entendiam que havia uma discussão sendo feita institucionalmente  - com o grupo que realizou o relatório - e que num espaço democrático como a universidade, o mínimo que a administração deveria fazer era ouvir a comunidade, incluídos aí os próprios trabalhadores.

Mas, a greve deflagrada - a primeira greve interna da história da UFSC - não foi como as outras, na qual os trabalhadores fechavam os setores e interrompiam o processo de trabalho. Ao contrário, eles decidiram mostrar, na prática, como seria a universidade atendendo nos três turnos, de forma ininterrupta, tal como vinham reivindicando. Foi assim que começou, no dia 5 de agosto, a greve "de ocupação", como foi chamada. Todos os trabalhadores seguiam cumprindo suas tarefas, mas fazendo os turnos de seis horas ininterruptas, conforme garante a lei. Com isso, vários setores passaram a abrir as portas ao meio dia, causando grande entusiasmo entre os estudantes que necessitam da universidade aberta .

Só que se os estudantes vibraram, a administração não. Chegou, inclusive, a não permitir a entrada de usuários no prédio onde funcionam as pró-reitorias no horário do meio-dia, mesmo com os trabalhadores lá dentro, querendo atender aos estudantes e professores.

A greve seguiu seu curso em queda de braço com a administração. A cada ação dos trabalhadores, logo vinha um novo memorando, apertando mais o cerco, mudando as regras ao sabor da disputa. A universidade virou um palco de guerra, apesar dos sucessivos pedidos de diálogo. Duas reuniões chegaram a ser realizadas, mas a comissão representante da reitoria se mantinha inflexível quando a qualquer avanço. A negação ao diálogo foi tanta que dois dias depois da última reunião conjunta, veio o memorando que orientava as chefias a descontar o salários dos trabalhadores que não assinassem o ponto. Ou seja, a administração seguiu desconhecendo a greve e o próprio trabalho dos TAEs. 

Na última assembleia, em 17 de setembro, mesmo com as ameaças de corte de ponto, os trabalhadores decidiram manter a greve. Eles entendem que a universidade não pode cortar o ponto de quem está comparecendo ao trabalho diariamente, e ainda proporcionando a ampliação do atendimento. A reitora, por outro lado, deu entrevista no jornal de maior circulação do estado, dizendo que vai cortar o salário. É a manutenção do impasse. Os TAEs encaminharam novo pedido de reunião à reitora, reivindicando o que foi prometido: debate. Eles querem que a jornada de trabalho seja discutida em toda a universidade, envolvendo professores, técnicos e estudantes. É a comunidade que deve decidir sobre o atendimento da instituição. Isso seria o exercício pleno da democracia, conforme reza a Constituição.

Mas, a administração insiste em continuar ignorando a greve - embora o chefe de gabinete tenha usado publicamente o argumento da greve para negar algumas demandas de estudantes - e segue se comunicando através de memorando e portarias, em clara resposta aos passos dos trabalhadores.

Na UFSC o clima é de muito descontentamento com a forma autoritária como as coisas estão se desenvolvendo. É a primeira vez na história da instituição que uma administração ameaça com corte de ponto, sendo que o mais inusitado é o fato de todo mundo estar trabalhando.


sábado, 13 de setembro de 2014

Mulheres




Milton Santos estava certo. Não há como escapar do espaço geográfico. Por isso que, mesmo sendo do mundo, o lugar onde nascemos segue vivendo em nós, e de uma maneira total. Sinto isso todos os dias. Nasci no Rio Grande, na barranca do rio Uruguai, fronteira com a argentina, região da pampa. Da janela de casa – qualquer casa – nossa visão é sempre a planura, o infinito. Por isso, talvez, que nosso instinto seja sempre esse, de ir mais longe, e mais longe, e mais longe. Andar sempre em frente, no rumo daquele horizonte sempre vislumbrado.

Essa sede de infinitos vejo no filme “Anahy de las misiones”, uma produção do cinema gaúcho, que mostra a fortaleza das mulheres do Rio Grande, sempre às voltas com forças aparentemente maiores do que elas, mas as quais domam com mão segura. A personagem principal, Anahy, vive em plena revolução farroupilha, nos campos de batalha, e tudo lhe acontece. Coisas que vergariam os espíritos mais duros. Ela segura no osso do peito e segue em frente. A cena final é paradigmática. Quando tudo está perdido, todas as dores foram sofridas, ela ergue o peito e anima os que sobraram: “Nada vai nos parar”, desafia, “ainda sobrevivo a muitos desavindos”. A câmera vai subindo, subindo, subindo, e o espectador vê que o grupo ao qual ela lidera com sua força abissal está indo na direção de um abismo. Metáfora maravilhosa da geografia de um forte. Sempre em frente, não importa se lá na frente há um abismo. Ela saberá vencer. Ela encontrará um caminho, porque é da sua natureza enfrentar, seja o que for. A gente sai do cinema com aquela ânima, com uma alegria desesperada, uma vontade de gritar, de júbilo, de felicidade.

Diferente mensagem passa o filme “Telma e Louise”, que também termina num abismo. A película se passa no espaço geográfico e cultural dos Estados Unidos, dentro de um contexto em que as mulheres parecem frágeis demais, oprimidas demais. No filme, a morte acidental de um homem que tentava violentar uma das personagens, as leva – amigas - para uma fuga sem fim. Elas seguem um caminho de evasão, sem enfrentar realmente, nem o fato real, da morte do homem, nem suas dores existenciais de abandono, de solidão, de medos. Ao longo da fuga, novos problemas vão surgindo, mas elas não são capazes de olhar de frente para estes monstros. Preferem fugir. No final, quando tudo está perdido, elas se encontram cercadas pela polícia na beira de um precipício. Elas se olham, dão-se as mãos e saltam no abismo, no rumo da morte.

Quanta diferença da gigantesca Anahy, a mulher missioneira da guerra farroupilha, da pampa gaudéria. Cara a cara com os monstros, todos os dias, ela os enfrenta um a um, sem concessões à auto-piedade. Uma única vez ela se permite desabar. Mas, ainda assim, é um momento só. Ela berra e se retorce no chão, um grito quase animal. Depois, se recompõe e segue, grávida de horizontes. Nada a detém, nem o abismo que se anuncia. Anahy é meu modelo de vida, Anahy é da mesma carne das minhas avós, das antepassadas charruas, cruzando o descampado, peito aberto, cabelos ao vento, sempre no rumo do infinito. Anahy é o espelho que se apresenta a nós, mulheres gaúchas, no cotidiano desta vida louca.

Nesse setembro, duas gaudérias que amo completam nova volta em torno do sol. Meu presente para elas é essa alma de Anahy. Essa coragem, essa fortaleza. “Nada vai nos parar”, eu digo. E, assim, de mãos dadas, seguiremos para os abismos. Não saltaremos para a morte como Telma e Louise, mas para a vida, esgrimindo os monstros e rasgando novos caminhos. Porque é desse barro de que somos feitas!


segunda-feira, 8 de setembro de 2014

Eleições presidenciais






 










Aprendi de política quando era bem menina. Vivia numa ditadura militar e morava na cidade do cara que tinha sido deposto pelos milicos. Na velha São Borja, fronteira com a Argentina, éramos forjados na dureza do campo, no respeito aos horizontes e na honra maragata. A política era coisa grande, projeto de país, caminho de liberdade. Desde cedo entendi que a mudança não estava na pessoa, mas no plano de voo. Não bastava ser bom, amigo ou parente. Havia que ter um projeto – coletivo - capaz de mudar a ordem das coisas. Logo, política era coisa grande, profunda, grupal, sendero de rebeldias.

Foi assim que, naqueles dias, me encantei pelo MDB. Havia ali uma proposta generosa de liberdade, de mudança, de solidariedade, de construção coletiva de outro Brasil, longe das botas, da censura, da tortura, do medo. Mas, o movimento era um grande guarda-chuva, que abrigava tendências de todo o tipo. Com o passar do tempo, e o estudo cada vez maior da história e da política, fui vendo que a alternativa para o Brasil tinha que ser mais profunda.

Então, quando no final dos anos 70 os trabalhadores começaram a aparecer como força unificada, nas grandes greves em São Paulo, meu coração se enamorou da proposta proletária. Um Brasil para os trabalhadores, descolado da elite, da oligarquia, dos que ano após ano seguiam mandando. Aquilo era bem melhor do que a frente emedebista, já eivada de conservadorismos. Foi quando surgiu o PT, a CUT e toda uma ideia de governo popular.

Nesse caminho andei até a eleição de 1989. Havia trabalho político. Projeto coletivo de mudança radical. Ação nos bairros, nas comunidades, trabalho braçal de construção do novo. Fazia-se política na vida mesmo. Então, a doença do cargo foi chegando. Eleger vereador, deputados, senadores, prefeitos, governadores. O voto ganhou centralidade. E, eleitas as criaturas, governabilidade passou a ser fundamental. Lá se foi a grande política. Tudo ficou pequeno demais.

Ainda assim, os contragolpes partidários não tiraram de mim o gosto pela política, que segue sendo coisa bonita, gostosa de viver. Traz no seu bojo a proposta da participação cotidiana, reflexão permanente, ação diária. Não se expressa unicamente no voto. É a construção coletiva da transformação. Por isso, com a política sigo caminhando, na luta comunitária e popular.

Agora, estamos aí outra vez às portas da eleição. Hora do voto, esse bastardo, quase um inútil. O que escolher? Não digo quem... Qual é o projeto? O que está em disputa de verdade? Quais são as diferenças radicais? Na disputa pela presidência, debatem-se filigranas. Os grandes temas estão fora da agenda. Os pequenos partidos de esquerda não têm tempo suficiente para discutir qualquer coisa. O grande oráculo – a TV – que chega aos lares de 97% dos brasileiros, se limita a mostrar a agenda dos candidatos, coisa absolutamente inútil. Não há debate sobre os pagamentos à dívida externa, sobre política monetária, sobre matrizes de energia, novas fronteiras agrícolas, terras indígenas, formas de organizar a vida, a invasão das mineradoras.

O jornalismo, que deveria ser a análise da vida política, não cumpre seu papel. Ao contrário. Desinforma. Deforma. Mente. Esconde. Prefere nutrir-se de factoides. Os candidatos e candidatas seguem a fórmula: eu fiz isso, farei aquilo, a mão de deus me guiará. E os grandes temas? Nadicadinada! Nada dizem os candidatos de quem os financia, e a quem terão de render contas, se eleitos.

Não vislumbro nada de novo nesse processo eleitoral. As forças com chances de ganhar o controle do Brasil se diferem em pequenos detalhes. No essencial, estão juntas. Seguirão comandando um barco dependente, no qual o abismo entre pobres e ricos segue se aprofundando. Tampouco existe algum movimento verdadeiramente forte, capaz de virar o jogo. Os partidos de esquerda, pequeninos, não conseguem entranhar-se na maioria, sem tempo na TV e sem militantes suficientes para cobrir grandes extensões do país.

Eu queria mesmo era ver em ação a grande política. O debate das ideias, as propostas generosas de mudanças reais, os planos factíveis, a verdade sobre a dívida, os transgênicos, o modelo de desenvolvimento. Mas, não é o que teremos. Nas redes sociais vicejam as denúncias de todos os tipos e a apropriação dos conteúdos é caótica. Poucos são aqueles que estão verdadeiramente dispostos a discutir as temáticas. É quase uma guerra de fundamentalistas. 


Lendo o programa dos partidos e conhecendo a prática de cada um deles no governo de cidades e estados, o que mais se vê são incoerências. A começar pelos nomes. Como entender "progressista" o Partido Progressista? Como entender socialista o PSB, aliado do agronegócio? E onde anda a "democracia" do DEM? As coisas beiram ao cinismo. Também podem ser contestadas as propostas/práticas do PT e do PC do B, que, no governo, em nome da tal "governabilidade" fazem alianças com o que há de mais atrasado no país e com as vampirescas multinacionais. Ou o próprio PV, que embora esse ano tenha um candidato interessante - Eduardo Jorge - igualmente tem se prestado a alianças muito pouco confiáveis ao longo dos anos.

Na esquerda mesmo restam o PSOL, que esse ano vem com Luciana Genro, o PSTU e PCO, há várias eleições com o mesmo candidato, Zé Maria e Rui Pimenta, e o PCB, que passou por um processo de reorganização e, esse ano, apresenta como candidato o cientista político Mauro Iasi. Nesse bloco é onde estão, com menor ou maior radicalidade, as propostas que confrontam o modelo de organização da vida já muito bem incorporado pelos demais partidos, que é ou de aceitação completa do capitalismo ou a ideia ainda mais esdrúxula que procura convencer ser possível "humanizar" ou "esverdear" o capitalismo.

Nesse sentido, no primeiro turno das eleições presidenciais, os eleitores podem optar por uma resposta política. De escolha de projeto. E aí, é preciso ter bem claro o que defende cada um dos partidos, ou frentes ou redes. Mas há que conhecer a fundo, para não servir de marionete. Votar porque sabe e não porque aquele ou aquela é mais bonitinho, ou amigo do pai, ou indicação do pastor. O voto é pessoal, uma escolha nossa. E ainda que não seja a última bolacha do pacote, nem o objetivo final da democracia, é um momento de expressão do nosso desejo.

Pessoas há, por exemplo, que não se veem representadas em nenhum dos partidos, que não reconhecem nem aceitam o sistema político tal como é. E mesmos esses exprimem sua opinião, votando nulo ou branco.

Eu gosto demais desses dias que antecedem as eleições. É um momento bom para conhecer os projetos e as propostas que estão postas para conduzir o país. Porque está tudo exposto. As propostas mesmo, aquelas que valem, estão escritas nos documentos e se expressam nas alianças. Tudo fica muito claro. Basta entrar nos sítios das campanhas e se debruçar sobre as informações. É óbvio que se a pessoa ficar limitada ao que o candidato promete no programa de TV, aí corre risco de se enganar. Todo mundo diz que vai lutar pela educação saúde e segurança. Mas há que ver as letras pequenas. Saúde de quem? Educação e segurança para quem? Quem está financiando a campanha, quem são os parceiros de palanque? Tudo isso dá a exata dimensão do que virá.

Para essa eleição, lidas todas as letrinhas pequenas, já decidi meu voto para presidente. Vou de Mauro Iasi, PCB. 

sábado, 6 de setembro de 2014

Para pensar as eleições de outubro


Texto escrito em 2013, mas ainda bem atual no que diz respeito às forças que atuam na política catarinense.

Movimentos sociais precisam avançar dos particularismos

Santa Catarina entrou para o mapa da história do mundo em 1515 quando alguns náufragos da expedição de Juan Díaz Solís passaram pelo estado em direção ao estuário do rio da Prata. Eles aportaram na então chamada ilha dos Patos, onde hoje é a ilha de Santa Catarina e foram muito bem recebidos pelos povos que ali viviam, possivelmente a gente Guarani. O fato de começar por Santa Catarina o famoso caminho do Piabeiru, que ligava os povos indígenas em rotas comerciais até o império inca, mostra que a região era bem cobiçada pelos que vinham da Europa em busca do ouro.

Durante mais de 100 anos os espanhóis ocuparam essas terras, cometendo as mais atrozes violências contra os povos originários, também em franco combate com os portugueses que buscavam garantir o controle sobre a área. Mas, foi só em 1660 que os portugueses conseguiram fundar uma colônia estável, onde hoje é São Francisco do Sul. Quinze anos mais tarde foi a vez do bandeirante Francisco Dias Velho fundar uma colônia na ilha de Santa Catarina. Logo em seguida foi a vez de Laguna.

O litoral era um espaço importante para os portugueses, mas havia o desejo de fincar raízes nas terras adentro. E foram justamente os caminhos abertos pelos tropeiros a transportar o gado do Rio Grande do Sul para São Paulo que proporcionaram esse avanço para o interior. O fato de a ilha de Santa Catarina ter sido elevada à vila em 1726 deu mais força para o povoamento do interior. Assim, os portugueses foram tomando as terras indígenas, arremetendo contra os espanhóis e ampliando o território. E foi justamente essa sede por novas terras que fez com que a coroa portuguesa recorresse à imigração. Então, o povo dos Açores encheu o litoral. No interior a base portuguesa era a cidade de Lages onde se expandiram as fazendas de gado. Esses eram, então, os principais focos de povoação do estado.

A vida correu tranquila por aqui até que estourou a Revolução Farroupilha no Rio Grande do Sul, em 1835. O movimento de libertação dos gaúchos ultrapassou a fronteira do estado e chegou a Laguna, aonde os catarinenses chegaram a proclamar a República Juliana, compartilhando o ideário dos farroupilhas. Também envolveu a cidade de Lages que igualmente aderiu a revolução. Mas, dez anos mais tarde, Santa Catarina já estava “pacificada” e recebia festivamente a visita de D.Pedro II e sua mulher. Foi só depois que nasceram Joinville (1845), Blumenau (1850) e Brusque, cidades que iriam desempenhar papel importante na história do estado por conta de suas indústrias.

Quando chegou a República, Santa Catarina era uma região tranquila, de 200 mil habitantes, cuja maioria vivia da pesca e da pequena lavoura. Por aqui os escravos eram poucos, pois não havia grandes plantações. Mesmo assim chegaram a somar mais de 18 mil almas, marcando presença no processo cultural do lugar. A imigração estrangeira, de alemães, suiços, italianos e noruegueses também chegou com força, dando nova conformação às forças produtivas.

O primeiro governador dessas terras, nomeado por Deodoro da Fonseca foi Lauro Müller, militar de carreira, adepto do positivismo, que vivia no Rio de Janeiro, embora fosse natural de Itajaí. Ele acabou deposto tão logo Deodoro saiu do poder, por pressão dos federalistas catarinenses. Assim, a exemplo da farroupilha, também a revolução federalista teve reflexos profundos em Santa Catarina, com muita instabilidade na política e com o povo alçado em armas. A “rebeldia” foi vencida pela força de Moreira César e muitos dos revolucionários foram enforcados ou fuzilados. Pouco tempo depois a vila de Desterro era denominada de Florianópolis, em homenagem ao seu carrasco, Floriano Peixoto.

Quem assume o comando do estado então é Hercílio Luz, filho da elite florianopolitana, tendo estudado na Europa. Depois dele, o Partido Republicano continuou rendendo figuras influentes como Felipe Schimidt, Vidal Ramos, Adolfo Konder e Vitor Konder. O domínio político se dividia entre o litoral e o planalto (região do latifúndio), com alguns filhos de imigrantes também aparecendo em cena.  Quando em 1930 o Rio Grande puxa outra revolução, com Getúlio Vargas, Santa Catarina se coloca contra, pela primeira vez, mas é vencida pelas tropas gaúchas e com a vitória de Getúlio em nível nacional. Assim, até 1945 o estado é governado por interventores da confiança de Getúlio. Dentre eles destaca-se Nereu Ramos (filho de Vidal Ramos) – o único que foi eleito pelo povo, de filiação liberal. 

Naqueles dias vicejavam dois partidos que dominavam a política e se intercalavam no comando. O Partido Social Democrático (PSD), de caráter liberal-conservador, apoiador do Estado Novo, e a União Democrática Nacional (UDN), formada por antigos republicanos, ultraconservadores, antinacionalistas e antigetulistas. De qualquer sorte, em Santa Catarina, os dois representavam a elite e nada tinham de progressistas. Durante o Estado Novo, de Getúlio Vargas, é criado o Partido Trabalhista Brasileiro, que acaba sendo, menos um partido de trabalhadores, e mais uma resposta das elites para a modernização do estado brasileiro, com uma aliança dos interesses burgueses e dos proprietários rurais, colocando as relações trabalhistas sob o controle do Estado. Ainda assim, em Santa Catarina, o partido não vingou.

Nos anos 50 a região do meio oeste começou a se desenvolver e passaria a ser também um ponto de disputa na política estadual, até então limitada a Lages e Florianópolis. A política volta a ser dominada pelos mesmos conservadores de sempre, agora representados pelas famílias Ramos/Bornhausen, cuja base material da riqueza estava na terra.  Nos anos 60 criam-se as universidades, a Federal em 60 e a Estadual em 65. Aí já está instalado o golpe militar e quem comanda Santa Catarina é Ivo Silveira, ainda escolhido pelo voto direto. Depois de 64 os partidos tradicionais já não existem e os militares instituem o bi-partidarismo: Arena (para onde vão os velhos udenistas) e o MDB (a oposição). E é nesse contexto que aparecem os novos governadores, Colombo Salles e Antônio Carlos Konder Reis, nomeados pela Assembleia, Jorge Borhausen (primo de Konder Reis), nomeado por um colégio eleitoral e Esperidião Amin, também nomeado pelo governo militar. Todos eles eram aliados da ditadura, pertencendo, portanto, a Arena. E também todos fazem parte da mesma corrente latifundiária/conservadora. O voto direto só volta em 1982, quando então se elege Esperidião Amin (já sob a sigla PDS), sob graves denúncias de fraude. 

É que com a abertura política, ainda no governo militar, havia mudado o universo partidário. Para fugir da identificação com a ditadura, a velha Arena se transforma em Partido Democrático Social (PDS), e o MDB deixa de ser um movimento e passar a se chamar Partido do Movimento Democrático Brasileiro. Depois das conturbadas eleições de 1982, onde uma denunciada fraude inviabilizou a eleição de Jaison Barreto, o PMDB acaba vencendo em 1986, com Pedro Ivo Campos, mudando um pouco a balança política e tirando de cena a velha elite latifundiária/conservadora que vinha governando desde o tempo da colônia. Pedro Ivo, natural de Joinville, era tenente coronel e, na juventude, militara no antigo PTB, partido de raízes trabalhistas. Pedro Ivo morre antes de terminar o mandato, assumindo Casildo Maldaner, seu vice. Mas, mesmo sendo menos conservador que os "inimigos", o PMBD não avança em praticamente nada que mexa nas estruturas cristalizadas.  Nas eleições que se seguem aparece então a "nova direita", com caras diversificadas, mais jovens, desconectadas do mundo rural, mas ainda representando a mesma velha oligarquia que comandara o estado desde sempre. Assim, é o Partido da Frente Liberal (PFL – filho do desmembramento do PDS, ex Arena, ex UDN) quem leva o governo através de Vilson Kleinübing, tendo como vice o velho Konder Reis. Com ele, os trabalhadores públicos estaduais veem acabar-se a data-base, ainda não recuperada até os dias de hoje. Logo em seguida o PMDB também ataca de novas caras e o jovem Paulo Afonso Viera logra vencer em 1995, terminando seu governo envolto no escândalo das letras. Ou seja, nada de novo na política local.

Os tempos atuais

Em 1999 Espiridião Amin volta ao governo, com todo o aparato direitista e em 2003 reassume o PMDB, desta vez com o então prefeito de Joinville, Luiz Henrique da Silveira, que fica no governo por oito anos seguidos. Essa dobradinha envolvendo um rodízio da direita – ora PFL, ora PP – e o PMDB foi constante desde o final da ditadura. Mas, o PMDB já não era mais o mesmo do tempo de Pedro Ivo, que mantinha certa raiz progressista, da tradicional ética emedebista. Com Paulo Afonso já se pode perceber todo um mergulho na corrupção e o completo descompromisso com o povo catarinense. A ação de Luiz Henrique foi ainda mais nociva, pois esse governo atuou com forte conotação neoliberal e privatizante. Com ele avançou a terceirização dos serviços no estado. Foi durante seu mandato que o governo criou, defendeu e aprovou o Código Florestal – que serviria de modelo ao nacional – um instrumento de devastação ambiental.  Ironicamente, ele também criou um Plano de Desenvolvimento para o Estado, o qual objetivava tornar Santa Catarina uma referência no desenvolvimento sustentável. Isso claramente não se sustenta quando se observa que durante seu governo, o estado foi tomado pelas empresas de plantação de pinus, outra praga de destruição permanente. 

Com ele também começa o reinado das parcerias público/privadas e as Organizações Sociais. Entidades de cuidado com o menor, presídios, hospitais, tudo passa a ser comandando pelas organizações sociais, com o Estado ficando completamente omisso diante de questões de vital importância como a saúde, a educação e a ressocialização  de menores infratores. No seu governo também é promovido um desmonte no Deter, o departamento de estradas, e as vias são entregues à empresas privadas, com a instalação de inúmeros pedágios. A famosa “descentralização” promovida no seu governo nada mais foi do que a montagem de aparelhos eleitoreiros nos cantões do Estado, sem muita alteração na vida das gentes. As tais das secretarias regionais (em número de 36) consumiam e ainda consomem do estado 700 milhões de reais por ano, só para funcionar, sem oferecer espaço de participação efetiva à população. Também é no governo de Luiz Henrique que a criminalização dos movimentos sociais assume a condição de política de governo. Toda luta ou reivindicação vira caso de polícia.

Por isso, em 2011 o retorno do velho conservadorismo oligárquico representado pelo DEM não foi novidade. O estado de Santa Catarina, historicamente, tem suas raízes fincadas nesse modo de fazer política. Raimundo Colombo, o governador eleito, vem dos campos de Lages, perpetuando o ciclo interminável de dominação da política seja pelo litoral (com Florianópolis) ou pela serra. Mas, no começo do governo, Colombo decidiu desgarrar-se do velho DEM e subiu no bonde do PSD, uma nova sigla para a mesma velha política. Com esse movimento, Colombo tentou virar o leme mais ao centro, buscando ampliar sua base de apoio. Também foi uma forma de se aproximar do governo federal, uma vez que em nível nacional o seu atual partido, PSD, tem votado nas propostas governistas. Colombo também volta a se aproximar do PP, partido que tem à frente Espiridião Amin, unindo assim mais uma parte do conservadorismo catarinense.

Em linhas gerais, o governo de Colombo em nada se diferencia do de Luiz Henrique. Sua linha é de endurecimento com as lutas trabalhistas e todo o poder aos “empreendedores”, com grandes cortes no orçamento, deixando descobertos setores estratégicos como educação, saúde e segurança. Grandes têm sido as lutas dos professores, dos trabalhadores da saúde e dos agentes de segurança. Na área da saúde a situação se vê dramática, com os hospitais perdendo seus leitos sem que nada seja feito. Colombo, que foi um crítico de Luiz Henrique durante o processo de “descentralização”, manteve as secretarias regionais que seguem servindo de cabide de empregos aos correligionários, agora do PSD. No final de novembro de 2012 e em janeiro/fevereiro de 2013, viveu a chamada "crise na segurança", quando o estado foi atacado sistematicamente pelo crime organizado desde dentro das penitenciárias. Completamente acuado, como se devesse alguma coisa, o governo demorou demais a agir, claudicou, jogou a comunidade à própria sorte, precisando os trabalhadores do transporte exigir segurança para os usuários. A crise se prolongou por quase 20 dias, e não teve um final, uma vez que as causas dos ataques  - violências, maus-tratos e torturas nos presídios estaduais - não foram levadas em conta. A solução dada pelo governo foi o uso de mais força, com o pedido de socorro às forças nacionais.


As outras forças

Nessa dobradinha de repetição da elite catarinense, ora pela direita, ora pelo centro, a esquerda nunca teve vez, sendo sempre uma força secundária no tabuleiro político. O antigo PT (quando era mais à esquerda), que tem suas raízes – não por acaso - no oeste catarinense, nunca conseguiu fazer-se uma força capaz de criar alguma turbulência no jogo político catarinense. Nascido no oeste, com as lutas camponesas, de mulheres, de agricultores sem-terra, o PT sempre foi visto pelos conservadores catarinenses como “muito radical”, representando uma ameaça à ordem. Apenas agora, com o governo Lula e a ascensão da senadora Ideli Salvatti, o partido começou a aparecer como palatável, embora não tenha conseguido nunca lograr uma organização de base estadual capaz de balançar o barco da velha classe dirigente. Pelo contrário, preferiu aliar-se aos velhos inimigos em nome do que chama de "governabilidade". Pois, ao se fazer "palatável" perdeu definitivamente sua radicalidade, e deixou de se situar no campo da esquerda, ficando mais para o centro, ora assumindo uma posição mais progressista, ora regredindo. Campanhas para governador em que lideranças do PT aparecem abraçando e apoiando Esperidião Amin mostram isso com clareza. Por conta dessas decisões estaduais e as alianças feitas em nível nacional para vencer a eleição presidencial o partido perdeu muitos de seus históricos militantes, o que enfraqueceu bastante a base popular/camponesa do partido. Embora no oeste o PT ainda mantenha uma militância aguerrida, não conseguiu criar um nome com força capaz de mobilizar o estado.

O PC do B, com suas alianças confusas como as do PT (também apoiou Amin, é uma das bases do governo petista e agora apoia Raimundo Colombo), desvincula-se das forças de esquerda. O PDT, sigla assumida por Brizola depois de ter perdido a do PTB, que deveria enveredar para o lado de seu passado histórico que, ainda sendo de cunho populista, em certo momento esteve junto das lutas populares antes do golpe, tem sido parceiro dos governos peemedebistas, sendo que pouco se pode esperar. Vale lembrar que em nível nacional também já esteve aliado até com Collor de Melo. Restam, no campo da esquerda, o PSOL e o PSTU e o PCB, que, apesar de terem boas propostas programáticas, individualmente não configuram possibilidade de lograr uma alternativa para o estado. O PSOL fez bonito na eleição em Florianópolis, mas não tem encarnação na vida de outros municípios do estado. 

No âmbito dos movimentos sociais com força para intervir na política estadual sem sombra de dúvidas o MST ocupa o primeiro lugar. Organizado em praticamente todas as regiões de Santa Catarina o movimento acompanha de perto a política, intervêm, atua em consequência. Também realiza análises periódicas da conjuntura e tem bastante clareza quanto ao que quer para o estado, apostando no predomínio do minifúndio, das cooperativas e da articulação com os trabalhadores da cidade. Talvez ainda falte ao MST uma análise mais aprofundada do caráter urbano e industrial de Santa Catarina, para que possa intervir com mais universalidade, saindo do particularismo das questões camponesas. Também sua postura em relação ao governo federal se domesticou bastante nos últimos anos e não tem havido uma presença mais concreta no que diz respeito a proposição de um projeto de país. Ainda na área rural, é forte o movimento dos pequenos produtores, mas, durante o governo do PMDB esteve fortemente vinculado a ele, chegando a apoiar massivamente o Código Florestal aprovado na Assembleia Legislativa. Por sua condição de proprietários (assumindo postura clássica da pequena burguesia), esses agricultores são mais suscetíveis ao conservadorismo.

No universo urbano um movimento importante em nível de Estado é o dos professores, historicamente combativo, sempre protagonizando lutas importantes. Mas, de qualquer forma, por representar uma categoria, sua atuação ainda é bastante reativa, sem a consolidação de uma proposta global para Santa Catarina. Trabalhadores das regiões industriais ou mineiras realizam lutas pontuais, mas tampouco se configuram em forças capazes de intervir no jogo político global. A própria CUT que - por aglutinar um número maior de sindicatos - poderia ser a locomotiva das lutas de categorias urbanas como a dos comerciários e trabalhadores das indústrias, por exemplo, não atua como uma força capaz de articular e propor um projeto novo para o estado de Santa Catarina. Sua ação é também mais reativa que propositiva. Vale lembrar que essa Central, que nasceu para ser um instrumento dos trabalhadores, ao logo dos anos também foi perdendo sua radicalidade, atuando muito mais na lógica da conciliação de classe e na preparação dos trabalhadores para a domesticação na vida laboral. Os trabalhadores públicos estaduais, que igualmente têm protagonizado lutas importantes ao longo dos anos, ficam restritos ao corporativismo e lutas pontuais. Falta definitivamente um elemento unificador de todas essas lutas esparsas e a construção unificada de um projeto para Santa Catarina que se diferencie do que vem sendo implementado desde o princípio dos tempos, capitaneado pela elite que representa pouco menos de 12% do Estado.

É bom que se tenha em mente que a falta de um projeto para o estado está também visceralmente ligada à falta de uma proposta de um projeto para o país. Não se consegue perceber, hoje, sequer um partido político, ou movimento social, ou uma junção deles, que consiga dar conta dessa tarefa. Assim, a mesma incapacidade que se verifica em Santa Catarina se coloca em nível de país. 

Essa constatação não deve servir como elemento imobilizador ou motivo para choramingações. Pelo contrário. Deveria ser a mola a impulsionar um projeto histórico capaz de avançar no sentido de construir verdadeiramente uma proposta nacional, libertária, socialista e internacionalista. Tarefa árdua que precisa de muito estudo e capacidade de organização.  

A riqueza em jogo

Quando se fala em conjuntura e em construção de uma proposta de país e de estado, há que levar em conta a base material do que está em questão. No caso de Santa Catarina - que é o motivo dessas breves notas - o que está em disputa é uma riqueza cuja economia está colocada em sexto lugar no país. Apesar de ser um estado pequeno (95.285 km quadrados) Santa Catarina movimenta 4% do PIB nacional, ou seja, 129,8 bilhões, o que não é coisa pouca. Sua força maior está na indústria, representando 22,3% do PIB estadual. É gigante na área têxtil, na agroindústria, na cerâmica e metal-mecânica. É o maior exportador de frango e de carne suína do Brasil, sendo a Sadia e a Perdigão as responsáveis por isso. Hoje as duas empresas estão configuradas numa multinacional, a Brasilian Foods. Também está em Santa Catarina a maior fábrica de motores elétricos do mundo, a WEG, e uma das maiores fabricantes de compressores para geladeira, a Embraco. Com sede no estado está ainda a maior encarroçadeira de ônibus do país, a Busscar, assim como outras marcas de nome nacional com a Consul e a Brastemp.

A região de Blumenau congrega o maior parque têxtil do estado e mesmo as pequenas empresas ou as produções domésticas estão a serviço das grandes empresas como a Hering. A região norte condensa a metalmecânica.

Apesar de ser conhecido nacionalmente como um estado de minifúndios, Santa Catarina está cada dia se transformando num deserto verde. Tudo isso por conta da expansão das empresas de florestamento que atuam com pinus, uma planta exógena que, comprovadamente, provoca a desertificação das áreas. O pinus tem se espalhado pelas regiões do meio oeste e serra, ocupando inclusive topos de morro, uma vez que é muito difícil controlar a sua disseminação. Muitos pequenos agricultores estão abandonando o cultivo de alimentos e se dedicando a plantar pinus. Acreditam eles que é mais lucrativo, e de fato é. O manejo é ínfimo e um produtor de pinus pode ficar em casa descansando, só esperando a árvore crescer. Não há preocupação com clima, nem com perdas. É lucro seguro. O problema é que com o tempo a terra vai minguando e pode ficar incultivável. Não é sem razão que Santa Catarina foi o terceiro estado que mais desmatou as florestas nativas, e é o maior produtor de celulose. Tudo está a serviço das empresas de reflorestamento que, longe de ajudar a recuperar as matas, as estão matando. Inclusive os pinheirais, parte da tradição da vida do povo da serra, estão minguando. A produção de pinhão declina ano após ano.

No campo da pequena produção que ainda resiste o milho é a principal cultura. Segue-se a soja, bastante cultivada na região do meio oeste, o fumo, a mandioca e o feijão. Tirando a soja, que é plantada em grandes propriedades, as demais culturas estão no controle dos pequenos proprietários. No que diz respeito a criação de animais é a suinocultura e a avicultura que domina o cenário, sendo que no oeste, a maioria dos pequenos produtores trabalha associada aos grandes frigoríficos, em condições bem desfavoráveis. Também a pesca tem representado importante papel na economia do estado. Santa Catarina é um dos maiores produtores de pescado e crustáceos do país, com maior produção na região de Florianópolis, Itajaí e Navegantes.

Na área do extrativismo mineral é a região de Criciúma que se destaca. Todo o entorno já foi um grande produtor de carvão e apesar do decréscimo na produção, ainda representa muito dentro da economia catarinense. Existem ainda reservas de fluorita, sílex, quartzo, bauxita, petróleo e gás natural. A região também domina a produção de cerâmica e é uma das maiores produtoras do país.

Conforme informações da Federação das Indústrias do Estado de Santa Catarina (Fiesc) no que se refere às exportações Santa Catarina é campeã de lucros e representa 3,6% das exportações do país. De janeiro a dezembro de 2013, as exportações catarinenses alcançaram o valor acumulado de US$ 8,7 bilhões. Ocupa a décima colocação no ranking nacional. Os principais mercados de destino dos produtos catarinenses em 2013 foram Estados Unidos (11,8%), China (8,0%), Japão (6,0%) e Países Baixos/Holanda (6,0%).

Os produtos industrializados catarinenses que aumentaram a participação no mercado internacional foram os motores e geradores elétricos, cujas vendas cresceram 22,3% e atingiram US$ 190,2 milhões; motocompressores, com crescimento de 8,8% e receita de US$ 168,9 milhões; e blocos fundidos, com incremento de 18,9% nas vendas e receita de US$ 141 milhões. A carne de frango, principal produto da pauta de exportação, cresceu 10,6%, para US$ 733,5 milhões. 


No que tange aos indicadores sociais Santa Catarina é sempre considerada uma espécie de Europa brasileira. O índice de famílias colocadas na classe E é o mais baixo do país, 6,9%. Por outro lado, as classes A, B e C somam 80,4%, maior índice do país. O estado ostenta o segundo maior Índice de Desenvolvimento Humano, tem 51,9% dos trabalhadores com carteira assinada, com salário médio de 1.258 reais. Tendo na sua formação cultural forte conteúdo migratório, também é bastante conhecida a fibra da população catarinense (descendente de alemães, italianos, poloneses, açorianos) acostumada a vencer qualquer sorte de desgraça, como as comuns cheias do Vale do Itajaí. Talvez venha daí essa capacidade de aguentar também maus governos e condições desfavoráveis de reprodução da vida.

A força patronal

Além das forças políticas, expressas nos partidos, e a ação dos movimentos sociais de cunho trabalhista ou popular, também há outras forças com forte atuação na vida do Estado. Uma delas é a da Fiesc, que representa a maior e mais rica força econômica: a indústria. São 38 mil empresas representadas na entidade, que, juntas, empregam mais de 670 mil pessoas, sendo responsáveis por um terço da riqueza gerada no estado. A Fiesc também articula 130 sindicatos de indústria, representando política e institucionalmente o setor. Além disso, ainda oferece serviços nas áreas de comércio exterior, política econômica industrial, infraestrutura e meio ambiente, legislativa e tributária e relações do trabalho. Portanto, sua atuação junto as forças que comandam o estado é sempre sinérgica.

O sistema Sesi, ligado à Fiesc  atende 280 mil trabalhadores por dia, oferecendo serviços nas áreas de saúde, lazer, educação, farmácia e alimentação, criando assim, vínculos emocionais com os trabalhadores das indústrias, o que faz com que muitos deles considerem as empresas onde trabalham como sua segunda casa. Esses vínculos, muitas vezes, impedem que a luta por melhores salários se faça, uma vez que os trabalhadores acabam acreditando que a empresa faz “o suficiente” para seu bem-viver. O sistema de qualificação profissional, o Senai, possuiu hoje 400 laboratórios e atende, a cada ano, 90 mil alunos. Desde sua criação, com as 34 unidades espalhadas pelo estado, já formou 1,7 milhão de profissionais. Com tamanha encarnação na vida dos trabalhadores, essa é uma força que não pode ser ignorada quando se trata de pensar um projeto para o estado.

Não é sem razão que a FIESC, muito mais articulada que os movimentos sociais, tenha o seu projeto para Santa Catarina muito bem delineado, com uma série de documentos livremente publicados na internet, não só no campo econômico, mas também dando receitas para a saúde e educação, no qual os dirigentes políticos bebem para realizar suas propostas de obras e de desenvolvimento do estado. No mais das vezes, a simbiose Fiesc/governo é quase total.

Assim, uma das tarefas que está colocada para os movimentos sociais e partidos de esquerda é justamente a de melhor conhecer as forças que atuam no estado, compreender e avaliar os projetos e a situação da classe dominante e, de forma articulada, iniciar um movimento sistemático de estudo e análise da realidade para poder combatê-la. Perceber quais as propostas e anseios das gentes que atuam na vida real, conhecer suas lutas – que não são poucas – ficar ciente da correlação de forças que existe entre a classe dominante e os “de abajo”.  Depois, com base nisso, definir ou redefinir os seus objetivos. Recomeçar o difícil e árduo trabalho de articulação e construção de um novo projeto político para Santa Catarina, que tenha a classe trabalhadora (formal ou informal) como protagonista e condutora das mudanças. 

Mas, esse projeto para o estado não poderá estar descolado da questão nacional, visto que os mesmos partidos que atuam aqui, apresentam seus projetos em nível nacional. A relação com o império estadunidense, a proposta para a América Latina, a aliança com o agronegócio, os conceitos de desenvolvimento, são elementos que apenas se diferenciam de forma muito pontual entre os partidos que representam a elite dominante. E o PT, com seus aliados nacionais como o PCdoB e PMDB, de instrumento da classe trabalhadora e partido de esquerda, passou a ser um partido ideológico (que encobre a realidade), tal como os outros, representante de uma classe média emergente que quer chegar ao paraíso capitalista. 

Assim, transitar no conjunto dos movimentos do campo e da cidade, com seus mais diversos matizes políticos não é coisa fácil. Também se configura difícil a possibilidade de que a maioria deles saia dos seus particularismos para assumir uma proposta transformadora, de destruição do sistema capitalista, de construção de outro projeto nacional, de revolução. Mas, alguns há que pensam e caminham, e, com isso, o processo vai avançando. No caso de Santa Catarina é chegada a hora de os partidos de esquerda e os movimentos comprometidos com outra forma de organizar a vida decidirem-se por travar uma boa luta e avançar na discussão sistemática com a população, para muito além do momento eleitoral. Ou isso, ou seguiremos indefinidamente repetindo a velha dobradinha direita/centro nos centros de poder, com sérias chances de ver o estado ser assaltado sistematicamente por velhos/novos e ardilosos gangsteres profissionais. 

Nesse sentido, segue muito atual o lema do grande educador venezuelano, Simón Rodríguez: "ou inventamos, ou erramos". Esse é o desafio para todos nós que queremos um estado e um país diferente desse que aí está. 


quarta-feira, 3 de setembro de 2014

Balaio no Campeche




















A Rádio Comunitária Campeche, em parceria com o Sarau Boca de Cena, realiza no próximo domingo, dia 7 de setembro, um encontro cultural. A proposta é juntar artistas e gentes de todos os matizes para celebração da arte e troca de informação. Assim, no pátio da rádio, será montado um pequeno palco, aberto para poesia, música e malabares.

Estão convidadas as bandas: Pedra do Urubu, Sonwil e Matheus Mc, 3 Jay, Petro Dimi, Banda Escarno e Banda Alquimista. No time dos poetas já confirmaram Bianca Velloso, Mariana Queiroz, Juliana Impaléia e Beatriz Tajima.

Assim, quem quiser curtir uma tarde de sabores e sons é só chegar. Travessa Iracema das Chagas Freitas, 80. Começa às 15h. Vamos viver a cultura e o encontro amoroso.

terça-feira, 26 de agosto de 2014

A sorte da anã Catarina





Uma crônica maravilhosa do jornalista Gilberto Motta, lembrando uma dessas personagens inesquecíveis do nosso Mercado Público: Catarina. 





"Olha aí, bonitão! A cobra tá te perseguindo! O bilhete caiu no chão...É a sorte grande, simpatia!”.

1
Catarina chegava sempre com o bordão da esperança:
_____ Olha aí, capitão! A cobra tá atrás de ti, quiridu! Ói, ói, oi, o bilhete caiu no teu pé...É a sorte grande, amádu!!!

Mulher de corpo mínimo, lábios carnudos, cabelos loiros de tintura, seios e pés enormes, desproporcionais. Os pés de Catarina dariam uma tese acadêmica. As sandálias, então, seriam um capítulo à parte. Vivia ali pelos lados do mercado público, no centro da ilha. Era uma anã ao contrário. Jamais conheci criatura tão enorme em sentimentos; tudo aquilo que gostaríamos de ser no quesito liberdade. Até que um dia a sorte lhe veio de viés.

2
O negro Adilson saíra de Laguna com um firme desejo: ganhar a cidade grande e vencer na vida. Desembarcou no velho terminal ao lado do mercado público sonhando com as manchetes dos jornais e da televisão. Seria o melhor engraxate que a ilha jamais conhecera. Logo percebeu que o caminho para a glória passaria pelo mercado público da cidade. Semanas após, Adilson já era conhecido pelo talento em dar brilho nos sapatos de figurões no Box 32, “o balcão mais democrático de Floripa”. O tempo teceria as suas tramas parecendo não se importar com o negro, nem com a anã. Dois lados de uma mesma moeda à espera de um encontro com o imponderável. 

3
Tirando os pés enormes e desproporcionais, Catarina era uma anã toda certinha. Coxas grossinhas, seios empinados, lábios carnudos e olhos profundamente azuis. Entre uma venda e outra, as histórias entorno da anã iam sendo construídas. Aquela do ex-garçom do Linda Cap, “o mais tradicional restaurante da Ilha da Magia”... que a pedira em casamento e tudo, de papel passado, mas Catarina dera de ombros. A outra -do velho turco, anotador do jogo do bicho-, que lhe prometera fortunas e uma casa na Lagoa da Conceição. E tem o caso do emérito desembargador do Tribunal de Contas que, entre uma doses de Chivas no Box 32, escrevia poesias eróticas picantes para a desejada anã. De fato, Catarina provocava estranhamentos e insólitas paixões.

4
Adilson era um belo negro. Menino ainda, por volta dos dezesseis; e não conhecia ainda os desmandos que a vida impõe àqueles que vivem pelas ruas da região do velho mercado. E foi mesmo assim; poucas semanas se passaram do brilho ilusório dos sapatos de luxo dos bacanas da cidade até encarar e ter com a violência do mundo marginal. Subiu o morro da Prainha e se vendeu aos dragões. Fez amigos de baladas e lambanças e se sujeitou aos desmandos da vida por um fio. Fumou, cheirou e caiu finalmente no crack. Meses depois, o negro se arrastava alucinado pelos vãos do mercado público. 

5
Naquela noite, Catarina sonhou que acertara na loteca. Comprara um carrão importado e cedera, enfim, ao pedido de casamento do desembargador. Acordou feliz da vida, como de hábito, às cinco da matina. Acendeu as velhas no pequeno altar dedicado ao Nosso Senhor dos Passos; rezou e pediu que a sorte não lhe abandonasse. Produziu a detalhada maquiagem, batom vermelho carmim e a pinta preta na face feita a lápis barato comprado na banca do Pedrinho, “o melhor e mais honesto camelô da city”. Depois, espirrou o inseparável laquê nos longos cabelos, já descoloridos pela tintura duvidosa, e foi feliz para o trabalho. Adilson fumou crack a noite toda. Acordou com tiros no maciço da Cruz, na coroa do morro. Pegou a caixa de engraxar e vazou o velho mercado. Antes do meio dia, os dois se encontraram pela primeira vez.

6
______ Olha aí, bonitão! A cobra tá te perseguindo! O bilhete caiu no chão...É a sorte grande, simpatia! – disse a anã para o negro.
______ Quanto é a tira, coisa linda? – respondeu Adilson hipnotizado.
______ Pra você, é só cinco pratas; e olha que é extração especial, de Páscoa...vale quinhentos mil se der na cabeça! – informou Catarina.
Adilson juntou os trocados da manhã e comprou o bilhete sem tirar o olhar dos olhos da anã. Era o da cobra. A paixão instantânea selou a vida e armou o bote.

7
Era sábado e o mercado público estava em chamas. O Boi de Mamão do Sambaqui se apresentava no vão central. A prefeitura armara uma grande festa para comemorar a semana de Páscoa. Até o vento sul abrira um precedente e não soprara na ilha naquele fim de semana. A cidade estava em paz, contemplativa. Os corações de Adilson e Catarina, batendo em descompasso. Ao cair da tarde, o primeiro beijo. No início da noite, as carícias mais íntimas. Nas primeiras horas da madrugada de domingo, o sexo consumado em baixo da terceira ponte que une o continente à ilha. Depois, a sorte rolou seus dados na loteria do destino.

8
Catarina nascera com o tamanho de um bebê qualquer. Com o passar do tempo, a condição de seu futuro de anã foi se delineando. Atingira a idade adulta tendo exatos um metro e vinte e cinco centímetros, lábios carnudos e pés desproporcionais. O corpo miúdo de Catarina foi encontrado no início da tarde em um bebedouro abandonado sob a terceira ponte. As pedras foram insuficientes para ocultá-lo e os pés da anã serviram de faróis para a terrível localização. O negro engraxate se escondeu por uma semana nos mocós da Prainha. Preso, foi levado para a cadeia pública onde morreu assassinado por espancamento. “Justiça feita pelos amigos marginais”, diria o delegado à reportagem do jornal da TV. 

Dizem que, ainda hoje, nas tardes de sábado, quando o vento sul sopra na ilha, a anã Catarina pode ser vista negociando seus bilhetes pelas ruas estreitas do centro da cidade.

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