Alzheimer/Velhice

segunda-feira, 8 de abril de 2024

Saudade do pai


Passaram-se 45 dias da morte do pai e a vida ainda segue tendo ele como centro. A casa, que foi adaptada para seu conforto, se mantém igual. Na sala, o amparo para os pés permanece porque, agora, é o cachorro, Steve, que precisa dele para subir no sofá onde gosta de se recostar. Como está muito velhinho, não consegue dar o impulso, então deixamos a mesma madeira que servia para o pai. As rampas ao redor da casa, as barras no banheiro, os tapetes, tudo ali reaviva sua passagem. 

Ainda não consigo ficar na rua por muito tempo e quando batem três horas corro para casa, como antes. Também continuo indo dormir às sete horas da noite. Nos dias de semana, quando venho do trabalho, pouco antes de chegar à casa, meus olhos já vão espiando pelo portão, porque era comum ele estar no pátio, sob as árvores, na companhia da querida amiga Clau Alves. Ele não está. Ainda assim, quando entro em casa também volto meus olhos imediatamente para a poltrona onde ele sempre ficava. Antes, eu punha o pé na porta e já gritava: Oiiiiii, meu amoreco-reco-reco-reco. Ele abria o sorriso e respondia: reco-reco-reco, reco. Ainda me enterneço com essa lembrança, afinal, ele interagiu com a gente até o fim. 

Os bichos também lhe sentem falta. Os cachorros disputam sua poltrona e os gatos dormem todas as noites na sua cama. Incrivelmente na última semana do pai eles passaram a querer dormir no quarto, junto com ele, como a se despedir. E agora permanecem lá. Hoje pela manhã quando finalmente decidi juntar algumas de suas roupas para doar, lá estavam eles deitando em cima delas, ciumentos. O seu Tavares deixou, indelével, sua presença...


Encantou o furioso



Foi assim. Dois dias depois da aventura da missa de sétimo dia do pai, o furioso decidiu encerrar sua história conosco. O furioso é o Fiat Uno que esteve com a gente quase  15 anos e viveu todo o processo da doença do pai. Ele entrou para a família pela mão do Rubens Lopes que adquiriu ele de quinta mão. Já era bem caidinho e tanto que uma vez ele foi furtado da frente da casa dele e logo em seguida achado. Os ladrões viram que era roubada ficar com o fiatizinho e abandonaram o carro com uma caixa de ovo atrás, de presente, tipo dizendo: desculpa aí, fiquem com esses ovos. 

O Rubens vendeu o Fiat para o Renato para que ele pudesse ir e voltar da faculdade mais ligeiro e quando o pai chegou acabou sendo uma mão na roda, pois o Renato tinha a missão de cuidar. Aí, ter o carro era bom, pois ele podia se mexer com mais agilidade já que depender de ônibus na cidade é a treva. Foi apelidado de furioso porque era velhinho, mas valente. A lataria tinha furos por toda a parte, que o Renato remendava com camadas e mais camadas de fita crepe, e chovia dentro  do carro mais que na rua. Ninguém se importava.

Mesmo baleado o Furioso foi com Rubens e Renato para Minas Gerais, embrenhado nas estradas do serrado e do sertão. Dias e dias até João Pinheiro e Pirapora, passando pela nascente do Rio São Francisco e cruzando estradas impossíveis, sem deixar ninguém na mão. Pulando feito cabra, mas firme na paçoca. Foi com uma mudança de amigos e voltou com o bagageiro cheio de cachaça. 

Em 2015 viajamos com ele para o Uruguai: Renato, Rubens, Antônio e eu. Fomos fazer o caminho do êxodo do povo oriental. Cruzamos Santa Catarina, o Rio Grande do Sul inteiro e demos a volta no Uruguai no rastro do Artigas. O Furioso firme. Depois de mais de 15 dias de aventura nas estradas voltamos para a ilha, o Furioso bufando. Pois não é que ele parou bem no Rio Tavares, em frente à oficina do seu Valdir? Parece que ele sabia que ali era o lugar. Foi só puxar para o outro lado da rua. Tivemos de esvaziar o porta-malas e deixá-lo lá, na mão do mecânico. Mas ele chegara até quase em casa. Não nos deixou na mão.

Nos oito anos de cuidados com o pai o Furioso foi companheiro levando e trazendo o seu Tavares no Posto de Saúde, na UPA, no hospital, levando para passear na Lagoa do Peri, no Zeca, pra comprar pamonha, no Centro, em todo o lugar. Serviu também para que o Renato fosse e voltasse para a Udesc na interminável batalha de encerrar a graduação. Dois valentes. 

O Renato se formou no dia 28 de fevereiro, fechou o livro da Udesc. O Furioso acompanhou a colação de grau lá no Pedro Ivo.  O pai encantou no dia primeiro de março e o Furioso ainda nos levou até a Igreja da Trindade para a missa de sétimo dia. Dois dias depois o Renato foi fazer um serviço e na volta para a casa o Furioso parou. Não havia mais conserto. Seu Valdir ainda foi lá vê-lo embaixo do viaduto, mas o diagnóstico era de morte. O Furioso não voltaria mais. 

Hoje, o Rubens deu baixa no Furioso lá no Detran e nós relembramos sua vida conosco. Sentamos no alpendre, sob as estrelas, celebrando sua existência com algumas cervejas. Havia tristeza, afinal, foram muitas coisas se acabando nestes dias. Mas, ao mesmo tempo, fomos levantando as lembranças, recordando as aventuras, rindo das histórias que foram voltando ao coração. O Furioso cumpriu um lindo destino aqui em nossa casa, com nossa família. Era um carro velho, feito de lata e aço. Ainda assim parecia ter espírito. Sei lá, era um Tavares. Agora, enquanto escrevo, choro. Com ele vai um pedaço de nós. É outra grande perda... E dói.


sábado, 9 de março de 2024

A penúltima aventura com seu Tavares


Ontem fez sete dias que o pai encantou. Como ele era católico devoto eu decidi mandar rezar uma missa de sétimo dia. Durante a semana tentei contato com várias igrejas, mas tudo fechado e sem atender telefone. A única que atendeu foi a Igreja da Trindade, aí o jeito foi mandar rezar a missa lá. Longe pra dedéu, mas tudo bem. Ontem o dia amanheceu chuvoso e não deu trégua alguma. Pensei: vou chamar um Uber para ir até a Trindade. Quando deu perto das seis horas fui buscar o Uber, estava dando até meia hora para chegar um aqui em casa. Desisti. Pegar um ônibus não daria tempo. Tentamos pedir carona pra alguém, mas as possibilidades falharam, então o Renato vaticinou: vamos no Furioso. 

O Furioso é o Fiat Uno dele, que está que é só a capa da gaita. Não sei como anda. Com a chuva, pingava água por tudo e parecia chover dentro do carro. Ainda assim, fomos. Quando chegou na SC o limpa-vidro emperrou. Não limpava mais. Não enxergávamos um palmo diante do nariz. A chuva a mil. Não havia como seguir com o Furioso. Decidimos parar e tentar um Uber outra vez, desta vez mais lá perto do terminal. O engarrafamento era monstro. Deixamos o Fiat na UPA e pedimos o Uber. Demorou 10 minutos para chegar. Certamente nos atrasaríamos. O motorista, um baiano da gema, assegurou que chegaríamos na igreja às sete e três. E lá fomos nós, já molhados até o talo. 

Minha amiga Catarina estava junto e nem falava, tamanho espanto. O Gleidson nos deixou na porta da igreja, assim, como se fôssemos noivos, às sete e três. Eu desci correndo, a missa já havia começado. Quando entrei na igreja o padre estava falando: onde estão os familiares do senhor José Nelson Tavares? Eu e o Renato, molhados e com a sombrinha ainda aberta, entramos correndo com os braços erguidos: aqui, aqui. A igreja toda nos olhando. O padre falou palavras bonitas. Mais calmos e aliviados por termos conseguido chegar, sentamos e acompanhamos a missa.  

Rezamos pelo seu Tavares e saímos bem contentes. Pegamos o ônibus direto Titri/Tirio, molhados como pintos, mas serenos pelo dever cumprido. Chegamos no terminal e fomos pegar o Furioso. A chuva não dava trégua e nós fomos, bem devagar, praticamente sem ver nada, até que avistamos um cachorro-quente. Bora parar? Bora. Compramos os cachorros e voltamos para a estrada, até conseguirmos finalmente chegar. Nem sei como conseguimos. Mas, deu tudo certo. Era hora então de nos lambuzarmos com os doguinhos, não sem antes pensar que o seu Tavares teria se divertido com mais essa aventura. Foi a penúltima porque ainda vamos levar o pai até o Ibicuí, onde está a mãe… Que seja menos aventuroso… Ou não.. Afinal, nunca foi fácil, porque agora seria?


sexta-feira, 1 de março de 2024

Encantou o seu Tavares


Foi embora meu velhinho, bem na hora noa - três da tarde. Dormitava. Respirou acelerado três vezes e, num pequeno suspiro, se foi. Os cachorros ressonavam no pé da cama e os gatos estavam enrodilhados no sofá ao lado.  Eu estava ao seu lado, ouvindo com ele as melhores de Liu e Leo, sua dupla caipira preferida. Era esperado, mas foi um espanto e abriu-se um vazio. Todas as palavras fogem e meu coração diminui as batidas. Foram horas e horas de trâmites burocráticos pelos quais vamos passando em roldão. Só agora, apascentando a tristeza da ausência me permito rememorar os momentos mais alegres que passamos nesses oito anos de enfrentamento do Alzheimer, e foram tantos. Porque o que vai ficar é a alegria. Escrevo para informar aos amigos que ao longo desses anos acompanharam sua peripécias e nossa jornada, juntos, nessa turbulenta doença. Escrevo para agradecer a companhia, as mensagens, o apoio, que me chegou de gente completamente desconhecida e que ainda assim encheu meu coração de ternura e desse sentimento grandioso que é o de se sentir agasalhada pelo amor. Gracias, gente querida... O pai agora está na outra casa da beleza porque, de alguma forma, aqui, no nosso ranchinho, a beleza também já vivia ao seu lado... 

A despedida será no Crematório Catarinense, amanhã dia 2,  das 13 as 16h, lá em Palhoça.


sexta-feira, 8 de dezembro de 2023

O Alzheimer avança

Na foto, vendo Rolando Boldrin, e o gato atento...

O Alzheimer tem milhares de fases. Há que viver cada uma delas de maneira profunda porque como é uma doença degenerativa, as coisas só vão piorando. Hoje sinto muita falta daqueles dias em que o pai saia portão afora para ir embora para Uruguaiana. Agora ele não anda mais e pouco a pouco o corpo vai desistindo. Antes ele não dormia de jeito nenhum e era uma confusão durante as madrugadas, com as andanças e mijadeiras. Agora só quer ficar dormindo. Durante a manhã vai até às 10 horas, quando então o Renato o levanta e põe na cadeira de rodas para tomar um sol, um ventinho, uma brisa. Ao meio-dia almoça. Ainda come muito bem, o que é uma benção, porque a fase em que eles não querem mais comer é provavelmente a última. Lá pela uma e meia volta para a cama, para a siesta, e quando eu chego do trabalho ele está ressonando, com um dos cachorros e um dos gatos deitados ao lado, vigiando. Lá pelas três e meia a gente levanta ele de novo, mas é uma missão. Ele não quer levantar e fica duro igual a um pau o que torna o trâmite ainda mais difícil. O Renato já deu tilti na coluna umas três vezes esse semestre. É muito peso. Toca fazer uma fisio para movimentar as pernocas, os braços, as mãos. Vai um eito. 

Bom, acordado outra vez é hora do café, que pode ser um Toddy, uma salada de frutas ou um iogurte, que ele come bem satisfeito. Em seguida, pãozinho doce com manteiga e queijo. Depois é um sem fim de truques para que ele tome água e fique acordado pelo menos até umas cinco e meia da tarde, para poder dar a janta. Mas, tem dias que ele não acorda por nada e temos de colocá-lo na cama sem comer. Dias há que eu vou colocando a comida bem batidinha no liquidificador em pequenas porções na sua boca. E ele, dormitando, vai mastigando e engolindo. Um processo que pode levar horas, porque tem de ser lento. É por isso que ao chegar a casa, nada mais se pode fazer a não ser dar-lhe atenção. Porque tudo demora. Isso sem contar na confusão dos cachorros que ficam em volta também querendo comida. É uma “pequena pauleira” como diria meu irmão. 

Lá pelas seis e meia, quando estão esgotados todos os truques para comer ou beber, levamos para o quarto. Hora de trocar a roupa. Outra função. Nesse momento ele desperta outra vez e começa uma falaceira bem divertida. Colocamos na cadeira de banho para que ele possa fazer xixi e cocô, e aí também temos de esperar e esperar. Limpando e conversando, até que o intestino funcione. Por enquanto está indo muito bem. Todas as noites ele apresenta o “rabo do macaco”, o que denota saúde física. Conversa mais um pouco na sua língua klingon e por fim o colocamos na cama de novo. Basta encostar a cabeça no travesseiro e já está roncando. Só aí conseguimos respirar um pouquinho. Então é tempo de varrer casa, passar pano, arrumar a roupa, comer alguma coisa, esperar o broto, estourar uma latinha e as coisas todas da casa. 

Lá pelas oito horas eu volto para o quarto – durmo com ele - e vejo se está tudo bem. Entram os gatos, aboletam-se na minha cama. E eu fico ali, cuidando ainda por algumas horas...  Aqui em casa a família toda participa das funções com o pai. O Renato é o mais sobrecarregado porque levanta ele todos os dias, mas de noite há escalas. Às vezes a gente perde a fortaleza, porque não é fácil ver o velhinho definhar. Mas, os seus olhos brilham, ele nos reconhece com sorrisos e ainda pode tacar a mão na cara se ficar brabo. Está vivo e coberto de amor. Nós lhe damos nosso melhor.  

domingo, 8 de outubro de 2023

Odisseias do cotidiano



Dez horas, domingo. Hora de levantar o pai. A chuva comendo. Seu Tavares abre os olhinhos e já dá um sorriso. É um amorzinho. Levanta a coberta e a surpresa nos espera. Tá cocozado e bastante. Hora do banho. Faz as gingias de alongamento e toca a levantar. Põe na cadeira de banho e vai para o chuveiro. No começo ele encrespa, mas quando a água quentinha vai subindo ele relaxa e curte. Limpa, limpa, limpa. Tudo pronto, desliga o chuveiro e vai saindo. Mais cocô na parada, bah... Pedro corre pra limpar o chão e eu volto com o pai para o chuveiro para mais uma lavada. Tudo certo, é hora de secar. Vai secando, passando crème com óleo de girassol em todo o corpo. Depois coloca a roupa da parte de cima. Na parte de baixo ainda é hora de fazer o curativo numa escara que apareceu no cóccix. Ajeita, limpa bem, põe a pomada, a gaze e tudo certo. Fechado. Aí vem a hora de colocar a fralda e calça. Passa o crème com óleo nas pernas, ajeita a fralda. É hora então de levantar ele da cadeira. Pedro sustenta pelos braços, porque ele não se sustenta mais, e eu ajeito a roupa. Parecia que tudo ia bem, mas eis que o Pedro sente um quentinho no pé. Mais cocô. Putz grila. Por sorte caiu tudo no pé e não sujou a fralda. Volta pra cadeira e dá um tempo para dar risada porque a cara do Pedro é engraçada demais. Ele mesmo cai no riso e vai para o banheiro para tirar o cocô do pé. Eu volto a fazer nova higiene no pai. Espio para ver se não sujou o curativo. Graças aos bons deuses do Tahuantinsuyo não sujou. O Pedro volta e ergue ele de novo. Eu subo a fralda e a calça e pronto. Tudo certo. Ufa. Bota na cadeira de rodas para ir para sala. Coloca a meia, o sapato, e envolve ele num coberto para poder atravessar a parte descoberta porque a chuva tá caindo forte. Pedro empurra a cadeira e eu sigo com o guarda-chuva. Encerrada a fase despertar. Valamideuzi... Mas ali está ele, bem bonitinho, lavado, arrumado e pronto para o café. Assim vamos indo, fazendo nosso impossível para garantir vida boa e bonita para o pai.


sexta-feira, 29 de setembro de 2023

Aventuras no Busão


O pai saliva muito de noite e por conta disso eu preciso trocar os travesseiros seguidamente e lavá-los. Como não é fácil secar, o jeito é ter vários deles para repor enquanto os outros secam. Assim que hoje eu fui ao centro para comprar mais alguns. Fiz meu recorrido tradicional e parei na Ki Lojão, onde comprei dois travesseiros. Achei grande, mas a moça disse que era padrão. Tudo bem. Saí de lá com um saco que era praticamente do meu tamanho. Eu podia entrar dentro dele e vir disfarçada. Foi engraçado. 

Segui em direção ao Ticen para pegar o Rio Tavares. A fila já estava enorme e eu com aquele sacão. Pensei:, vou ter de ir em pé e com esse saco enorme. Caracoles. Lá fui eu. Por um milagre dos deuses consegui um banco e me enfiei ali com o saco, incomodando um pouco o vizinho. Até ali, beleza. O trânsito lento e eu rezando para o busão chegar antes das duas e meia, horário da saída do Gramal. Chegou duas e meia. Saltei correndo quase tropeçando no saco, mas não consegui pegar o maldito ônibus. O motorista já arrancava e não parou. . O próximo só sairia em 25 minutos e era Eucalipto, o que significaria uns 40 minutos zanzando pelo bairro, pelos Morros da Pedras até voltar pela Gramal. Sem saída fui do outro lado pegar um Caieira da Barra do Sul que saía as 14 e 35. A fila imensa. Esperei todo mundo entrar e fiquei em pé perto da porta com o enorme saco da Ki Lojão. Um entra e sai de gente e eu me espremendo nos travesseiros a cada um que passava. Pra piorar tive de ouvir duas mulheres falando do ônibus cheio assim: "É ruim, mas a gente se diverte". Quem se diverte, querida?, pensei e mandei pra elas um olhar de monstra.

Quando chegou o Trevo do Erasmo, saltei. Dali até minha casa são 17 minutos andando. E lá fui eu me arrastando com o saco de travesseiros. Sou fraca de músculo então a cada tanto tinha que dar uma parada para trocar de mão. Os travesseiros, apesar de não muito pesados, incomodavam pelo volume. Toca andar e andar até que finalmente enxerguei o portão de casa. Ô glória! Votidizete uma coisa... essa vida de pessoa que usa drogas, no caso o transporte desintegrado da cidade amada. Isso acaba com um cristão! E o que me dá mais raiva é saber que o povo ainda pode votar num disgrama que não está nem aí para o nosso sofrimento. Valei-me São Pancrácio...



sábado, 26 de agosto de 2023

Furdunço



Hoje foi um dia de chuvas e ventos, caiu até granizo. Quando a tarde escureceu todinha, o pai ainda dormia a sesta. Veio o temporal e ele nem viu. Pensei em deixá-lo no quarto, já que estava frio. Mas, acordar, tomar café e ficar ali, olhando para o vazio, não parecia certo. O pai gosta do furdunço que sempre assoma na nossa pequena cozinha onde organizamos uma gostosa poltrona para ele ficar. Com ele, ficam os cachorros, os gatos e a gente, circulando, estudando, fazendo coisas. Também tem a vitrola que toca suas músicas preferidas ou a TV com os doramas, que são os meus preferidos, mas que ele acompanha. A vida pulsa na cozinha. Melhor fazer a operação "ET".

Colocamos o pai na cadeira de rodas e cobrimos o corpo todo com um cobertor, inclusive a cabeça. Só os olhinhos ficam de for a. Aí é sair correndo, atravessando o pequeno caminho que vai do quarto – que fica for a da casa – até a cozinha. Nisso, o meu sobrinho, Renato é craque.

Chegando à cozinha ele se alegra vivamente. A música toca, os cachorros se achegam, mais tarde chega o bisneto, gritaria, confusão, furdunço. Ele ri bem faceiro, esparramado na sua poltrona, coberto com o cobertor quentinho. É hora da janta. Bagunça e falaceira. A vida em movimento. Não é que a parada não seja dura ou que a doença de Alzheimer não seja cruel. Mas temos aqui em casa essa coisa do bom humor, do riso, da alegria. Vamos enfrentando cada golpe da doença com graça, na valentia. E ver o pai alegre, em meio à barafunda da cozinha é bom demais. A gente já entendeu que a velhice precisa ser vivida na aldeia, no meio da muvuca, na quenturinha do amor. E assim, vamos indo... e ele, resistindo...


quarta-feira, 28 de junho de 2023

O estudo e o pai

Estudar e cuidar do pai é sempre uma coisa bem difícil porque se fico concentrada ele cobra atenção. Por outro lado ficamos muito tempo juntos durante a tarde e eu sempre tento encontrar uma forma de dar a atenção que ele exige, mas também aproveitar um pouco. Então decidi estudar como eu fazia antes, quando eu era menina. Naqueles dias a minha vó costumava ficar costurando na sala e eu ia ler os meus livros para ela. Eu lia e explicava para a vó qual era o lance do livro. Eu aprendia ensinando e ela se divertia com minha algaravia. Então, passei a fazer o mesmo. Pego o livro que estou estudando e vou lendo e explicando a parada para o pai. Conseguimos passar um bom tempo assim. Ele me olha com atenção e eu fico falando, colocando ele no centro da conversa. É legal, porque essa técnica de ensinar para aprender sempre funcionou comigo e ele se sente envolvido na situação. É assim que vamos passando as tardes, avançando algumas páginas de leituras fundamentais. Provavelmente ele não entende patavina do que estou falando, mas seu eu pergunto: e aí, sacou? Ele prontamente responde: saquei!



quarta-feira, 24 de maio de 2023

A montanha russa do Alzheimer



A montanha russa não para. Já está outra vez fazendo seu percurso estonteante. Quando a gente começa a se acomodar numa fase, vem outra, e outra, e outra. É um sem fim. O pai, depois de sete anos de doença já não faz mais gracinhas. Quase não se comunica a não ser com os olhos, sempre expressivos. Vez em quando, como se tomado por espírito, ele reaparece, mas é raro. Como quando vai tomar água. Ele faz um grande gole e fica fazendo bochechos. É hora das risadas, porque pode esperar que ele vai lançar um chafariz. Eu fico com o copo e o pano à postos, mas ele sempre encontra um jeito de me enganar. Um descuido e zaz, lá vem o jorro de água, na minha cara ou no chão. 

E digo: Bah, seu Tavares, o senhor sempre faz o mais difícil.

E ele responde: Mas não mesmo. E me olha com os olhos mansos.

Agora de uns dias para cá entrou numa fase que já parece não saber mais como respirar e comer. Seguido ele fica com a boca bem aberta, respirando por ali, sem lembrar que a parada é pelo nariz. E nisso faz uns roncos estranhos, assustadores. De dia ainda fica tudo bem, mas de noite, assume proporções épicas. Na hora de comer também temos dificuldades. Ele fica com a comida girando na boca, sem saber o que fazer com ela. Nem cospe, nem engole. E a gente tem de ficar atento para ele não se engasgar. A refeição vai devagarinho, e sempre bem pastosa, com pequeníssimas porções. É preciso muita paciência. 

Também já está apresentando certa rigidez na hora em que acorda e é sempre bem difícil esse momento, pois a sensação é de que ele vai quebrar o pescoço.  Em alguns dias ele fica bem, mas o cotidiano tem sido mais para ruim. Há que ter um preparo psicológico e espiritual bem forte para a gente não desmoronar. Não é bolinho ver alguém se apagar aos poucos, olhando para a gente no fundo do olho.

A gente segue conversando, colocando música e mantendo ele no convívio da casa, que é bem animada, mas cada dia ele dorme mais tempo. Tenho medo de que chegue a hora em que ele não levante mais. Luto desesperadamente, mas sei que não tenho controle sobre isso. Há que esperar e enfrentar. 

Nas manhãs estão sempre os melhores momentos, quando ainda há certa consciência de si e do ambiente. São lampejos de alegria aos quais nos agarramos. E assim, vamos sacolejando nessa difícil estrada.  Por sorte temos uns aos outros e é essa a força que nos sustenta.



domingo, 9 de abril de 2023


O pai e os dias

  


Meus dias são dedicados a cuidar do pai. Ele agora já está numa fase na qual já não caminha, então não o vejo mais andar para lá e para cá fazendo bagunça no portão, nos armários da cozinha ou no guarda-roupa. Ele levanta, passeia ao sol na cadeira de rodas, depois vem para sua poltrona e fica ali até depois do almoço. Então é a hora da "siesta" e ele descansa o corpo até umas quatro horas. De novo volta para a cadeira de rodas, circula pelo jardim se o tempo está bom, e por volta das seis e meia ele janta. Come bem, tanto na janta quanto no almoço. Nos intervalos também consome muitas frutas, iogurte, café e água. Basta que a gente abra a geladeira para ele já abrir a boca, querendo provar do que for que estejamos comendo. Também toma uma cervejinha ou um vinho conforme o cardápio.

Tenho o costume de falar sempre com ele, normalmente, contando as coisas do dia, do que acontece no mundo, as notícias. E ele me olha sério, prestando atenção, geralmente respondendo na sua língua klingon. Batemos altos papos. Visivelmente ele fica bem feliz quando eu chego do trabalho e coloco minha cara na porta gritando: cheguei, seu Tavares. Também se alegra quando desperta e me vê, convidando-o para sair da cama e comer um ovinho cozido. É óbvio que não me reconhece como filha, mas ele sabe que ali está alguém que o ama, pois seus olhinhos brilham de alegria. O mesmo acontece quando ele acorda de noite e logo vê a minha cara, sorrindo, ao seu lado. Ele também sorri e volta a dormir, provavelmente sabendo-se seguro. Eu me encho de ternura.

Nas manhãs em que cuido dele tenho a ajuda da Clau Alves. E a gente sempre dá um banho gostoso. Tem dias que ele tá brabo, mas no geral fica de boa, curtindo o chuveiro quentinho. Outro dia arrumando ele, constatei. 

- O senhor tá bem bonito né seu Tavares? Pode ser velhinho, mas está bonito e charmoso, não é mesmo?

E ele respondeu de imediato.

- Mas sabe que eu não sei -  E ri, faceiro, nos seus lampejos de consciência.

Às vezes eu fico um pouco triste, achando que não dou a ele distrações variadas, já que ele quase sempre fica em casa, na poltrona. Aqui onde moro não tem nada por perto aonde a gente pudesse ir com cadeira de rodas, então os passeios ficam restritos ao quintal, no máximo na calçada. Mas, essa é vida e a gente vai fazendo o que pode. O certo é que ele ainda tem essa mirada firme e esse sorriso de quem se sente feliz e protegido. E eu também me sinto feliz, chimarreando com ele, falando dos doramas, dos passarinhos, e ouvindo canções gaúchas. Os dias passam e vamos vivendo... O Alzheimer não nos vence porque na deriva dos sofreres vamos encontrando caminhos de beleza.



quinta-feira, 9 de fevereiro de 2023

Porque precisamos da alegria



Fazer o almoço aqui em casa é sempre uma festa. E há que fazer comida todos os dias por conta do pai. A festa acontece porque quem cozinha gosta do que está fazendo. É o caso do meu sobrinho, Renato. Está sempre a inventar coisinhas boas e suas misturas tem o sabor dos deuses, mesmo quando é um simples guizado. Porque ele gosta de temperos, os quais mistura em poções quase mágicas. E também tem a música. Quando é o Renato que escolhe é um som mais sofisticado. Mas quando fica por minha conta a coisa fica eclética. Misturo samba, sertanejo raiz, música gaúcha, bregas raiz e melosas coreanas. Uma confusão. E também sempre tem uma cervejinha bem gelada. 

A alegria é de lei, faz parte da vibra da casa, mas também é legal por conta do pai. Ele precisa desse ambiente de risos e sons festivos. E também é de lei que enquanto se faz a comida ele saboreie um bom copo de vinho tinto, embora às vezes também espiche os olhos para nossa cerveja, aí a gente o deixa tomar um copinho. Todo mundo se ocupa em deixá-lo integrado e feliz. Penso que é também o que faz com que ele ainda esteja firme, apesar dos sete anos de Alzheimer. 

Cuidar de uma pessoa com demência não é bolinho. Mas, sem fazer dramas e com boas doses de bom humor, a gente vai atravessando esse deserto. Ao longo desse tempo de cuidado noto que a alegria é sempre o melhor dos “remédios”. Se há riso, tudo fica melhor. E com o pai é assim... Vê-lo sorridente é nossa missão. Por isso dançamos e cantamos alto, chamando a alegria. E como bem nota o Uaná, que é meu netinho emprestado, sempre que estamos nessa função ele aponta e diz:

- Olha, o vovô Nelson risô... Ou seja, na língua do curumim... ele está rindo... e é assim...


domingo, 15 de janeiro de 2023

Alzheimer, uma fase a mais


O pai foi diagnosticado com Alzheimer há sete anos e está comigo desde aí. Muito provavelmente já passamos por todas as fases: esquecimento, alucinações, violência, impaciência, perda da capacidade de cuidar de sua higiene pessoal, insônia crônica e tudo mais. É tanta coisa que nem sei. Um turbilhão, uma montanha russa para ele e para todos nós que formamos sua família. Um aprendizado constante, pois a doença é assim. Quando entendemos uma das fases, vem outra. E tudo precisa ser recomeçado. Uma batalha. 

Desde dezembro de 2021 o pai foi parando de andar. Mais um baque porque perde completamente a autonomia. Desde aí sua rotina é levantar e dar uns poucos passos do quarto até a cozinha, onde senta e fica até de noite, ou na cadeira de rodas, com a qual saímos para pegar sol, ou no sofá. Mais que isso ele cansa muito.

Mas, o mais surpreendente é que todos os demais sintomas da doença parecem ter desaparecido como mágica. Não há mais o tal do "quero ir para casa", não tenta fugir, não fica brabo quando faz as necessidades na fralda, não fica violento, toma banho cantando, bem contente e pasmem: dorme a noite todinha. Coisa absolutamente impensável nos últimos seis anos, quando acordava dezenas de vezes querendo sair e aprontando miles de aventuras. E, não, não está apático para nada. Ele presta atenção em tudo, entende boa parte do que dizemos, responde perguntas básicas e não raro me chama de filha. Seus olhinhos estão sempre atentos e basta que a gente abra a geladeira para ele abrir a boca, pedindo algo para comer. Ele se alimenta bem e só é meio chato com a água. Essa a gente tem de empurrar, toda hora um golinho.

De manhã, quando entro no quarto para os trâmites da limpeza, ele me recebe sempre com um sorriso sapeca.  Sempre, como se reconhecesse que ali está alguém que o ama. 

- Vamos levantar pra comer ovo? – eu digo

E ele fica a animado, dizendo: 

— Mas, bah! - ou enrolando na sua língua Klingon.

Quando tem visita em casa ele também fica bem alegrinho, sorrindo para as pessoas. Durante o dia escuta suas músicas preferidas e se alegra quando ouve a palavra Uruguaiana.

É fato que os cuidados aumentaram, mas é incrível ver que ele segue antenado, tranquilo e aparentemente bem feliz. Tá magrinho, mas forte. Continua arrenegando com os cachorros e querendo tomar a nossa cerveja. Toma um único remédio para pressão, além, é claro, do abençoado óleo da Santa Maria. 

E assim, vamos caminhando rumos aos 91 aninhos que se cumprirão agora em fevereiro.


terça-feira, 29 de novembro de 2022

Eu, o pai e a ceifadora


Há muito tempo vi um vídeo sobre a morte. Ela se enamora da vida. E é um sofrimento, porque se ela toca na vida, a vida se esvai. Ainda assim, a morte segue a vida

e está ali, todos os dias, do seu lado, extasiada de amor, mas sem poder sentir o calor do abraço, a doçura do beijo. É um filme extraordinariamente triste, mas absurdamente belo, a ensinar que a ceifadora está conosco, o tempo todo, amorosamente esperando, a vida inteira. 

Passei a observar mais a morte quando meu pai foi diagnosticado com a doença de Alzheimer. Porque, desde ali, tenho caminhado com ela. A doença é degenerativa, a pessoa vai passando por várias fases até chegar o fim. Não é como cuidar um bebê, que a gente vai preparando para a vida. É o contrário. Vamos preparando para a morte. E a doença vai lentamente apagando tudo. Primeiro é a memória. Depois, vai afetando o movimento até que a pessoa

não anda mais. E depois vai se agravando. A pessoa esquece como comer e como respirar. É avassalador.

Ontem, mexendo nos textos que já escrevi sobre o pai desde que

ele veio morar comigo em 2016 fui percebendo, assombrada, o quanto ele mudou. Quando chegou era serelepe, caminhador, fugia de casa,  molhava as plantas, juntava os cocozinhos dos

cachorros, cuidava da cachorra doente, caçava carrapatos, fazia bagunça nos guarda-roupas, nos armários da cozinha, quebrava todos os meus bonequinhos, fumava, rasgava meus livros. Agora, desde há alguns meses ele já não anda e não bagunça mais nada. Fica ali, sentadinho, o dia todo, e só se anima quando a gente conversa, daí a necessidade de ter alguém sempre ao seu lado, puxando assunto. A doença é assim, ela dá saltos. Uma hora tá bem e na outra, záz. E por mais forte que sejamos, a gente desaba.

Quando vem a noite e eu me deito ao seu lado, fico vigiando

seu sono. Vez em quando parece que ele se afoga, faz barulhos estranhos e eu sinto a presença da ceifadora, num misto de dor e de amor. A gente se olha e sorrimos uma para a outra. Momentos há em que eu sinto vontade de abraçá-la, para fugir do sofrimento. Mas ela se afasta. São horas noas, para nós duas. 

Quando clareia o dia ali estamos, lado a lado. A azáfama do

dia permite que eu esqueça um pouco sua presença, mas basta apagar a luz, e lá está, com seus olhos amorosos. É um duro aprendizado, mas vamos cumprindo.

Assim, enquanto não vem o toque, vamos saltitando, cantando, dançando, vendo futebol e compartilhando esse imenso jardim.



sexta-feira, 4 de novembro de 2022

O meu querido


O pai já passou por muitas fases do Alzheimer. Agora, próximo de completar 91 anos, está sem andar. Dar logos passinhos que levantam da cama de manhã já é bem difícil. Ele fica cansado e desaba. O jeito então é partir para a cadeira de rodas. Nela a gente pode circular pelo jardim, tomar sol, ir até o portão ver o movimento da rua, circular. Ele gosta, sempre foi rueiro. O resto do dia é sentadinho na poltrona. Ali ele briga com os cachorros, vê um pouco de televisão e principalmente ouve música. Trouxemos de casa todos os CDs que ele gravou ao longo da vida, com coletâneas de música sertaneja, a assim ele vai passar o dia.

Vez em quando ele se cansa de ficar sentado, eu acho. E fica rabugento. Começa a falar na sua língua klingon e tenta levantar. É um perigo, por isso estamos sempre de olho. Outro dia eu desviei o olhar por um segundo e quando virei lá estava ele de pé, agarrado na porta. É danadinho. Quando fica assim, enfezado e agitado o jeito é distrair. Minhas alternativas são cantar, ou dançar como uma Maricota.

Mas, tem outra forma que é mais legal. Quando ele fica muito brabo eu abraço ele com força e digo, enchendo de beijinhos: 

-Tu és o meu queridinho? Tu és o meu amorzinho? Tu és? Tu és?

É aí que eu ganho um belo de um sorriso. 

- Ahhhh, não – Ele diz, enquanto se enrosca em mim como um gato. Sabe que é meu querido.

E assim passou os dias, com muitas janelas de amor.


terça-feira, 6 de setembro de 2022

O pai e a alegria


É certo que a gente não é de ferro. Por isso, vez em quando eu dá uma infinita tristeza por perceber que a doença de Alzheimer está levando o pai, lentamente. Não é bolinho a gente ver a pessoa que a gente ama ir se apagar. São como tais das fases. Lembro que quando ele chegou aqui saía sozinho, ia ao mercado comprar seu pito, troteava pelo bairro "indo para casa", molhava as plantas, secava a louça, caçava carrapato, marcava os cocozinhos dos cachorros, sempre envolvido em alguma tarefa. Agora, ele já não quer saber de andar e passa os dias sentadinho em sua poltrona ou na cadeira de rodas, no quintal. É coisa que me angustia. Mas, vou aguentando.

Por outro lado, mesmo nesse contexto de perdas, há momentos que são de uma alegria estelar. Um deles é o momento de tirar-lo da cama. Espio na janela para ver se ele já acordou. Ele acorda devagar. Fica um tempão brincando com as cobertas. Quando, por fim, ele meio que senta na cama vejo que é hora de eu entrar em ação. Então, eu abro a porta do quarto, cantando: "bom dia, seu Tavares, o sol já nasceu lá na fazendinha"... E ele me olha, dando uma risada. Ele me reconhece. Provavelmente não como filha, mas como alguém em quem ele pode confiar. Ele se alegra e se agita, pronto para levantar.

Esse momento, esse único momento já vale pelo dia inteiro. Sei que muito pouco posso fazer por ele no que diz respeito à doença. Mas, tenho certeza completa de que ele sabe e sente que faço tudo o que é possível para que ele passe esse tempo na felicidade. Vejo isso também quando chego do trabalho. Eu ponho a cara na porta e digo: "cheguei, meu broto". E ele abre o sorrisão, como dizer "que bom!". E nos sintonizamos na alegria.

Cuidado e carinho é tudo o que é preciso...


terça-feira, 9 de agosto de 2022

O comunista



Trocar o pai de manhã é uma longa novela. Há todo um ritual para ele levantar da cama e depois para a limpeza corporal. Tudo feito com muita calma e muito conversê. É uma maneira de distraí-lo e ir fazendo o que precisa ser feito. Tirar a roupa da noite, dar o banho de gato ou de água, conforme o estado de humor, trocar as meias, passar o óleo de girassol pelo corpo todo para hidratar a pele, fazer o curativo da feridinha que apareceu nas costas, tirar a fralda. 

Feito isso, começa a parte de colocar a roupa do dia. Outro processo. Colocar a camiseta, a blusa de lã, a fralda limpa, a calça, as meias, o tênis. Tudo isso eu faço sempre avisando cada passo que vou dar. Agora vamos colocar a camisa. Agora vamos colocar a blusa, agora isso, agora aquilo... Nesse meio tempo, ele vai conversando e dizendo coisas na sua língua de cigano. 

Dia desses, lá estávamos nós, eu e a Clau, ajudando ele a se levantar e trocando a roupa. E ele falando, falando, falando. Começou a dizer foice, foice. 

E eu:

- Foice, que foice? A única foice que eu conheço é a foice e o martelo do comunismo. 

E ele assentindo com a cabeça. 

- Por que estás falando isso? Por acaso  tu és comunista?

E ele, muito rápido e firmemente:

- Euuuu sou!

Pois é, a fruta não cai longe do pé.


sexta-feira, 29 de julho de 2022

A força de viver



Meu pai tem Alzheimer há sete anos. Com a pandemia piorou um pouco porque a interação social parou. Mas, também sabemos que essa doença é assim mesmo, vai piorando. Não há melhora. Temos de ir nos reinventando. Há alguns meses a mobilidade dele deteriorou muito. Homem afeito a caminhadas, parou de andar. Mal consigo fazer com que ande até o portão, logo de manhã quando acorda. Depois, ele senta e não levanta mais até de noite. 

Como aqui em casa a vida acontece mais na parte de for a – almoços e encontros familiares - eu tive de encontrar alternativas para não deixar ele isolado no lado de dentro. Então, aluguei uma cadeira de banho – para a hora do banho – e uma cadeira de rodas para movê-lo para for a, no quintal, onde precisa tomar sol e interagir.

Pois foi só as cadeiras chegarem que ele se aprumou. A cadeira de banho ele abomina. Não senta de jeito nenhum. Na primeira vez fez uma balbúrdia tão grande que tivemos de desistir. Hoje, em mais uma tentativa de dar banho sentado, ele colocou toda sua força nos braços e se levantou sozinho. Não quer saber de sentar na bichinha. O jeito foi levá-lo até o box, caminhando mesmo. E ele se foi, bem contente, chegando até a brincar com a água quentinha. Xô cadeira, não tô morto, parecia dizer. 

Já a cadeira de rodas ele só aceita para ficar ao sol. Eu o levanto e ele vai andando até o quintal, lá ele senta na cadeira e fica o tempo todo empurrando ela com os pezinhos. Na hora de voltar pra dentro, tem de ser andando também. Seu Tavares é porreta mesmo, se recusa a se deixar vencer.  Observo isso com profunda ternura. Meu amado pai, que sempre foi um caminhador, enfrenta com valentia mais essa dificuldade. A parada é dura pra todos nós, mas enquanto ele tiver força, vai querer andar. E que bom que seja assim. 

Nessa doença o lance é esse. Quem tem de se adaptar é a gente que cuida. Eu me alegro de ver a força da vida que segue forte no pai. Ele não se entrega fácil não. Que siga assim, meu brotinho... 


segunda-feira, 13 de junho de 2022

As noites com o pai


Durante muito tempo o pai dormiu sozinho. Ele acordava bastante e vinha bater na porta do meu quarto de madrugada. Eu o levava de volta e assim íamos. Um pouco antes de se desatar a pandemia eu decidi me mudar para o quarto dele. Ele havia caído e eu me dei conta que não dava mais para deixá-lo só. Assim que estou ali, acampada. Nesses dois anos foram muitas as fases e as noites eram turbulentas. Agora, já faz algum tempo que ele está tranquilo, e dorme quase a noite toda. Um milagre. Mas, ainda assim, eu sigo ali, porque ele desperta pelo menos umas duas vezes, e estar ao seu lado faz a diferença. 

Eu sinto quando ele começa a se mexer lá por volta da uma hora. Ele se destapa e senta na cama, o rosto crispado, as mãos em luta, como se estivesse andando no inferno. Aquele despertar na madruga é carregado de muito medo. Acho que eles ficam muito confusos quando saem do sono. Não sei, algo passa. Então, eu também sento na cama, pego a sua mão e digo: "tá tudo bem, querido, eu estou aqui". Ele abre os olhos lentamente, me enxerga e sorri, saindo daquele estado abissal. O medo se desfaz e a expressão que vejo no rosto dele é de pura alegria. Ele fala algumas coisas na sua língua de cigano, canta, resmunga e volta a dormir, apertando bem a minha mão, na certeza de que pode atravessar qualquer deserto. Eu estou ali.

Quando dá cinco horas, de novo. Ele senta na cama e começa a puxar as minhas cobertas, fazendo um bolo, os olhos apertados, com aquela expressão de medo e desespero. Eu falo com ele e digo que ainda é muito cedo, que dá para dormir mais um pouco. Ele luta com os cobertores até que abre os olhos e me vê. – Ah, tu tá aqui? – ele diz, abrindo um sorriso luminoso. "Sim, meu brotinho, tô bem aqui e não vou a lugar nenhum, tá bom?". Devagarinho ele vai descendo o corpo, colocando a cabeça no travesseiro para mais algumas horas de sono. Não sem antes espiar pra ver se sigo ali mesmo. Ele se sente seguro.

Acho importante estar sempre por perto quando ele acorda, porque a impressão que tenho é que ele sai de algum emaranhado desesperador. E o rosto familiar o recupera para a vida. De manhã, eu fico espiando ele, esperando que desperte. Porque é sempre igual. Ele senta e começa a amassar as cobertas, assim como fazem os gatos, sovando. Quando por fim vejo que ele abriu os olhos eu entro cantando: "Bom dia, o sol já nasceu lá na fazendinha', acorda o bezerro e a vaquinha, acorda o seu tavarinho"... e vou fazendo macaquices como uma Maricota maluca. Não dá para descrever a alegria que se desenha no seu rosto. Ele reverbera em riso e eu faço cosquinhas... "Bora pular da cama, seu Tavares, bora tomar café"... Aí começa toda a função da troca de roupa... que é outra história...

Outro dia um amigo me disse que agora que o pai já dorme bem à noite eu podia voltar para o meu quarto, para a minha vidinha de antes. Mas, não dá. Esses despertares na madrugada são assustadores. Ele realmente fica desorientado. Um rosto amigo e sorridente é fundamental para que ele saia daquele estado de abismo e possa voltar a dormir, serenamente. E assim vamos vivendo nossa aventura, aprendendo sobre confiança e sobre belezas.



segunda-feira, 23 de maio de 2022

Sábado Santo



Sábado é um dia que eu tiro pra mim. Os cuidados com o pai me exigem demais e a gente precisa de uma janela para oxigenar a existência. A minha é no sábado. Eu acordo bem cedo, como sempre, e enquanto a casa toda dorme eu ajeito o cantinho do pai que fica na sala. Arrumo as mantas, passo um pano com cheirinho bom, tiro o pó, deixo tudo ajeitadinho. Depois, tomo café e leio um pouco até umas oito e meia. Tenho de aproveitar o silêncio. Aí é hora de começar a me preparar para ir para a rádio, onde tenho um programa das onze ao meio dia. Sempre vou cedo para arrumar a rádio, preparar tudo. 

Geralmente o pai dorme até às 10 horas, mas ontem ele acordou antes de eu sair. Aí não tem escapatória. Tenho de ajudar ele a levantar. Arrumo as roupas, dou banho de gato – que é que é possível nesse frio -  e trago para tomar café. Nesse ínterim o resto do povo já levantou então entrego o pai para eles e vou para a rádio. Pedro e Renato ficam no comando. Eu pego a bicicleta e saio na pernada. A rua resplandece ao sol. Os vizinhos estão sentados nas calçadas, uns tomando mate, outros só lagarteando. Bom dia. Bom dia. Bom dia. Vou passando e deixando sorrisos.  

Na rádio a manhã passa voando. O programa tem uma hora, mas conseguimos trazer sempre um bom conteúdo. Terminada a função é hora de ir para o Bar do Zeca, tradição desses 16 anos de Rádio Campeche. Na beira da praia, com os amigos queridos. Rola solta a cerveja e sempre beliscamos um peixinho. Tenho amigos especiais. Eles se importam comigo e com a  minha vida, então é nessa hora que abre-se a assembleia para buscar soluções para os meus problemas cotidianos. Surgem as ideias mais mirabolantes. Rimos muito. É bom demais. Eu os amo.

Lá pelas três horas tomo o rumo de casa depois destas horas estelares regadas à cerveja. Chego e já me espera o pai. Pedro e Renato saem e eu fico. Tudo recomeça. É hora de ver os calouro do Raul Gil e depois preparar a janta. Então, vem a hora de dormir e todo o ritual de arrumação do seu Tavares. Feito isso, ele se embola nas cobertinhas e eu fico ao seu lado, velando até ele dormir. Quando ele ressona é minha hora de embolar na quenturinha... 

E assim termina mais um sábado santo, um dia ordinário, como diz Adélia Prado, mas bunitu dimaisdaconta, e eu agradeço!


terça-feira, 26 de abril de 2022

O banho


Quem cuida de velhinho com Alzheimer sabe, o banho é um momento difícil. Mas, a gente vai aprendendo. Demorei muito pra entender que o chuveiro jamais pode ser usado, eles sentem medo, um medo profundo. Então, tem de usar o chuveirinho e ir molhando devagar, desde o pezinho até chegar ao pescoço. Mas, até chegar ao box dá um eito. 

Na fase atual do pai ele está com muita dificuldade de andar, então já não consegue mais sair correndo. Eu procuro levar ele para o banheiro logo que acorda, quando ainda está meio atordoado, despertando. É só ver que ele sentou na cama, já chamo o Renato, ele o ergue e vamos levando para o box. Aí é só lavar. Ele briga um pouquinho, mas logo relaxa.

Mas, se ele desperta bem despertadinho, a coisa complica. Ele finca pé e o jeito é dar o famoso banho de gato. Eu desenvolvi uma boa técnica de limpeza, tem dado conta, mas, claro, nada substitui um bom banho bem demorado. Hoje, a parada não deu certo. Cheguei atrasada e ele já estava com toda a pilha.

- Então seu Tavares, vamos tomar um banho agora?

- Olha, no momento, não. Muito obrigado. 

Hahahahaha, depois dessa, nem pensar... Seu Tavares é homem de opinião!


quinta-feira, 5 de maio de 2022

O SUS e a atenção aos velhos


 

CARTA ABERTA AOS CONSELHEIROS DA SAÚDE DE TODO PAÍS

Na sistemática luta que travamos pelo aperfeiçoamento do nosso SUS há um tema que precisa de mais discussão: a velhice. Vivemos no país um aumento cada vez maior do número de velhos, e doenças como a demência – nos seus mais variados tipos – tem sido um desafio para as famílias que precisam conviver com ela.  

Faço parte de um grupo no facebook de familiares de pessoas com Alzheimer e uma das coisas mais impressionantes são os depoimentos sobre a dificuldade que é encontrar um médico que realmente saiba o que fazer com o velhinho. No geral, as famílias que não têm outro recurso a não ser o SUS enfrentam toda a tragédia que é não ter o sistema funcionando, com falta de profissionais, filas e tudo mais. E aí, o atendimento acaba também prejudicado. Até porque muitos dos profissionais que estão nos Postos não têm muita prática com a coisa da demência. Então é difícil. Como é comum na formação do médico brasileiro, a lógica é tratar a doença e não observar o aspecto da saúde na sua totalidade. Assim, um problema básico do velho com demência, a falta de sono, por exemplo, é tratada com remédios para dormir, sem se levar em conta toda a situação que envolve a demência. Isso acarreta, frequentemente, um sem número de problemas. Grande parte desses remédios causa ainda mais confusão mental e não induz ao sono.

Outro sintoma, como as alucinações, são tratadas com antipsicóticos, o que é um erro, pois acaba piorando a situação na maioria dos casos. Isso sem contar os efeitos colaterais de cada um dos remédios, que no velho com demência parecem se fazer todinhos, quando não dopam completamente, impedindo o velho de ter uma vida em família.

Nesse sentido, garantir que o médico do posto tenha uma capacitação para o trato desses pacientes é fundamental. Ou, melhor, que as equipes dos Postos de Saúde passem a contar com um geriatra, também capacitado para as demências, que hoje parecem ter aumentado significativamente de número. Essa é uma batalha necessária para garantir verdadeiramente uma melhor qualidade de vida ao velho com demência.

Outra questão envolve os cuidadores. Como as famílias são pequenas, em geral é sempre muito sacrificante para quem assume o cuidado. No caso das famílias empobrecidas geralmente alguém precisa parar de trabalhar ou de estudar para assumir o cuidado e esta é uma situação que esgota demais a pessoa, que passa também a adoecer. Até porque um a menos trabalhando significa ainda mais dificuldade para reproduzir a vida.

Seria muito importante que o SUS pudesse oferecer cuidadores capacitados para que as famílias pudessem contar com a possibilidade de solicitar um profissional para quando precisam descansar ou fazer alguma atividade de lazer. O cuidado de 24 horas arrasa com as pessoas. Alguns familiares comentam que deveria haver creche para idosos, onde eles pudessem ficar durante o dia, mas isso não funciona bem para o velho com demência. Esse tipo de doença exige uma rotina fixa e é impensável para um cuidador deslocar o doente para outro ambiente, acordá-lo em determinado horário e coisas assim. Ter um atendimento domiciliar é extremamente necessário. Muitas vezes um dia de descanso repõe as energias de quem vive um carrossel de emoções a cada 24 horas.

Estas são apenas algumas ideias para a discussão, afinal, parece cada dia mais necessário que o Estado deva garantir políticas públicas que atendam às demandas dos velhos com demência e suas famílias. Já basta termos de vivenciar a romantização da velhice, como se fosse uma “melhor idade”. Não é. E para as famílias empobrecidas  - que conformam a maioria  - a situação é ainda pior. No geral, os cuidadores são pessoas que também estão entrando na fase da velhice e o desgaste acaba sendo maior. São velhos cuidando de pessoas mais velhas. E os dramas envolvendo a doença bem como a impossibilidade de lidar com ela vai constituindo almas em escombros, também incapacitadas para o cuidado. O sofrimento é duplo: enfrentar a doença dos pais ou avós e desenvolver sofrimentos mentais inexprimíveis.

É tempo de o SUS abarcar esse grupo e é momento de os conselheiros de saúde começarem a pressionar para que também esses serviços sejam prestados pelo SUS, com a qualidade necessária. Envelhecer no capitalismo – sendo da classe trabalhadora - é ter de enfrentar essa fase da vida com muito mais dificuldade que a fase adulta – quando da exploração pelo trabalho. Porque o velho é visto como um inútil, não produtivo, o que torna tudo ainda mais difícil.

Que o SUS avance para o cuidado com os velhos, dementes ou não.


quarta-feira, 13 de abril de 2022

Ouvir os velhos



É muito comum como as pessoas mais novas evitarem o convívio com os velhos. Como eles já não fazem mais parte do mundo produtivo, deixa de ser alvo de interesse. Não são úteis, não tem nada a dizer, já eram, estorvam. Mesmo aqueles que criaram coisas incríveis quando estavam na ativa, ou que protagonizaram lutas, ou que foram importantes em alguma medida para a história do seu lugar, sendo escanteados sistematicamente. Os mais jovens sempre acreditam que o mundo começou com eles.

Tive o sorte de, desde menina, ter convívio com velhos. Dos meus avós foram sempre a espremer histórias, queria saber tudo, do passado, da família. Depois comecei a me voluntariar para ajudar nos asilos de São Vicente de Paula, indo visitar, conversar, limpar os velhinhos. E sempre notei que uma boa prosa era o que mais alegrava cada um deles. Eles gostavam e eu também.

Adulta, passei um tempo morando com meu vó, e também era eu que todos os anos fez a longa travessia Rio Grande do Sul/ Minas Gerais com ela para que ela pudesse ficar um tempo com a filha, minha mãe. Assim que adquiriu esse hábito de sempre levar em consideração os velhos e lhes dar muita atenção. Longas conversas sempre estaram no menu, foram em casa ou nas intermináveis horas no ônibus.

Agora com o pai morando comigo, retomei essa prática. Nos primeiros anos do Alzheimer ele ainda se lembra de coisas, e eu ia puxando. Passados quase oito anos de que ele desenvolveu a doença já não consegue se lembrar de quase nada. Suas frases são desconexas e às vezes nem consegue pronunciar bem as palavras. Ainda assim temos longas prosas. Ele sentadinho na sua poltrona ou tomando sol no alpendre e eu a tagarelar fazendo circular o companheiro. Conversamos muito. Conto sobre tudo o que passa e explica como anda a política e tudo mais.

Eu digo que ele fala língua de cigano, porque às vezes parece incognoscível, mas, por sorte, sou versada nela. Então, manter o papo pela tarde afora e também na hora de dormir. Sempre que o observo meio apático lá vou eu puxar a charla. E ele sempre reage bem. Cruza a perninha, fica me olhando e respondendo a tudo, na língua dele é claro.

Como é que foi? Mas, como? Quem falou? E o senhor, o que acha? Viste aquilo? Vou te contar uma boa... Mas, oooolha... A partir daí vou desenrolar o novelo da comunicação. Observo que isso significa muito pra ele, porque demonstra que tem alguém atento, alguém ligado, alguém se importando de verdade, ouvindo de verdade. Essas experiências são sensacionais porque nos mostram que, no fim e ao cabo, isso vale para toda a vida, toda pessoa. Debruçar-se sobre ela, olhar nos olhos, estar atento e verdadeiramente em comunicação. Tenho sorte em ter aprendido isso...



quarta-feira, 6 de abril de 2022

Etarismo ou a de ser velho no capitalismo



Tenho observado muita gente falando nas redes sociais sobre o lance da velhice e sobre o direito de se parecer velho. Li textos e vi vídeos de mulheres discutindo a beleza de envelhecer e de seguir o rumo da vida, libertas de tintas e estereótipos estéticos. Embutido discurso, claro, a crítica de um mundo no qual o velho é totalmente esquecido e dispensado de atuar como sujeito criador. Ao velho, diz, é relegado o papel passivo de aposentar e abrir espaço para os jovens. E, diante disso, faz-se essa defesa do direito de envelhecer com dignidade, aceitando o processo.

Quero me permitir um pitaco.

Já faz sete anos que cuido do meu pai, que é velho e tem a doença de Alzheimer. Posso afirmar sem medo de errar que ser velho. E ser um velho doente, mais ainda. Já ser velho, doente e empobrecido, aí é o inferno de Dante. Então, creio que há que se ter muito cuidado com esse elogio da velhice desvinculado da condição de classe.

Ficar velho é condição natural da vida. Mas, a condição de classe da pessoa determina situações muito diferentes. Tiro isso por conta da experiência com o pai. Faço parte de grupos de familiares que tem Alzheimer e observo o drama das famílias de trabalhadores empobrecidos para dar um mínimo de qualidade de vida para seus velhos doentes. É uma batalha inglória tanto para quem cuida quanto para quem é cuidado. Como as famílias hoje são pequenas e não há gente suficiente para cuidar, já que o cuidado é de 24h. Daí é recorrer comum a remédios que dopam ou asilos. Isso não é falta de amor. É falta de condição.

Hoje fica mais velho que há décadas passadas. E com tanto de vida por sentimos necessidade de ser criador, seguir contribuindo com a sociedade. Mas, nos pedem que saiamos, para dar lugar aos jovens. E, apesar de todo esse discurso sobre a "terceira-idade", "melhor idade" e o escambau, o velho é jogado para o esquecimento. Se ele não se mantiver ligado nas redes sociais, fazendo dancinhas ou qualquer outro espetáculo, está para a, esquecido. Não importa se foi alguém que fez coisas importantes, na vida, no trabalho, na cultura de sua comunidade. Se ele saiu, pronto. Esquecido, o que está por fazer.

Outro dia me surpreende vendo um ator famoso, lindo e jovem, ser escalado para fazer um velho num filme. E todos os atores velhos que estão aí esperando um papel? Não importa. São velhos. Não dá mais. Então, caracteriza um novo para ficar velho. E se o ator velho, que já era grande, faz um papel pequeno ou bobo num filme, lá vem críticas... Não há paz para o velho. O velho que vá pra casa descansar. Bueno, há velhos que conseguiram juntar grana e pode curtir a aposentadoria, viajando, fazendo coisas legais. Mas a maioria dos velhos – que são da classe trabalhadora – não consegue juntar dinheiro para viagens ou curtição. Como aposentadorias minguadas servem para comprar remédios que vão tratar doenças adquiridas nessa vida de sacrifício. O capital tira tudo, a vida produtiva e depois a alegria da aposentadoria. Essa é a realidade. Assim como coisas são.

Então, por isso que ao falar sobre a velhice a gente tem de pensar sobre o modo de vida que produz essa sociedade egoísta, produtivista, capitalista. O velho, nesse mundo, está fadado ao sofrimento. Porque ele já não produz mais para o capital, porque ele não é útil para mais ninguém, porque ele vira um incômodo. 

Não é de espantar então atitudes como a do nosso querido Flávio Migliaccio, ou Walmor Chagas, ou agora o lindo Alan Delon. O velho, doente e incapacitado, se vê e é visto como um estorvo. Se é rico ainda consegue decidir sobre sua vida/morte, se é pobre não tem chance alguma. Nem nesse momento. Nem nessa hora noa. 

Ainda tem muito estrada para andar nesse tema da velhice. Mas se a gente não pensar primeiro sobre a necessidade urgente de ter uma sociedade capaz de lidar com o velho, sem comiseração, mas com respeito a tudo que ele foi, continuar sendo um fardo pesado envelhecer. E quando digo envelhecer não tem nada a ver com a gente não pintar mais os cabelos, mas enfrentar toda a decrepitude que a idade traz, inclusive a intelectual, e o abandono que segue. Saber que ter cuidado quando essa hora chegar pode mudar muito nossa relação com a velhice.

Mas, hoje, como o mundo é, é impossível ter alguma esperança. Apenas mesmo a angústia de saber que chegou a hora em que nos deixando no meio do caminho, abandonados e sós.

Com o meu pai, vem mudando minhas práticas e aprendendo muito sobre esse processo. Mas, cuidar de um velho não pode significar a morte do jovem. Há espaço para os dois. Espaços de vida, de alegria e de fruição. E, no capitalismo, "meu amigo", isso não vai acontecer.


quarta-feira, 23 de fevereiro de 2022

Seu Tavares faz 90 anos


Outro dia, enquanto vínhamos do quarto para a cozinha, no passo lento e inseguro, falei com o pai:

- Seu Tavares, sabia que o senhor vai fazer noventa anos? 

E ele, me olhando espantado, abriu um sorriso e disparou, incrédulo:

- Capaz?

Pois é. Sem nem a gente saber como, ele chegou aos 90. Tem sido um caminho bem difícil desde os 86 pra cá. A doença de Alzheimer é muito cruel e vai incapacitando a pessoa, assim, devagarinho. Lembro que quando ele chegou aqui se deve ao mercado sozinho, ligeirinho e serelepe. Agora, os passinhos são trôpegos e ele precisa se amparar. Alternar momentos de alheamento com lucidez, mas no geral passa bem os dias. Dou atenção 24 horas, converso sobre tudo, explicando tim-tim por tim-tim as coisas da casa, os problemas que vivencio, como notícias que encontraram na TV, nos filmes. Falamos sobre o clima, sobre os animais, sobre política, sobre tudo. Procuro não tratá-lo como criança, mas como uma pessoa adulta que precisa saber o que se passa. No geral ele é bem curioso, tudo quer saber.

No mais das vezes ele não consegue pronunciar como palavras certas. Brinco que ele agora fala a língua do Cheewbaca, por estar vivendo muito tempo entre os Wookiees. Ele sempre ri quando eu falo isso. Mas, o fato é que assim como eu entendo o Cheewbe, também entendo tudo o que ele diz. Responda a todas as suas perguntas e ele fica bem satisfeito com as respostas. Nós passeamos bastante pelo quintal, tomamos sol, comemos muita fruta do pé, falamos sobre Quaraí e Uruguaiana, cidades que ainda habitam sua memória, e cuja lembrança sempre suscita uma expressão de grande contentamento. Estamos sempre conversando e a Clau, que é a mão que fica com ele de vez em quando eu poder dormir ou trabalhar, faz o mesmo. Ela também entende a língua do Cheewbacca, ri com ele, e isso é muito bom.

Agora que a doença vai avançando ele tem muitas infecções urinárias e isso acaba debilitando seu corpinho já tão frágil. A última delas fez com ele que não tinha a manha de caminhar. Só agora, nos últimos dias ele voltou ao andar, e foi uma alegria, porque pensei que não voltaria. Ele é valente e teimoso, gosta de fazer tudo sozinho. Eu dou área, ficando por trás para amparar se necessário.

No final do dia ele toma um copo de vinho enquanto tomamos uma cerveja gelada e assim vamos indo, nos dias que se repetem. Completou hoje 90 voltas em torno do sol. Uma tremenda aventura, quase um século. Tem vivido plenamente, de acordo com seus princípios de honestidade e honra. Trabalhou muito e agora, já sem as imposições da moral, apenas frui da existência. O que faço, como filha e parceiro, é garantir todas as condições para que encerrem sua extraordinária caminhada na paz e na alegria. O maior presente que ele me dá é isso justamente: ouvir o seu riso. De minha parte, sigo aqui, segurando sua mão... e vamos caminhando...


segunda-feira, 14 de fevereiro de 2022

Quando briguei com o pai


Tive a minha primeira grande briga com o pai em 1977. Ele já tinha partido para Minas Gerais e eu não o perdoava por ter nos deixado sozinhos em São Borja passando tudo o que passamos. Um ex-sócio nos acossando e tentando nos tirar tudo o que tinhamos e a vida da gente se esvaindo. Naquele mesmo ano, logo após a partida do pai, o meu avô Dionísio morreu e eu não conseguia me conformar com tanta desgraça. Eu culpei o pai e disse que nunca mais iria falar com ele.

O pai tinha ido embora para Minas Gerais porque em São Borja não tinha chance alguma de conseguir um emprego. Ele já tinha passado dos 40 anos e ainda tinha a marca de ter sido "cupincha" do Jango, o presidente deposto pelo golpe. Depois que a Rádio fechou, por conta da censura do governo golpista, ele já montou um pequeno negócio com um amigo. O negócio falira e não tinha o que fazer. Para nós, foi um baque. A vida ruía e eu não me conformava que ele tinha nos abandonado. Naqueles dias terríveis era esse sentimento, mas na verdade ele partiu para que nós pudéssemos ter um futuro.

Depois que o vô morreu vimos o oficial de justiça chegar à casa e ir levando tudo o que havia dela dentro. O ex-sócio do pai o enganador fazendo assinar um documento no qual ele entregava até a nossa casa. Começamos então a nos preparar para ir para Minas. Lembro que minha mãe decidiu ir até a biblioteca pública da cidade para doar todos os nossos livros. "Pelo menos os livros ele não vai levar", ela dizia. E para lá partiram caixas e caixas dos livros amealhados por toda uma vida. Acho que nunca corei tanto na vida como naquele dia. Chegou um momento em que nem cama tinha, dormitório sobre nossas poucas roupas. Quando foi para Minas, na final de janeiro de 1978, só levamos algumas mudas de roupa e a máquina de costura da mãe. Mais nada. Toda uma vida se acabava.

Lembro que fez a viagem certa de que ao chegar a Minas iria buscar meu caminho, pois não ia perdoar o pai. Fomos de São Borja a Porto Alegre e de lá até a estação da Luz em São Paulo. De São Paulo seguimos para Belo Horizonte, carregando nossas malas e a máquina. Chegando à capital mineira pegamos um trem para Pirapora, destino final. Lá pelo meio da viagem o vagão onde estávamos pegou fogo. Foi um furdunço e tivemos que mudar de vagão. Lá fomos nós carregando a toda tralha e ainda tivemos de terminar a viagem em pé, no corredor, porque não havia lugar. Foi uma odisseia.

Lembro como se fosse hoje aquela manhã de fevereiro quando o trem parou em Pirapora. Ainda estava na correria de tirar as malas e a máquina de costura do vagão quando vi o pai, nos esperando na estação. Estava magrinho e pálido, com uma roupa puída, retrato acabado da dor da ausência de mais de um ano. Então, todo o rancor que eu já tinha alimentado naquele ano se apagou. Corremos todos para os seus braços, esquecidos de toda a dor. E tudo o que eu já tinha ensaiado para dizer foi abandonado. A gente precisava de cuidado, mas ele também. E a gente recomeçou, agora todo mundo junto.

Esta história me veio assim porque quis o destino que o pai viesse terminar a vida aqui, comigo. Tenho cuidado dele, pego pelo Alzheimer, há seis anos. E são incontáveis as vezes que eu olho ele e vejo a imagem do homem perdido e só, que ele apresentou na plataforma da estação. E como naquele dia, eu abro os braços e o aconchego junto ao coração. A diferença é que naquele fevereiro nós partimos para a vida, e, agora, daqui, o caminho é o fim. Não é fácil acordar todos os dias vendo meu pai desvanecer. E ali, bem pertinho, a ceifadora à espreita, me encara sem piedade.


terça-feira, 25 de janeiro de 2022

O pai é Highlander



Um dia antes do Natal o pai deu um susto daqueles. Simplesmente não acordou. Passou todo o dia 24 dormindo. Não havia nada que ele fizesse abrir os olhos. Não saiu da cama. No dia seguinte acordou, mas passou o dia inteiro dormindo no sofá. No final da tarde não aguentei, e lá fui com ele pra UPA, pra ver se algum médico disse o que fazer. Chegando a UPA encontrei uma fila de 50 pessoas. "Vai demorar", disse o atendente. não decidi não arriscar, pois já era muita gente com sintomas de Covid. Voltei pra casa. Nos dias que se seguiram consegui ajuda de uma amiga médica. Veio vê-lo. Mas, não sabia o que podia ser. Fizemos exame de urina para ver se era infecção urinária. Não era. Coração, bom. Pulmão, bom. Pressão, boa.

O diagnóstico mais provável era do avanço da doença, o tal do Alzheimer. E, de fato. Depois daquele dia inteiro dormindo o pai perdeu a capacidade de caminhar sozinho, desequilibrando o tempo todo. Caiu da cama, quase quebrou o nariz. Também ficou mais difícil trocar a roupa, ajeitar pra dormir, passou a não conseguir mais comer sozinho, todo aquele que ficar "pior", sabido, mas nunca esperado. Um baque tão grande que me derrubou também. Fiquei doente. Não sei se foi Covid, se foi esgotamento, gripe, sei lá. Juntou a tristeza com a impotência. Desabei.

Agora estamos aí nessa nova fase. Mais dependência e o pai mais distante, perdido em um mundo cada vez mais restrito, sem mais gracinhas. Ainda assim ele é valente. Insiste em sair andando, coisa que ama. E, ontem, para minha surpresa, conseguiu fazer todo o caminho do alpendre até o portão, sem desequilibrar. Eu deixo ele ir, embora fique do lado, para o caso de amparar. Olho pra ele e digo: tu é highlander mesmo, né quiridu? 

Eu finjo que acredito nisso. Mas, sei que não é. Vou me preparar sempre para o pior, me despedindo cada dia. É uma doença danada de ruim. Mas, enquanto der, vamos seguindo... e como dizem os hermanos "por si acaso", protejo a cabeça.. enquanto ela não sair do pescoço, ele vive. Highlander.


terça-feira, 25 de janeiro de 2022

O pai


Quando eu pensava que o seu Tavares não faria mais gracinhas ele mais uma vez me surpreendeu. Hoje, depois do banho da manhã ele veio pra cozinha para tomar café. Eu trouxe até a mesa e mostrei o café já pronto. Junto, um pratinho com pãezinhos e ovo, preparados por Renato. Tirei o guardanapo e mostrei.

- Olha os pãezinhos, pai.

E ele erguendo os olhos para o céu e juntando as duas mãos em prece, largou um bem sonoro e suspirado:

- Graaaaaaaaaaças a deus!

Era como se estivesse mesmo faminto e não esperasse tamanha graça...

Esse seu Tavares... me sai com cada uma!


terça-feira, 28 de dezembro de 2021

Do que fica na memória

 


No Alzheimer a pessoa perde a memória de fatos recentes e, depois, gradativamente, do passado. Mas, ao que parece, algumas coisas ficam, como lampejos da vida vivida. O pai há muito tempo não me reconhece como filha. Ele me tem como referência, mas é porque estou sempre presente desde que ele acorda até quando dorme, ou mesmo quando desperta de noite. Ele se vira e estou ali. Ele sabe que eu sou a pessoa que ele vai encontrar o tempo todo. Mas, se eu falo com ele e chamo de pai, ele ri.

- Pai, pai, não sou teu pai.

Por outro lado, o nome ele não esquece. Se eu quero chamar sua atenção basta eu dizer: "Seu Tavares!" e ele já se apruma. Outra palavra que faz o olho dele brilhar é Uruguaiana, sua cidade do coração. Vez em quando se lembra de Quaraí, a cidade natal, mas é Uruguaiana que faz o rosto se abrir em alegria. Eu até já fiz uma lista de músicas gaúchas que trazem o nome Uruguaiana, ele escuta e diz: ó, ó. Fica como um menino.

Por enquanto também não se esqueceu de fumar. Quando a gente oferece um cigarrinho, ele escancara o riso e diz "ah, mas que coisa querida", e fica sentadinho na sua poltrona, rindo com o Rolando Boldrin, sorvendo a fumacinha.

Seu Tavares é um fofo...


quarta-feira, 24 de novembro de 2021

Os zoínhos do pai


A hora de fazer o almoço aqui em casa é sempre uma espécie de festa. Se for o Renato quem cozinha, assim que as panelas começam a se mexer já começa também a música, no geral coisa bem boa: Paulinho Pedra Azul, Milton Nascimento, Expresso Rural, Grupo Engenho. Se for comigo a parada aí a música muda um pouco, gosto de ouvir os Fevers, Renato e seus Blue Queps ou os clássicos gaúchos. De qualquer forma, a música é de lei. O pai gosta de tudo. É fato que as que ele mais curte são as que falam de Uruguaiana. É só o cantor falar a palavra Uruguaiana e ele olha pra mim, sorrindo. 

É tempo também da tacinha de vinho que ele toma diariamente, golinho a golinho, enquanto briga com os cachorros. No geral ele fica sentado na poltrona, vigiando a gente. Qualquer barulhinho na geladeira ele espicha os zoínhos, observando se não tem algum petisco pra ele beliscar. Assim que temos de ter sempre à mão um ovinho de codorna, uma azeitona, um pedacinho de queijo. Ele marca cerrado. E se a gente estoura uma geladinha ele também quer. Fica ali, como se fosse o Vigilante Rodoviário, até que a última boca do fogão se apague. E, se descuidamos, ele mete a mão no pirex onde colocamos os legumes e manda bala. 

Quando tudo fica finalmente pronto ele senta e come como um rei. O apetite é perfeito. Encerrado o almoço, tem de ter um docinho e o cigarrinho pra pitar. Só depois dessa jornada ele senta no alpendre e tira um cochilo. Coisa rápida, os olhinhos cerrados, até que qualquer possível barulhinho suspeito na cozinha o desperte, à postos para novas comilanças. 


domingo, 7 de novembro de 2021

O pai


 

O Alzheimer é doença triste, porque, ao fim, não tem cura. Não tem um remédio, nem terapia, nada. Tudo é paliativo e a sentença é cruel: as coisas só vão piorar. Então, cada fase que a pessoa vive nunca é o pior da coisa. O pior sempre está por vir. Penso que isso é o que é mais duro de aceitar. Até porque não somos um tanque de guerra e, vez em quando, fraquejamos. Há que dispender muita energia para se manter firme, alegre e propositiva. Momentos há que tudo o que queremos é desabar. Mas não dá. E esse movimento de se manter de pé, exige.

Mas apesar de tudo isso, há também os momentos de puro encantamento que, penso eu, são os que ficarão na memória, lembrados sempre com ternura infinita. Emociona-me demais o nível de confiança que o pai põe em mim. Ele simplesmente se entrega, sem receio algum. Ele simplesmente sabe que de mim não virá nada de ruim, só de bom. E mesmo quando ele fica irascível, como na hora de trocar de roupa, ele sabe. 

Todas as noites é o mesmo ritual. Tenho de fazer mil e uma peripécias para levá-lo para o quarto na hora rotineira. Assistimos ao jornal, à novela, e depois, caminha. Lá, tenho de deixar ele se ambientar. Ele anda pelo quarto, mexe em tudo que há, revira cama, o diabo. Depois vem a hora de trocar a roupa e colocar a fralda limpa. Aí há que se agarrar com todos os santos. Eu distraio ele o mais que posso e quando ele finalmente decide sentar, eu tenho que puxar, num movimento rápido, a calça, porque ele se recusa a tirar.  Aí ele senta, mas fica xingando até a minha última geração. Briga, reclama, manda alguns tapas — dos quais me esquivo como uma ninja — e chora de mentirinha, pra me compadecer. Eu vou deixando ele fazer tudo isso ao mesmo tempo que, conversando, tiro a calça, a fralda suja e a sandália. Ponho a fralda limpa e preparo para a segunda parte que é fazê-lo levantar, para realizar a limpeza das partes.  Aí valei-me, São Pancrácio! É a terceira grande guerra mundial. Feito tudo, ele se acalma. Eu beijo sua carinha sapeca e digo:

- Pai, tu sabes que eu faço tudo isso porque eu te amo, né?

E ele, com cara de surpresa.

- Mas é claro que eu sei, ora bolas...

terça-feira, 28 de setembro de 2021

As aprontações do pai



Nos últimos tempos o pai tem dormido bem pela manhã. Dá uma acordada lá pelas seis, quando eu levanto, mas logo volta a dormir. Só quando tenho algo importante pra fazer é que ele resolve acordar cedo, comigo. Parece que ele adivinha. Eu não digo nada, mas é só pintar algo que exija minha mais profunda atenção e lá está ele. Hoje foi assim. Tinha o compromisso de fechar um texto e deixei para a manhã, que é quando estou mais focada. Pois nem deu seis horas e ele já estava de pé, mexendo em tudo pelo quarto. Tentei fazê-lo voltar a dormir, mas não deu resultado. Vencida, tratei de deixar pra lá o trabalho e começar as tratativas do levantar. Conversinha, banho, conversinha, colocar a fralda, conversinha, vestir, conversinha, levar para o café. Depois, o café. Uma boa novela. 

Lá pelas oito e meia as coisas estavam acalmadas. Dei um cigarro e comecei a ajeitar o cenário para começar a trabalhar. Ele, como sempre, inquieto, andando pra lá e pra cá, numa briga com o cachorro. Ele levanta da poltrona, o cachorro sobe. Aí ele quer voltar e o cachorro não deixa.  Um roteiro repetido milhares de vezes. 

Por fim, começou com o vai e vem até o portão. Eu na mesa da cozinha, escrevendo, mas com um olho vigiando a caminhada através da janela. Ficou assim um tempo, então parou do lado do varal de roupas que eu havia colocado ao sol. Segui escrevendo, observando pelo rabo do olho que ele estava ali, bem em frente à janela, mexendo nos grampos de roupa. Segui entretida até que notei que ele estava muito paradinho, quieto demais, parecia nem estar mais mexendo com os grampos, mas seguia ali, ao lado do varal. Continuei meu texto.

Então, deu aquele estalo. Quietinho demais. Eu continuava vendo ele da janela, mas estava muito parado. Levantei correndo e fui lá fora ver o que passava. Pois ele estava ali mesmo, paradinho, com a mão segurando firme no varal, mas completamente adormecido, quase ressonava. O danado dormia em pé. Levei um baita susto, porque poderia ter caído. Acordei o querido e ainda levei um baita esporro. Brabo, não queria soltar o varal. Mais uma novela para sair dali. 

- Tu tá dormindo, pai.

- Tô dormindo nada.

Toca pra dentro para ver se senta na poltrona e sossega. Já são 10 horas. Então ele senta e imediatamente volta a dormir. O cachorro senta aos seus pés e também dorme. Assim vão os dois, parceiros no mundo dos sonhos, enquanto eu finalmente consigo escrever alguma coisinha.


quarta-feira, 15 de setembro de 2021

As manhãs



Todas as manhãs são tumultuadas ao extremo. Acordo seis horas para ter um tempinho com meu amor e depois começar a trabalhar, antes do pai acordar. É quando eu posso me concentrar. Depois que ele acorda a coisa fica difícil. Tem todo o ritual do despertar que demoooooora. Depois, o café. Quando ele está bem, toma sozinho, mas se acorda meio virado aí eu tenho de dar pouco a pouco. Vai um eito. Quando tudo se acalma de novo, volto ao trabalho.

Mas, aí, vem a confusão com os cachorros. O Steve Biko, que já é velhinho, é cismado com uma poltrona. Ele gosta de deitar naquela e ponto final. Se o pai está nela, ou algum outro bicho, ele inicia um circuito de latidos sistemáticos e insuportáveis até que eu levante e vá resolver o assunto. Não tem como ignorá-lo. A menos que eu queira enlouquecer. Se quem está na cadeira é a Mel, tenho de convencê-la a ficar em cima da cama, para que não fique também incomodando o pai, tentando subir nele. É um parto. Já o Dourado é tranquilo. Se ele vê o Steve enchendo o saco, por sua própria vontade sai da cadeira e vai deitar no tapete. Não sem antes me olhar como a dizer: que chato!

Lá pelas onze horas é a vez de chegar o Pezinho. Ele dorme em outra casa e só vem aqui pra comer. Quando ele chega, já sabemos. Antes mesmo de pular o muro ele já começa a miar alto, como se estivesse em grande perigo. Na verdade é seu miado de dizer: ei, estou chegando, arruma o rango aí. Lá vou eu arrumar a ração. Depois de comer ele vem pra cozinha, onde estamos todos  e exige o leitinho. É seu ritual. Já deixo pronto em cima da mesa. Ele vem, sobe, come e se manda de novo. A Ramona é de boa, se aboleta no espaldar da poltrona do pai e fica ali, dormindo junto com ele. A Juanita nem se toca, gosta de ficar distante e não incomoda ninguém. 

Quando chega a hora de começar o almoço tá todo mundo ajeitado no seu lugar. Já eu, tive de passar por pelo menos 500 situações de estresse. Valamideuzi. Quando então tudo parece se acalmar, o pai acorda do cochilo e começa o mexe-mexe. Ontem achou os óculos escuros do Renato e o colocou sobre o seu. 

- Tás enxergando, pai?

- Tô vendo tudo.

- Mas não tá escuro?

- Tá muito bom. 

Então tá!


quarta-feira, 1 de setembro de 2021

O pai e as surpresas


Uma das coisas mais seguras nessa doença de Alzheimer é o mexe-mexe nas coisas. Uma ansiedade por abrir portas, gavetas e mexericar em tudo. Aqui é assim. O pai almoça e dá uma descansadinha no sofá. Fica ali vendo TV ou olhando para a janela. De repente, do nada, ele se levanta e sai. Caminha ligeirinho em direção ao portão. Pode fazer o tempo que for, inclusive chuva. Ele se manda. Depois de mexer no cadeado do portão, sem sucesso para abrir, ele volta. Ai começa o abre fecha de tudo que há. Gavetas, armários, fogão, geladeira. E ai de quem diga alguma coisa ou o impeça. Tem que deixar fuçar. Eu fico de longe só observando se ele não vai pegar alguma coisa de vidro ou derrubar algum pacote aberto. 

Nisso ele fica um tempo. Pega as panelas em cima do fogão e bota na mesa. Tira da mesa, bota de novo no fogão. Fuça no lixinho da pia. Geralmente deixo uns saquinhos pendurados nos pegadores das portas dos armários com coisa que ele pode comer como pão, frutas, biscoitos. Ele pega os saquinhos e sai de fininho, achando que está me enganando. E eu fico bem quietinha. É um joguinho de gato e rato que pode durar horas. Ele até dá uma paradinha para o café, mas logo retorna ao mexe-mexe  e esconde-esconde. 

Quando chega a hora de dormir é hora de finalmente recolher as surpresas. Dentro dos bolsos encontro cada coisa. É controle da televisão, cartas, pedacinhos de dominó, bolinhas, banana, pinhão, cascas, pedaços de pão, colheres, pedacinhos de papel, garrafinhas de molho, panos de prato, canetas, lápis de cor, prendedores de roupa, latinhas,  caixinhas de remédio e até cabeças de alho. Também já achei uma caixinha de Maisena. Tudo isso ele vai amealhando ao longo do dia. Eu vou trocando a roupa dele e encontrando os “mimos”. E tenho de esconder debaixo da cama senão ele quer pegar de volta. Tem alguns aos quais ele se aferra e aí não tem jeito. Há que esperar adormecer para tirar da mão. Geralmente são panos de prato ou saquinhos plásticos.

A vida dele gira em torno dessas insólitas e prosaicas atividades. Pode parecer que ele está fechado em mundinho pequeno. Mas, não. Nessas colheitas de pequenos objetos, no vai-e-vem no quintal, nas espiadas por cima do muro, nas conversas com o Rolando Boldrin e no diálogo com os cachorrinhos existem universos inteiros que podem ser incompreensíveis para nós, mas que o enchem de alegria e serenidade. E é assim que seus dias passam, na paz.

quarta-feira, 25 de agosto de 2021

De cozinha e de felicidade



Minha mãe adorava dormir de manhã e odiava cozinhar. Por isso, no geral, acordava de mau humor. Porque sabia que logo teria de entrar na cozinha. Levantava sempre depois das 10h, cara amarrada, tomava um cafezinho preto e já começava a azáfama do almoço. Não gostava da parada, mas era mestre. Jamais fez um prato só. Enchia a mesa com várias opções. E era tudo muuuuito bom. Seu mau humor ia diminuindo conforme ela dançava entre as panelas, a mesa e o fogão. Eu sempre procurava diminuir seu trabalho e funcionava assim como uma auxiliar de cozinha. Fazia o pré-preparo e, nisso, fui aprendendo a cozinhar também.  Ela não gostava de carne moída. Preferia picar em pedaços bem pequenos e bater, bater, bater. Era uma perfeccionista. Nunca entendi como podia ela detestar tanto cozinhar e fazer isso tão bem. 

Depois que saí pra vida levei comigo esse desgosto com a cozinha. Também nunca fui de cozinhar e minha opção principal sempre foi comer fora. Nos finais de semana, um sanduiche de mortadela já estava muito bom. O máximo que eu chegava a fazer era um arroz com guizado para comer com farinha. Quando decidi morar com o Pedro, os deuses me abençoaram, ele adora cozinhar. Depois, chegou meu sobrinho, praticamente um chef. Ô, bênção! Ainda assim, se eles não estão, eu tranquilamente me viro com sanduiches.

Com a chegada do pai, as coisas mudaram. Ele precisa de refeições balanceadas. Há que ter almoço, jantar, lanches. Valamideuzi. Antes da pandemia, o Renato me valia e tudo ia bem. Mas, com a peste, tive que ficar em casa e aí, a cozinha estava lá, me chamando. As aulas pela internet do Renato e o meu trabalho remoto viraram a vida de pernas para o ar, e ao final, em vários dias da semana o almoço é por minha conta. 

Foi só aí que entendi o lance da mãe. Sobre como podia ela não gostar de cozinhar, mas ainda assim fazer as comidinhas mais deliciosas do mundo (sim, porque nunca encontrei panquecas ou bifes à milanesa melhores do que os dela).  Não era o que fazer, mas o para quem. Ela cozinhava para nós, seus filhos, seu companheiro. Ela superava o fato de não gostar de cozinhar com o seu compromisso de amor. Por isso tudo saia tão bom.

É o que acontece comigo. Quando é meu dia de cozinhar já começo bem cedinho tirando os ingredientes da geladeira, deixando-os descansar. Depois, vou fazendo tudo como a mãe fazia, do mesmo jeitinho e com os mesmos temperos. Coloco para tocar as músicas do Expresso Rural, abro uma cerveja, e entre cantorias e bailados vou mexendo os caldeirões. Quando o pai acorda, já encontra a cozinha nessa polvorosa, porque também como a mãe, eu faço uma baita bagunça com os temperos e as panelas. Como ele gosta de música, ponho os vídeos do Orlandinho e ele se diverte com os passinhos. A gente dança. Depois, passamos para as músicas gaúchas, de preferência as que falam de Uruguaiana. Ele toma um vinho e a comida vai se fazendo. Não há mau humor nem má vontade porque tudo está temperado com a bem-querença. É quando sinto, visível e concreto, o espírito da minha mãe. Ela conhecia esse segredo. Era só amor. 

Acho que é por isso que consigo fazer comidas gostosas, mesmo que sejam meio sem sal (por conta da pressão alta da turma). E, assim, vamos mantendo o bom astral e a alegria, apesar de ter de conviver com uma doença tão terrível como é o Alzheimer. 

Não, a vida não é um conto de fadas e nem todos os dias são bons. Mas, seja em qualquer hora, ver o riso do pai é a melhor pedida. Vale todos os sacrifícios. Penso que era isso que ia mudando o humor da mãe, todas as manhãs, enquanto ia cozinhando. Sua alegria era a mesa farta e todos nós saboreando. Mas, ela encontrava um jeito de se “vingar” também, deixando a pia repleta de louças. Acabo fazendo igual. Cozinho, mas bagunço. Por isso o Renato, quando se prepara para sua tarefa de lavar a sujeira toda, diz:

- A dona Helena passou por aqui. E é bem verdade.


terça-feira, 27 de julho de 2021

A casa França

 


Fui ao centro, depois de séculos pandêmicos. O centro, meu céu, meu paraíso. Andei pelas ruas como uma deslumbrada turista, olhando cada pequeno detalhe, esperando encontrar os mesmos vendedores ambulantes, o afiador de facas, os entregadores de papéis. O que vi foi um centro diferente. Muitas casas de comércio fechadas, outros novos negócios, pouca gente circulando. Depois fui jogar beijos para o Cascaes, o Cruz e Sousa, a Antonieta, e descobri nos caminhos a belíssima arte do artista Bruno Barbi, com as personalidades negras da nossa cidade. Tristeza e alegria se misturando na cidade mascarada.

Meu destino principal era a Casa França, lugar onde vou exercitar minha meninice. Gosto de entrar ali e ficar perdida no meio dos bonecos de pelúcia. Tantos que nem sei. Tive uma surpresa. Agora existem duas Casa França. E uma delas com um andar gigante só de bonecos. Visita de horas. Junto comigo caminhava também uma guriazinha, que se maravilhava, como eu, com a profusão dos bonecos. 

- Mãe, isso aqui é o paraíso – ela exclamava, enquanto arrastava a mãe pelas prateleiras. 

Sim, é o paraíso. Ela está certa. 

Rodei as prateleiras tocando, afofando e cheirando os bonecos. Por fim, decidi por um sapo, pensando no Armandinho. Queria trazer para o pai, pois ele gosta de se agarrar em coisas como o pano de prato ou a toalha de mesa, e fica aferrado até dormir. Pensei que talvez um fofinho daqueles pudesse ter o mesmo efeito.  Dizem que a gente presenteia a gente mesmo naquilo que dá. E é verdade. Lá estava eu querendo dar o que me encanta. Que seja. Comprei.

Cheguei a casa e coloquei o sapo sobre o armário da sala, onde fica o som. Passou um tempinho e lá foi o pai agarrar o bicho. Não deu outra. Agarrou e ficou grudado. Na hora de dormir também levou o sapo para a cama. Agora o sapo tá aqui, muito bem acompanhado.

Fosse por mim, a casa seria uma arca de bichos de pelúcia. 

E a casa França segue sendo meu éden.



domingo, 11 de julho de 2021

Jornalista e PhD em cuidar de velhinho



Lembro uma vez que participei de uma banca no Curso de Direito, como examinadora. E, na hora das apresentações o professor que presidiria a mesa me perguntou. - A senhora é o que? E eu. - Jornalista. - Só jornalista? Retrucou, meio incomodado. - É, só jornalista.

Respondi assim porque minhas qualificações estavam na ata e eu prefiro ser apresentada como jornalista, profissão da qual me orgulho. Mas, agora, penso que vou acrescentar: e PhD em cuidar de velhinho. Sim, porque isso é uma qualificação e tanto a considerar as minhas pequenas vitórias cotidianas com o pai.

Outro dia estava lembrando que eu sempre me assombrava quando via na televisão denúncias de velhinhos sendo maltratados pelas cuidadoras ou parentes. Eu pensava: mas como alguém pode ser violento com alguém tão frágil? Minha iniciação a essa coisa do cuidado foi num Asilo de São Vicente de Paula, em Pirapora, no final dos anos 70, para onde eu ia todas as manhãs de domingo junto com minha amiga Iara Nascimento. Lá, tínhamos por função limpar, pentear e entreter os velhinhos. Naqueles dias nem sonhava com fazer isso 24 horas por dia. Era apenas uma manhã, então nada parecia complicado. Por vezes os encontrávamos mal cheirosos e eu com meus botões pensava: mas por que não dão banho todo dia?

Hoje, depois de seis anos lidando com a doença de Alzheimer eu posso compreender porque algumas pessoas saem do sério, como e fácil perder o controle e o quanto é difícil essa parada da higiene. Têm momentos que podem ser exasperantes e desesperadores. Então, há que ter a cabeça aberta e estar disposto a aprender a compreender outro mundo.

A primeira coisa é saber que o velho, principalmente se tem demência, fala outra língua. Entendê-lo é como se iniciar no russo ou no mandarim. Há toda uma lógica diferenciada, outras sintaxes, outros fonemas, outra gramática e inclusive outra linguagem corporal. É fascinante. Chegar a uma fluência capaz de dialogar requer empenho e esforço. Posso dizer que eu hoje consigo me comunicar com o pai sem equívocos. E isso é uma grande vitória.

Ao conquistarmos o reino da língua temos o caminho para horas de muita tranquilidade porque quase toda a violência, os transtornos, e o desequilíbrio do doente de Alzheimer vêm dessa incapacidade que os outros têm de compreendê-lo. Tanto que quando o pai chegou, a vida virou de cabeça para baixo, e ele passou por muitos momentos de sofrimento com crises horríveis de violência e desequilíbrio. Eu fui aprendendo tudo à facão. Não há mapas. Hoje, é raro ele se intranquilizar.

Os médicos dizem que há três fases do Alzheimer. O começo, a fase moderada e a severa. Eu já discordo. São centenas de milhares de fases. Tantas quantos dias de vida na doença. Cada dia singular é um universo em si mesmo e o que aprendemos para hoje pode não servir amanhã. É um desafio permanente. Mas, nessa minha posição de PhD eu aprendi que há coisas que se repetem e servem para qualquer um.

1 – Falar baixo. Nunca , em nenhuma circunstância elevar o tom de voz. Qualquer estridência é ruim.

2 – Sorrir em todas as circunstâncias. Encontrar o nosso rosto sorridente e sereno quando estão incomodados com alguma dor, xixi, cocô, ou quando querem fugir, dá uma tranquilidade imensa a eles e ajuda a acalmar.

3 – Jamais contrariar – Se não querem fazer algo, deixa pra lá. Sorri, diz uma palavra carinhosa e sai. Dali a dez minutos a gente volta, pede a mesma coisa e já recebe outra resposta. É assim mesmo, então não há porque ficar insistindo e irritando a pessoa.

Com essas três dicas já se tem um bom caminho. O resto é atenção verdadeira para ir compreendendo a língua do nosso velhinho.

Escrevo esse texto hoje me concedendo o PhD porque consegui finalmente um feito inédito: trocar a fralda do pai durante o dia, assim que ele terminou o cocozinho. Uma façanha maior do que chegar vivo ao pico do Everest. Foi a coisa mais emocionante que me aconteceu nos últimos tempos, desde que eu finalmente consegui introduzir a fralda. No geral ele deixa colocar de manhã, mas só conseguia tirar à noite, o que me causava grande aflição.

Hoje, finalmente consegui. Sem gritos, sem choro, sem agressões. Bem tranquilo. Acho que passamos para outro estágio.

Depois dessa odisseia comemoramos tomando um chocolate quente. Ele bem querido e eu com um sorriso de orelha à orelha.

Apesar de estarmos os dois desde há uma semana com uma gripe horrível e desconfortável, vivemos hoje mais vitoriosa fase dessa nossa incrível relação. Eu, formada em língua de velhinho e PhD em cuidar.

Só tô aqui pensando se ponho isso no meu Lattes. 



quinta-feira, 17 de junho de 2021

Da memória

DA MEMÓRIA – Hoje, tentando fazer o pai permanecer dentro de casa, por conta do frio, tivemos um daqueles momentos de boniteza. Ele falando palavras ininteligíveis sobre algo lá fora no portão. Aí eu fui tentar abraça-lo, dizendo “meu magrinho... meu querido paizinho”.

E ele, fazendo cara de brabo: 

- Mas, por acaso eu sou teu pai?

- Pois o teu nome não é José Nelson Tavares?

- Sim.

- E o meu é Elaine Tavares, então?

Aí ele, reconhecendo o Tavares,  deu um grande sorriso e abriu os braços todo alegre, me envolvendo em um longo e apertado abraço...

- Maaaaaas, que coisa querida, dizia. 

E os seus olhos era puro brilho...


quinta-feira, 10 de junho de 2021

Da confiança do pai



Uma das coisas que mais me impacta nesse cuidado com o meu pai, que tem Alzheimer, é a completa e total confiança que ele tem nesse cuidado. Sei que não racional, mas ainda assim é definitivamente incrível e eu não canso de me emocionar. E me emociono mesmo por isso, porque não tem razão ali, embora tenha sentido. Uma pessoa mal intencionada pode fazer muito mal a alguém assim, porque são inocentes demais. Um exemplo disso é a parada dos remédios. 

O pai já não consegue mais entender o lance de engolir. Eu dou o remédio e digo: engole, pai. Ele faz um monte de firula com o remédio na boca, mas não engole. É engraçado até. Às vezes eu pensava que ele tinha engolido, mas passado um tempinho eu só ouvia o barulhinho dele cuspindo fora o comprimido. Uma odisseia. Então a gente tem de trabalhar com algumas artimanhas. Eu faço é moer o remédio e camuflo em pão, fruta, ou bananinha amassada, ou em mingau, pudim. E só chegar com a colherinha perto da boca e ele já abre, abocanhando, sem questionar. É uma ternura. E é incrível que ele não desconfie mesmo que ali tem um remédio. Come bem refestelado. 

Para minha sorte ele só toma um remédio, que é o da pressão, um de manhã e outro à noite. Graças aos deuses não tem qualquer outro problema de saúde, então, não sofro muito com isso. Mas, sei de velhinhos que chegam a tomar 15 comprimidos. Valamideuzi. Seria o caos. Da vez que teve uma infecção urinária eu sofri pra dar o antibiótico porque ele, doente, é outra pessoa. Também precisei de algum engenho. Muuuuuito engenho.

Mas, o fato é que, na confiança, ele vai onde eu quiser. Vamos ao posto de saúde todo mês tomar a vitamina B, e ele vai bem serelepe. Eu explico bem que vai tomar uma injeção, que vai doer um pouquinho, mas nem precisaria. Ele simplesmente pega na minha mão e vai. Olha pra mim, sorri, e me segue no seu passinho lento.

Penso que nunca em minha vida tive ou terei alguém que em mim confie tão cegamente. Isso é grandioso e assustador, porque significa que estamos tomando as decisões e qualquer decisão errada pode trazer consequências danosas. Tenho procurado fazer só coisas boas pra ele, espero poder ser merecedora dessa confiança abissal. 

É um grande aprendizado essa estrada que estamos cumprindo juntos...



domingo, 23 de maio de 2021

Estar presente, no presente


 Lidar com  a demência requer entrega. Não é sem razão que muita gente não dá conta. A pessoa velha já requer cuidados, mas se tiver demência complica um pouco mais. Porque cada minuto é um minuto. A pessoa pode estar de boa e num segundo, virar o humor para a ultraviolência. É um caminhar sobre ovos, todo o instante.  

Digo isso porque a minha própria vida se transformou, nessa tarefa do cuidado. E, no começo, foi difícil. Primeiro, porque bagunçava totalmente minha rotina tão cuidadosamente prezada. Sou uma mulher de rotinas cristalizadas. E, com o cuidado do pai, tudo ficou “patas arriba”. Nada pode ser planejado e nenhum dia é igual ao outro. 

Mas, com o andar da carruagem descobri que era melhor seguir o conselho de um  compa cubano que ensina: “sobre la vida hay dos cosas que se pode hacer: enfadarse o desenfadarse”. Decidi pelo desenfadarme. Então percebi que se eu me entregasse para cada instante, com absoluta entrega, não haveria sofrimento. E é assim que tem sido. 

Sou uma mulher das manhãs. Acordo cedo e gosto de escrever nesse período do dia quando as ideias parecem estar mais claras. Então, sigo minha rotina de pular da cama às seis horas, passe o que passe durante a noite. Porque, assim, tenho um tempinho até umas nove, nove e meia, quando o pai desperta. Depois que ele levanta da cama, o tempo é dele. Há todo um ritual a cumprir, sempre repleto de surpresas, porque como já contei aqui, o pai tem pavor a trocar de roupa. E essa é uma novela mexicana protagonizada a cada manhã. 

É preciso todo um ritual, desde a chegada ao quarto. Geralmente entro dançando e fazendo graça, para ele desenferrujar a cara. Quando ele sorri eu corro para o abraço e nesse abraço vou puxando para o box, onde tento dar o banho matinal. Geralmente dá certo, mas têm dias que não. Ele foge da água como o diabo da cruz. Aí é outro roteiro a cumprir, até que ele deixe a fúria de lado. Depois é hora de ir tirando a roupa da noite, geralmente molhada. É um parto com fórceps. Feito isso, vem a cueca, valamideuzi... Aí o bicho pega e há que ter muuuuita paciência. 

Vencido o tirar, vem o botar. Outra novela. Nisso o tempo vai passando. Novamente há que distrair com cantorias, brincadeiras e todo um arsenal teatral que só mesmo o Eduardo Bolina poderia me valer. E me vale. Vestido meu velhinho é hora de sair do quarto para tomar café. Outro momento demorado. Brinca com o pão, brinca com o café, faz traquinagem de todo o grau. Geralmente acaba tomando o café sozinho, mas muitas vezes tenho de interferir. Então, esse é um tempo que é só dele. Se ele toma o café sozinho aproveito o momento para fazer a limpeza inicial do quarto. Tirar os lençóis, as roupas sujas, enrolar a fralda, colocar os paninhos de limpeza de molho no tanque. Uma azáfama.

Tomado o café vem a hora dos remédios, vencida também sempre com muitas performances. Finalmente ele está pronto para o dia. Passaram-se ai quase duas horas. E nada mais importa além desse tumultuado ritual. Hoje consigo cumpri-lo sem sofrimento, totalmente mergulhada nessa função. Fica muito mais fácil vencer cada dia quando a gente está presente no momento presente. Sem pensar no trabalho a fazer, no compromisso que foi para o pau, nas coisas que se poderia ter feito e tal. Nada disso. Só esse sincero e comprometido carpe diem. Ele fica mais feliz, eu fico mais feliz e o dia segue sem grandes dramas.

Quando por fim, volto ao computador para terminar as tarefas, ali está o meu companheirinho, parado em frente a mim, esperando paciente que eu termine mais essa jornada para, de novo, mergulhar no seu mundo. 

Estamos indo bem...


sexta-feira, 9 de abril de 2021

Eu, a guardiã das memórias


 Têm dias que o pai acorda bem virado. Penso que as terminações nervosas no cérebro devem ficar em curto circuito, algo assim, porque ele fica bem perdido do senso, numa agitação bem maior do que o normal. Dizem que é da doença. Para quem cuida é prenúncio de um dia tenso porque a atenção precisa ser redobrada. É quando ele cai, ou se bate nas coisas, ou quebra tudo o que vê pela frente. Também fica teimoso e não aceita comer. É quando entra em cena a guardião das memórias. 

Não costumo ficar puxando pelas lembranças dele porque o pessoal que entende do Alzheimer diz que não é bom fazer isso. Pode dar mais estresse quando ele percebe que não lembra. Então, uso a técnica de citar as memórias que eu conheço, como se nada. Minha sorte é que eu sempre fui guria perguntadeira, desde pequena, querendo saber as histórias da família. Então, eu praticamente sei tudo sobre o que ele e todos viveram nos tempos idos. Cada detalhe.

Hoje foi assim. Justo num dia que começou já com muita tristeza, por conta da morte de amigos. Pois ele acordou e não quis saber do café. Aí eu ataco:

- Seu Tavares, sabe quem trouxe esse café? A Mariquinha. – Ele me olha, surpreso.

- A Mariquinha? Mas, como?

- Ela veio lá de Santa Maria, passou aqui e deixou esse café. Pediu pra tu tomares. 

Ele fica cismando, imagino eu que alguma coisa venha na memória, porque ao fim ele senta e toma alguns goles, com pequenos pedaços de pão. A Mariquinha é uma prima dele, muito amada.

Assim eu vou fazendo, buscando histórias que o façam atentar. Começo a falar das ruas onde ele morou, das pessoas. Mas não peço para ele lembrar, apenas comento de maneira casual. 

De meio-dia estava de novo agitado.

- Olha pai, mandaram esse feijão lá do 64º Batalhão, de Quarai. Vem provar -  Ele abre um sorriso.

- Quaraí? 

- Sim, tu tá ligado onde era o batalhão?

- Mas, claro. 

Aí vou desfiando o rosário das lembranças de lugares e pessoas. Até agora tem dado certo. Falo dos parentes, dos velhos amigos, dos lugares que ele amava. Não sei se ele lembra, mas algo acende. No geral, a palavra mágica é Uruguaiana. Bastou pronunciar e ele se alegra. E mesmo quando ele está naquela agitação para "ir embora", basta eu dizer:

- Tu queres ir pra Uruguaiana?

- Mas, claro!

- Ah, tá, então vamos lá. Abro portão, dou uma voltinha na rua e voltamos pra casa. 

- Pronto, já estamos em Uruguaiana. 

E tudo fica bem. Acende um cigarro e vai ver a Inezita Barroso na TV.


terça-feira, 26 de janeiro de 2021

Sobre a tristeza e o pai



Desde bem pequena fui apegada à tristeza. Meu pai tinha o hábito de comprar livros dos vendedores ambulantes que batiam na nossa porta e eu vivia escondida dentro deles, tentando entender o mundo. Aluísio Azevedo, José de Alencar, Lima Barreto eram meus companheiros. Com eles eu aprendia sobre a luta dos trabalhadores, sobre o poder do dinheiro, a pobreza. Depois, nas coleções sobre América Latina, fui sabendo da destruição e da barbárie que destruíram nossas famílias ancestrais e mais tarde os Cadernos do Terceiro Mundo abriram meus olhos para a África e o Oriente Médio. Tanta dor nesse planetinha. Era impossível não se tapar de tristeza. Por vezes me parecia difícil até dormir. Como era possível que houvesse tanta miséria e sofrimento?  

Mas, apesar de todo esse caminhar com a tristeza acho que não estava preparada para o que tenho vivido com o pai. Não é coisa fácil observar cotidianamente uma pessoa ir se extinguindo de uma forma tão cruel. Minha mãe morreu cedo, vítima de doença do pulmão. Eu morava longe, não vivi sua dor. Isso coube aos meus irmãos que acompanharam seus últimos respiros agônicos. Agora, com o pai, tocou a mim. E é devastador. Durante o dia as coisas até que ficam sob certo controle e com cuidado e carinho a gente vai contornando as pequenas "loucurinhas". Mas, quando chega a noite parece que entramos num universo paralelo no qual nenhum gesto ou palavra cabe.

No geral o sono demora demais a chegar. E quando vem é entrecortado. Ele acorda muitas vezes durante a madrugada. Não creio que consiga entrar em alfa. E isso cobra no dia seguinte porque quando não dorme direito fica muito mais desequilibrado e for a do ar. Praticamente todos os remédios já foram tentados, mas causam sofrimento demais. A coisa fica pior. Ele não dorme e acaba ficando mais agitado ainda. Todos os chás também são tentados. Não surtem efeito. Só os seres da noite sabem o que acontece naquele quartinho nas madrugadas.

Com muito custo consegui fazer com que use fralde de noite, o que, pensei, iria diminuir a necessidade de levantar. Ledo engano. Mudou de  problema. Agora, quando ele quer fazer xixi, não levanta, mas senta na cama e não há cristo que o faça deitar outra vez. Fica sentado na beirinha do colchão, dormitando sentado, enquanto o corpo cai para um lado e para o outro conforme o peso. Se eu puxo, forçando para que se deite, vira no Jiraya, pateando e soqueando com uma força extraordinária. Fica duro feito um pau. Há noites que fica assim, sentando, bambeando por mais de quatro horas. E no dia seguinte acaba ficando fraco e tonto, creio eu que por falta do sono e do descanso corporal. Já tentei de tudo. Nada funciona. E é profundamente triste vê-lo assim. Não desejo pra ninguém nesse mundo essa imagem de desequilíbrio e sofrimento. É avassaladora. Porque a gente tem de ficar parada diante dela, impotente, sem absolutamente saída alguma. Não há o que fazer nem a quem clamar. Há que segurar as lágrimas, empinar o corpo e ficar ali, sentada ao seu lado, em silêncio, esperando que a exaustão o derrube. Aí há que ser rápida para erguer as pernas e esticar o corpinho para que descanse. Nem sempre consigo. 

Hoje, acossada por esse governo de, de morte e de dor, sigo me entristecendo por conta das injustiças do mundo. Contra essas dores eu me insurjo, luto, batalho, saio às ruas, me rebelo. Há uma sensação de que pelo menos algo estamos fazendo. Mas, essa tristeza que sinto ao ver o pai nesse sofrimento noturno não tem igual. Por que diante dela sou incapaz, inútil, sem potência.

E assim, a tristeza vai obscurecendo tudo, ficando tão densa quanto a própria noite a qual temo. Por isso escrevo. Não espero piedade, compaixão ou comiseração. Não. Apenas compartilho para não sufocar. A demência é uma carga pesada. Ela nos ensina sobre nossa pequenez nesse universo. Mas, não precisava ser assim. Se há alguma sorte nisso é que quando o dia vem e o pai levanta, ele não se lembra do que aconteceu durante, na sua luta insana contra o descansar. E quando o vejo assomar à porta, batendo as mãos e dizendo: vamos! Volto a sorrir... E lá vamos nós para mais uma jornada.  


segunda-feira, 18 de janeiro de 2021

Onde é a saída?



As mudanças de percepção do pai são inesperadas. Ele pode estar bem tranquilo num momento e no outro segundo ficar agitado, querendo sair. Num minuto está consciente de tudo e noutro já nem sabe mais quem eu sou. Numa hora está sentadinho ouvindo música e de repente começa a mexer nos armários compulsivamente.

- A senhora teria um cigarro? ele pergunta. E aí já sei que saiu do ar, está noutra dimensão da sua mente. Então, tenho de embarcar nela. Coisas que já faço no automático, como se fosse assim, uma mudança de língua. Estou falando português e logo já começo a falar em espanhol. Igual.
Outro dia estávamos tomando café. De boa. Ele fazendo as traquinagens com o pão. De repente, do nada, ele se levantou agitado. Pegou a almofada, passou a mão no saco de pão e saiu porta afora, perguntando, nervoso: Onde é a saída? Onde é a saída?
Saí da mesa, peguei sua mão e sinalizei:
- É por aqui, seu Tavares, é por aqui. E já fui puxando para o caminho em volta da casa.
Completamos duas voltas de braços dados.
Na terceira ele olhou a almofada, o saquinho e me puxou casa adentro, voltando para o café.
- Quer um pão de queijo, pai?
- Sim, filha.
Pronto, voltou.


terça-feira, 5 de janeiro de 2021

As aventuras do pai


 Depois de umas três noites bem mal dormidas hoje decidi dar uma cochilada depois do meio dia, quando o pai fica sentado ouvindo música e cochila também.  Mas, acabou que eu apaguei e dormi pesado. Quando despertei já agucei o ouvido, pois havia muito silêncio. E silêncio é confusão. Saltei da cama e já vi que não estava na sala. Hum... Corri para o quarto dele, entrei devagarinho e lá estava ele no banheiro, tomando um banho com a água do vaso sanitário. A maior lameira no chão, sabonete por tudo e ele sem chinelo. Um perigo absurdo. 

Nessas horas a gente não pode fazer alarde, nem movimentos bruscos pois se ele se assusta o trem fica feio. Fui chegando de mansinho, falando baixo, segurando-o pelo braço. Estava ali muito à vontade, com a toalha enfiada no vaso, a qual ele tirava e passava pelo corpo. Delicadamente fui puxando para o box e abrindo o chuveiro.  

- Bora lavar essa cabeça, querido? Olha o chuveirinho aqui, ó... 

E ele meio desconcertado, mas já aceitando o chuveiro, foi seguindo com o banho. Agora já com a água limpinha e a bucha de banho.  

A parada é assim. Nunca quer tomar banho e é só deixar sozinho que apronta. Uma piscada de olho e eles nos escapam. 

Depois, já banhado foi se refestelar no alpendre. 


sexta-feira, 11 de dezembro de 2020

O cuidado sem remédios, ruim para o cuidador, bom para o velho



A vida da gente é feita de escolhas. Elas definem nosso caminho. Meu pai me chegou há cinco anos com diagnóstico de Alzheimer. Estava fraquinho, não conseguia andar muito menos pegar os talheres para comer. Foi como um furacão em casa, pois tudo teve que começar a ser ajeitado para suas necessidades. Eu nada sabia de Alzheimer ou cuidado com pessoas dementes. Haveria de aprender no corpo-a-corpo com a realidade. Nos primeiros meses foi difícil demais, mas, com o andar da carruagem a gente vai se adaptando.  

A primeira batalha foi com os remédios. Que fazer para segurar as crises de violência, os gritos na madrugada, as alucinações, o desespero da fuga, a insônia permanente? A única coisa que consegui pensar foi em médico e remédio. E fui à luta. Na parceria com o médico começamos a experimentar algumas medicações. Mas, cada remédio dado, pioravam as crises. Houve um dia em que ele quase arrancou o portão da casa, aos gritos de socorro, pela madrugada adentro. Desses remédios que se usam para o Alzheimer, usei todos, mas como piorava eu tirava.  

Até que decidi não transformar mais o meu pai num campo de testes. Escolhi cuidar sem remédio. Iria aguentar as crises apenas no osso do peito. Durante o dia, uma gota de canabidiol, que não é remédio, é vida. E quando a ansiedade ficava muita, um cigarro, dos mais fortes, pois a nicotina, me ensinou um médico, é forte calmante nessas situações. Assim temos caminhado nesses anos.  

Alucinações o pai não tem mais e tampouco crises de violência ou tentativas de fuga. Consegui estabelecer uma rotina durante a noite, com a qual consigo fazer com que ele durma algumas horas. Bom, e qual é preço disso? Cuidado 24 horas. Definitivamente o que substitui os remédios é a presença, a atenção, o cuidado, as coisas que fazemos juntos. O dia inteiro inventando coisas. Isso obviamente cobra um tempo danado da gente, e praticamente toda a vida que a gente tinha deixa de existir - só há um hiato para o trabalho, ainda necessário. De resto, os dias são passados em função dele, pois se a atenção não chega, o bicho pega.  

Entendi que esse caminho é bastante duro para o cuidador porque exige atenção integral, entrega total. É dureza. Não são todos os que podem fazer isso. Algumas pessoas até têm sucesso com a medicação. Mas eu preferi desistir. Como o pai tem saúde de ferro não há sequer outros medicamentos para atrapalhar. O único remédio que ele toma é o da pressão que o médico disse que não é bom parar. Como é só um, fica bem fácil administrar.  

O resultado dessa escolha é ver o pai bem de boa, fazendo suas pequenas loucurinhas como colocar coisas no vaso do banheiro, comer todas as bananas da fruteira, mexericar no armário de comida, espiar no portão conversando com algum amigo imaginário. Ele não fica irritado, não fica violento, não fica ansioso. Só perde a tramontana na hora de trocar de roupa. Não gosta que lhe baixem as calças. Mas, com paciência, tudo dá certo. Também não gosta de banho e o jeito é levar ele para o box, com roupa e tudo e ir molhando devagar. Conforme a roupa vai molhando, ele mesmo vai tirando. É bem engraçado. Lógico que é uma operação demorada, mas temos todo o tempo do mundo. 

Depois, é ficar com ele no alpendre vendo os passarinhos, os gatos, os cachorros, ouvindo música, tomando uma cervejinha. É pesado pra mim, mas essas cenas do cotidiano, valem toda a pena. Como hoje, depois do banho, ele dormitando à sombra, com o gatinho a lhe lamber a mão. Nenhuma rugosidade na sua adorável vida. Só o passar das horas. Por vezes conversamos, bastante tempo, numa língua estranha. Mas, nos entendemos.

Tudo o que eu queria era que as pessoas pudessem ter esse tempo para cuidar de seus velhos. Pois, com certeza, isso lhes dá um final de vida sereno, cheio de alegria e dignidade. Coisa que eles merecem depois de tanta vida de trabalho. Não é fácil, mas, vale a pena. 



O pai, o Steve e o Hegel

 


Meus dois velhinhos cara-a-cara

Os dias pandêmicos são longos e lentos. O pai acorda cedo e o dia passa devagar. Nos momentos em que ele dorme procuro fazer meu trabalho do Iela, as leituras dos jornais latino-americanos, o acompanhamento das notícias nos sítios, redigir os textos, fazer as artes do instagram, realizar as postagens nas redes e plataformas, fazer entrevistas gravadas, participar de alguns debates. É uma correria porque ele dorme pouco. E quando está acordado fica difícil eu me concentrar. A atenção tem de ser para ele. Anda por todo canto, mexe em tudo, intisica os cachorros, os gatos, caça bastante confusão. Há que ficar atenta, e ainda assim, vez em quando ele cai ou se machuca, porque basta um segundo de distração e pimba.  

Na última semana comecei a fazer o curso do Hegel. Leitura sistemática da Fenomenologia do espírito. É bem engraçado. Porque durante o dia eu tento abrir algumas brechas para a leitura, mas a cada parágrafo há que parar para limpar um xixi, um cocô, ou tirar o pai de alguma trampa. Imagina estudar filosofia assim? Desgasta. Nossa senhora da vaca emburrada, valei-me.  

Não bastasse isso agora o cachorro que mora aqui em casa, que eu resgatei da rua há 12 anos, também está velhinho. Então, ele tenta pular o muro ou subir na mesa, mas não está mais conseguindo dar o impulso. O resultado é que ele se estabaca todo no chão. E claro, tal e qual o pai, não adianta falar nada, porque não há compreensão. Aí preciso ficar encontrando formas de criar barreira para ele não tentar os pulos. É um baita estresse, porque eu não dou conta. Tem hora que é o pai tentando abrir o portão de um lado, e o Steve querendo saltar o muro do outro, e eu tendo de correr de um lado pra outro para evitar problemas. O Hegel só me olha de revesgueio, apontando minhas certezas sensíveis. O meu ser-aí se desvanece.  

Quando a noite chega e o pai já está deitadinho, eu olho para o Hegel, ele me olha. Mas, então, decido. Porfa, preciso de uma alienaçãozinha. Aí vou ver Discovery, audaciosamente indo onde ninguém jamais esteve. A terceira temporada, um arraso. Entschuldigung, Hegel, mas o Saru vence.  

Quando a barra do dia desponta, lá pelas cinco horas, enquanto o pai já começa com seu deambuleio no quarto, eu retomo o Hegel, só um pouquinho, até que tenha de sair para as tarefas. Não é fácil, mas, quem disse que seria? 


domingo, 4 de outubro de 2020

O mexe mexe do pai



A nova fase do pai agora é a do mexe-mexe. Quando vai chegando o fim do dia ele começa a confusão. Abre tudo que é armário, gaveta, guarda-roupa, o que for. O seu objetivo, aparentemente, é a busca de comida, mas pode tirar pratos, xícaras, talheres, mantimentos. Se bobear ele abre os sacos de farinhas e fica comendo. Se encontra algum pacote de bolacha, abre e come tudo. E mete a mão no saco do pão  e vai embuchando o que tiver. É quase como um gremmlin, dos filmes de terror. E ai de mim se resolver tirar algo da sua mão. Aí é um deus nos acuda. Fica brabo demais da conta. Agora tenho de preparar pequenos embrulhos para que ele possa encontrar. Então, ponho uma fruta, um pão, uma bolacha, mas em pequenas porções para ele não exagerar. É um trabalhão. Mas, único jeito. Como não tenho despensa nem grandes armazenamentos não consegui encontrar ainda um jeito para defender os saquinhos de farinha, arroz, feijão etc... Aí tenho de esperar que ele se entretenha com os pequenos embrulhinhos. Mas, tem dias que não tenho tempo de preparar as “armadilhinhas” e o bicho pega.

Agora, há dias que ele tem encrencado com o cacho de banana que está no pé. Passas as tardes todas olhando para o cacho e querendo que eu o tire para poder comer. Não adianta dizer que tá verde, que não deu a hora. Não. Ele quer e pronto. Aí o jeito é eu me fazer de salame, desentendida. Mas, ele não desiste. Fica ali, parado, olhando o cacho, um tempão, dá até dó. Não vejo a hora de ficar no ponto para ele desencanar. Hoje, ele ficou embaixo da bananeira por horas a fio, por certo pensando em alguma maneira de alcançar. Se eu descuido ele sobe no tanque. Eita desejo por aquele cacho.

O mexe-mexe não para. Agora, enquanto escrevo ele está ali na porta, abrindo e fechando, abrindo e fechando, entrando e saindo, entrando e saindo, até que eu saia do computador e lhe dê toda a atenção ou ele se depare com algum saquinho de guloseima.

É uma aventura diária esse cuidado.


segunda-feira, 28 de setembro de 2020

O medo de faltar


Um dos medos mais tenebrosos que temos, os cuidadores, é o de ficar doente. Afinal, se a gente cai, o que será do nosso velhinho? As pessoas que tem demência precisam fundamentalmente de rotina. As coisas sendo feitas do mesmo jeito, na mesma hora, o mesmo tom de voz. E se a gente falta, o mundo se transforma. Daí esse pavor. Mas, como tudo sempre pode ficar pior, a doença vem e o cuidador precisa fazer de conta que não está passando nada, o que, por outro lado, só piora a doença em si. Pode ser uma gripe, uma febre, uma tontura, um aperto no coração. Seja o que for, é preciso seguir levantando a mesma hora, fazendo as mesmas coisas e prestando a mesma atenção no cotidiano. A parada é bem dura. Ainda mais que o velhinho, mesmo dentro de sua demência, consegue identificar que algo não vai bem. 

Nos dias em que fico ruim, fazendo esforço para não demonstrar, o pai, intuitivamente sabe que algo está passando. Então ele acorda mais cedo, ele me segue por todo lugar ou fica parado me olhando fixo, como a indagar se está tudo bem.  O esforço de fingir acaba piorando tudo. O estresse aumenta e um desespero surdo toma conta da gente. O mundo balança. Esses são dias em que realmente eu desabo. Já li que as estatísticas de cuidadores morrendo antes da pessoa cuidada são bem altas. É quando vem o medo de sair de cena e deixar o meu velho sozinho. São vários sentimentos amalgamados que levam nosso emocional ao último nível do suportável.  

Quando é assim me agarro na música. Faço uma lista das minhas preferidas e coloco pra rodar, o som bem alto. Se a situação permite, eu danço. Aí o pai se acalma, como se ao me ver cantando registrasse que tudo está bem. E então eu vou seguindo sendo aquele fingidor de que falou Pessoa, fingindo tão completamente que as vezes pensa que é força a força que de fato tem. Ainda assim, o medo de faltar segue assaltando, tornando a jornada bem mais pesada.  

São dias tristes.  


quarta-feira, 16 de setembro de 2020

O sono, os remédios e as escolhas com o pai


Nessa batalha que é cuidar de uma pessoa idosa com demência um dos pontos mais difíceis é o sono. Desde que o pai chegou aqui em casa para meus cuidados que eu venho batalhando formas de tornar sua noite um momento de descanso, já que ele é igual a um dínamo, não para um segundo durante o dia todo. Só que quando a noite chega, também não tem parada. E isso é ruim. Ele não descansa.

Devo dizer que ao longo desses mais de quatro anos tentei de tudo e ele passou por todos esses remédios que são ministrados para pessoas com Alzheimer. Psicotrópicos, calmantes, antidepressivos, ansiolíticos, uma infinidade. E a cada um desses remédios eu observava uma reação diferente. Acontecia de tudo, menos o sono. Em alguns casos vinham as alucinações, o desespero, a agitação desenfreada, a loucura desatada, levantando no meio da noite, querendo sair, batendo portas e forçando o portão, gritando sem parar. Em vez de melhorar, piorava. Outros o deixavam completamente dopado durante o dia, prostrado numa cadeira, com a boca torta.

Participando de grupos de ajuda de familiares com Alzheimer fui conhecendo os casos de pessoas que iam ficando com os músculos rígidos, paravam de andar, problemas para engolir, tudo aparentemente efeito colateral dos remédios. Uma aflição dos diabos vai tomando conta da gente porque não queremos ver a pessoa sofrer, e esse troca-troca de remédios ia me parecendo uma experiência meio desumana. Sabe-se que não há um remédio para o Alzheimer, o que os médicos podem fazer é ir tentando resolver os problemas que a doença causa. Eu entendo isso, mas os experimentos com o pai me causavam muito sofrimento também.

A gota d´água pra mim foi uma noite em que ele apareceu na porta da cozinha com a cara lavada de sangue. Eu havia dado um desses remédios para ele dormir e estava na minha cama, no meu quarto, dormindo. Pois ele havia acordado em surto e caído, abrindo um corte na testa. Aquela cara ensanguentada, aquele olhar de desamparo acabou comigo. Decidi mudar toda a minha abordagem.

A primeira coisa que fiz foi tirar os remédios. Mais nada. Depois, me mudei de mala e cuia para o quarto dele. Iria dormir com ele e observar sua noite, dando suporte para o que fosse. Antes, ele tomava o remédio e ficava sozinho, com a luz acesa e a televisão ligada. Não me deixava desligar. Ficava brabo. Percebi então que ele levantava várias vezes durante a noite e com a luz ligada, pensava que era dia, queria sair. Com muito carinho e tato fui mudando essa rotina. Apaguei a televisão depois de certa hora, depois a luz, e fui criando um ambiente aconchegante, mas penumbroso.

Hoje estamos assim. Ele janta as seis e lá pelas sete e meia vai para o quarto ver a novela. Assistimos juntos. Depois vimos as notícias e lá pelas nove já preparo tudo para o dormir. Ajeito a cama e vou insistindo com ele para deitar. Ele deita, eu apago a televisão, desligo a luz e o quarto fica silencioso e escurinho. Ele apaga na hora. Dali até o amanhecer acorda mais umas quatro vezes para fazer xixi, mas eu estou bem ali do seu lado. Limpo a bagunça, seco os pés e indico a cama para que ele volte a dormir. No geral dá certo. Há dias que ele está bem consciente e fica rindo por eu estar feito um fantasma ao seu lado. E quando está meio viradinho, resmunga um pouco mas volta pra cama. Há dias, é claro, que ele está bem mais agitado. Não deita, fica mexendo nas cobertas, tiras as coisas do guarda-roupa. Eu mantenho a luz apagada, só com a claridade do banheiro e fico quieta, esperando. Seus agitos podem durar duas horas seguidas na madrugada, mas depois disso ele cansa, aí eu venho e digo: vamos dormir agora? Ele deita e apaga.

Claro que isso é bem mais custoso e cansativo pra mim. Mas, percebo que é o melhor pra ele. Nenhum medicamento causando efeitos ruins, só a fixação sistemática da rotina. Tudo é feito na mesma hora, do mesmo jeito. Isso tem me custado as noites e toda a minha rotina de escrever e ver filmes nessas horas de calmaria. Isso se foi. Mas, por outro lado, quando ele desperta de manhã está mais descansado, e com o descanso também ficam mais raros os seus momentos de descontrole.

Tenho aprendido que essa doença danada tem pouco controle. E que o melhor remédio mesmo é a atenção e cuidado sistemático. Durante o dia uso um óleo natural abençoado por deus que o deixa lépido e falante e também garanto uma boa dose de nicotina – receita médica contra a agitação. Ele caminha bastante, come muita fruta, ajuda na horta, “trabalha” com seus papeizinhos, ouve música. E, de noite, na caminha. Não é coisa fácil mudar toda a vida da gente, mas foi o caminho que encontrei. Espero poder levar essa rotina até o fim. É só o que peço ao universo.



sexta-feira, 28 de agosto de 2020

Uma manhã com o pai



As manhãs com o pai são sempre cheias de surpresa. Hoje acordei mais cedo e o deixei dormindo. É o tempo que tenho para escrever, ver as mensagens e tal. Lá pelas dez horas vi o movimento no quarto e corri, pois é nessa hora do levantar que tenho a chance de trocar a roupa e fazer a higiene matinal. Sempre uma batalha, mas enfim, ou pego ele nesse contrapé ou perdi a guerra. Entrei no quarto e já estava armada a bagunça. Havia um pequeno montinho de cocô em pelo menos uns seis lugares entre o quarto e o banheiro, com respectivos rastros por todo o chão. Afff... Dá aquela desolação! Respiro fundo e para não o deixar nervoso, faço cara de surpresa. 

- Barbaridade, pai, quem será que fez isso? 

E ele me olha com aquela carinha de inocente. 

- Mas sabe que eu não sei. Passou um cara aqui, e outro ali, e outro ali – e foi apontando os cocozinhos, como se cada um deles tivesse sido obra de uma pessoa diferente – Passaram aí e foram embora.  

- Puxa vida, que safados, né? 

- É - e sai andando como se nada.   

Sobra a limpeza, coisa nada fácil. E ele descansa no alpendre, bem faceiro. Assim são as manhãs na casa Tavares


terça-feira, 18 de agosto de 2020

O pai, falando em línguas

As noites com o pai tem suas agruras, mas também os momentos de riso. Com algum custo tenho conseguido fazer com que ele cumpra uma rotina de sono que começa as nove horas da noite. Ele deita e dorme até umas dez e meia. Aí levanta para o xixi. Tudo bem rápido. Então vem a despertada da uma e meia da manhã. Ele acorda, faz xixi e volta pra cama, mas não deita. É quando começa uma algaravia indecifrável que eu chamo de “falando em línguas”. Pra quem não está familiarizado com isso é como se ele estivesse falando uma língua só compreensível para o criador. Ele fala por mais de uma hora, bem alto, como se discursasse, sentado na ponta da cama ou andando pelo quarto. Consigo entender no meio do palavreado apenas um lamentoso “santa maria”, talvez reminiscências de suas rezas, já que era devoto de Nossa Senhora de Fátima. Eu apenas observo. 

No começo me dava alguma aflição, agora acho engraçado. Tomei pra mim que essa hora é a hora da conversa com os espíritos, com seus sonhos passados ou com suas próprias memórias, numa língua que só ele mesmo pode entender. Então, eu fico silente, reverente, esperando que ele termine esse encontro insólito. Tudo termina como começa, do nada. Ele para de falar, levanta os pezinhos, entra pra dentro das cobertas e segue dormindo. Eu cubro com o cobertor, acarinho sua cabeça e peço aos deuses que cuidem dele no próximo bloco de sono. Ele ressona, como um anjo, até que lá pelas quatro e meia ressurja de novo em meio às cobertas, para mais um xixi. E valamideuzi que seja só isso... e não mais duas horas de algaravia pois, às vezes, parece que há muita coisa para conversar com os espíritos... <3  


quinta-feira, 23 de julho de 2020

O inverno e o pai


Eu sou apaixonada pelo inverno. Meu sonho mesmo era viver na Finlândia, 10 meses de inverno e 15 graus no verão. Ah... Todo ano me preparo para esse momento único de introspecção e sentimentos oceânicos. Mas, esse ano, o inverno miou. Tem uma pandemia que colocou o mundo todo patas arriba, e tem o pai, cujo corpinho frágil preciso proteger. Não tem sido fácil. Os dias são complicados, mas as noites superam tudo. São terríveis. O pai não se adapta com as fraldas e esqueceu como é que faz para fazer xixi. Ele não consegue, em meio a tanta roupa, levantar o casaco, baixar a calça e fazer o xixi. O resultado é que acaba se molhando todo. Durante o dia resolvi com calças de tactel. Molham e logo secam... Mas, ainda assim é foda. Já durante a noite, o problema fica gigante. Com muito custo consegui fazer com que ele usasse fraldas. Há noites que consigo que coloque, outras não. Mas, não resolve. Quando vem a vontade de fazer xixi ele levanta e quer usar o banheiro, vai daí que faz uma bagunça com a fralda. E acaba molhando a cama, o quarto, o banheiro. É um salseiro. Eu corro atrás com os paninhos, mas não tem jeito. Molha tudo, inclusive as calças. No frio das noites é muito doido que ele fique molhado. E o bichinho é marrento. Não deixa que eu troque as calças. A solução foi tirar as fraldas que a confusão fica menor. Minha singela alegria é quando molha apenas três lençóis por noite. Fora as calças que tenho de enxugar enquanto ele vai andando do banheiro para a cama. Um bailado doido que se repete cinco ou seis vezes na noite. Consigo tirar o excesso, mas ainda assim fica molhado, e ele nem aí. Deita, se tapa e fica brabo se eu falo em trocar a calça. De manhã é outra novela. Fazer com que ele troque a roupa me toma quase duas horas num moroso processo de negociação. Tem dias que consigo fácil, outros não. O velhinho é brabo. O resultado de tudo isso é a minha aflição. Ele dorme molhado e eu temo que ele se resfrie, pegue uma pneumonia ou algo assim. Acaba que eu nem durmo, fico ali, olhando pra ele, vendo respirar. O foda da doença não é nem o cuidado que a gente precisa ter com eles, é essa teimosia danada que torna uma simples troca de calça uma batalha de Ayacucho. Essa semana o calorzinho tem me dado trégua e eu me pego gostando dele. Logo eu, que  abomino o verão. E fico rezando para que o frio não volte para que o seu Nelson possa ficar menos desconfortável. E fico triste por ter de passar pelo inverno assim, querendo que ele se vá. Ah.... Valamideuzi.


quinta-feira, 2 de julho de 2020

Mulher-gato



Lidar com meu velhinho não é moleza. Os dias são difíceis e tensos, porque a demência é coisa dura de lidar. Mudanças rápidas de humor, a ideia fixa de ir embora, o pega-pega de coisas, o ir e vir sem parar. Uma rotina que não dá folga, ainda mais agora na pandemia. Mas, tem também seus momentos engraçados e mostra o quanto a gente tem a capacidade de se reinventar, ou de descobrir habilidades jamais imaginadas. Uma delas é o radar do movimento. Durante a noite, deito na cama ao lado do pai e quando ele adormece, eu também durmo. Mas, ao menor movimento, mesmo que eu esteja em alfa, acordo. Ele levanta umas quatro vezes para ir ao banheiro e é sempre um salseiro. Mas, eu não falho.

A outra habilidade que descobri em mim é a do olfato apurado,praticamente felino. Como agora ele não se dá mais conta que está fazendo cocô, se desobriga a qualquer momento, sem ir ao banheiro. Nos primeiros dias era aquela confusão, cocô por todo o lado, uma sujeirada. Tentei as fraldas. Não deu. Resolvi colocar nele só calças de pernas bem largas, então, se ele se aliviava, a coisa caia pelas pernas e eu corria para limpar. Estava dando certo. Mas, agora, eu adquiri a capacidade de sentir quando o processo começa. Então eu sinto o cheirinho e já saio correndo com os lencinhos umedecidos para aparar na saída, sem que ele chegue a sujar as calças. É incrível. Estou infalível, como um gato. É uma aventura e tanto. E engraçado. Porque ele sempre faz aquela cara de surpresa intensa.

- Mas, o que é isso?

- Nada não, só um cocozinho.

- Mas que barbaridade.

E assim, seguimos...

domingo, 21 de junho de 2020

Pai, trabalho e confusão



Quando comecei no jornalismo não tinha esse lance de salinha e computador. Não. As salas eram amplas e todos trabalhavam juntos. O ato da escrita, da construção da notícia, tinha de ser feito em meio ao barulho das vozes, da máquina de escrever, do telex, dos telefones tocando. Uma balbúrdia. A reportagem de televisão era ainda muito pior. Terminava as entrevistas e tinha de escrever o texto do off no joelho, sentada num meio fio ou dentro do carro, porque o material tinha de chegar semi-montado na redação. Ali aprendi o dom da síntese e essa misteriosa capacidade de entrar dentro de uma imaginária bolha silenciosa em meio ao caos. Talvez por isso que agora, trabalhando em casa, na pandemia, os textos consigam sair de alguma forma. A balbúrdia é grande. Tenho o pai, com demência, que me exige demais, cachorros, gatos, quintal, e tudo gira em torno de mim sempre ao mesmo tempo.

Basta que eu me organize, na mesa da cozinha, e abra o computador, para tudo começar. O pai gruda em mim, desde o amanhecer até a hora de dormir. Não há folga, e ele mesmo não descansa. Desde que acorda até à noite fica andando, mexericando nas coisas. Então, escrevo uma linha e saio à porta para ver se ele não se enredou em algum galho no quintal. Escrevo outro parágrafo e lá vou tirar das mãos dele os meus recuerdos de viagens que ficam no armarinho da sala. Já quase não há um inteiro. Ou ele já quebrou a cabeça, ou a pata, ou o rabo. As lembranças têm mesmo de ficar só na memória.

Também é preciso vigiar para ver quando ele faz xixi ou cocô, pois há que entrar em campo toda a parafernália da limpeza. Tenho pelo menos uma quatro toalhas e 12 panos de chão que uso diariamente nessa tarefa e todos precisam ser usados e lavados a cada tanto. Também há que ficar de olho para ver se ele não come demais, pois como não se lembra do que fez há um minuto, ele assalta a fruteira dezenas de vezes, podendo às vezes comer frutas demais. Também gosta de fuçar nos sacos de pão e faz uma bagunça danada. Deus o livre que eu diga alguma coisa. Vira no Jiraia. Há que deixar ele no seu mexe-mexe. Só que isso dá um trabalho danado e concentrar em um tema é quase impossível. Como ele não dorme de tarde, não há descanso.

Se tenho alguma reunião de trabalho, feita pelo computador, ele fica parado na minha frente querendo que eu pare de falar com as outras pessoas e fale só com ele. Ciumento que só. E se estou participando de alguma atividade extra, como uma conferência ou uma entrevista, tenho de fugir e me entocar no quarto para que ele não interrompa, brabo. E, mesmo escondida, fico saindo de quando em quando para dar uma espiada. Raramente consigo me concentrar na coisa em si. É extraordinário que consiga concatenar ideias.

Quando o dia vai terminando vem a novela do “eu quero ir embora”. Ele fica na porta me chamando: vamos, vamos. E nessa desamarração eu levo pelo menos uma hora e meia. Aí já é hora do jantar. Toca arrumar a comida e cuidar para ver se não está fazendo estripulia com a janta. Não dá para descuidar. Depois, quando tudo acaba, volto outra vez para o computador ver se consigo finalizar algo. Ele fica sentado ao meu lado ouvindo o Programa do Rolando Boldrin, e a cada minuto me convoca para fazer um comentário ou qualquer outra coisa incompreensível. Nessa hora já estou em exaustão, mas ainda arrisco mais um pouquinho de trabalho. O que é automático sai tranquilo, mas pensar exige mais. Ler, então, é uma odisseia.

Com muito custo o convenço a ir ver a novela. Ele vai, mas fica indo e vindo, cobrando atenção. O máximo de tempo que consigo é uns 15 minutos e aí tenho de acelerar para poder encerrar algum tópico ou parágrafo. A parada é dura. Lá pelas nove horas da noite ele começa a demonstrar cansaço e o coloco pra dormir. Ele deita e ronca. Mas aí eu mesma já não tenho mais qualquer fatia de energia. Toca-me a desabar na cama e dormir também, já que preciso aproveitar para descansar quando ele mesmo dorme. E assim lá se vai mais um dia na pandemia, como se estivesse diariamente girando dentro de um furacão. A sorte é que, de alguma forma, sempre vivi assim, ainda que em menor medida. Por isso, espero sair viva!

terça-feira, 16 de junho de 2020

De noite, na pandemia



É de madrugada. Velo o sono do pai que respira, sereno. No ouvido, o fone, com as canções do Luiz Marenco alcançando o atavismo que mora em mim. O Rio Grande que vive na lembrança. Lá fora, os cachorros se movimentam a cada tanto, latindo, perseguindo algum fantasma. Um dos gatos repousa no meu pé, os demais andam a fazer estripulias pela noite afora. O vento sul assobia na janela me lembrando que a mãe dos ventos está por ali a varrer o desalento. Mas, ele não vai embora de todo. Fica a cutucar a alma, que estremece. As retinas ainda elaboram as imagens dos telejornais, de um país devastado. Não há só um monstro ali, ocupando o cargo maior. Não! Há milhares, milhões. Gente capaz de entrar numa UTI para ver se tem doente de Covid. Gente que persegue enfermeiros. Gente que incensa políticas de morte e baba de prazer. Uma gente que sempre esteve aí, do nosso lado, num silêncio expectante. Esperando a hora de colocar as unhas para fora, os dentes afiados, e oferecer o banquete do terror. Essas pessoas têm nomes conhecidos e rostos até ontem queridos. Há um maremoto em mim, o corpo inteiro se revolve. O gato aconchega. O cachorro arranha a porta. Abro e deixo que mais um bicho se enrosque em mim. Os bichos me olham com olhos de bem-querença. Uma bem-querença que não cobra. Eles me restabelecem a ternura. Suspiro. O pai levanta a cabeça. Quer mijar. Tiro o fone e vou com ele, guiando pelo universo da demência. Como sempre, não acerta o vaso e esparrama o xixi pelo banheiro. Olha pra mim, confiante, e volta para a cama, onde novamente se deita e segue com o sono dos justos. Seco seu chinelo, ajeito as cobertas, e vou limpar o chão. Volto pra cama, o gato espreguiça, o cachorro vai tomando o espaço e eu permaneço com os olhos arregalados, buscando encontrar algum sentido nessa hora noa. Não há. Pego o celular, entro na netflix, nenhuma série mais me toma. Tudo parece demasiado. Há um maremoto em mim. Do outro lado da casa dorme o meu amor, sem mim. E sinto falta de seu abraço. O cachorro me fita, os olhos mansos, como a dizer: não temas, estou aqui. Faço-lhe um carinho. Agradeço. Ligo a TV, o controle passando sem se deter em nada. Há um maremoto em mim. Um medo. Não de morrer de Covid ou de qualquer outra coisa. Um medo de perder o riso, a leveza, a ternura. Há um assombro, em cada passada de notícia do facebook que manejo automaticamente, tentando achar algum nicho de beleza. Não há. A noite avança, célere, e eu penso nas pessoas que amo e que talvez estejam também nessa aflição. O coração acelera. Mas, não há lágrimas. Só esse estupor. Leio algumas mensagens do uatizapi e, de novo, me encolho, tentando encontrar um caminho para dentro, porque aqui fora tá escuro e passeiam os fantasmas. O pai levanta mais umas quatro vezes na madrugada. O mesmo ritual. O mijo, o olhar manso, o chão molhado, o pano encharcado, o chinelo seco. Quando a barra do dia se avizinha, eu adormeço. Restarão algumas horas e a vida recomeçará no dia da marmota, no feitiço do tempo que parece não ter fim.

quinta-feira, 28 de maio de 2020

As noites e os chinelos do pai




O Alzheimer é uma doença danada que todos os dias nos coloca um desafio. Quando tu pensas que resolveu um, lá vêm mais dois. Por agora eu andava as voltas com as noites do pai. Ele levanta pelo menos umas quatro vezes para fazer xixi. Eu colocava, ao pé da cama, um desses chinelos de pano para ele ficar confortável na hora de levantar. Beleza. Dava certo. Até que ele começou a não controlar mais os jatos do xixi. Levanta, vai ao banheiro, chega ao vaso, mas o xixi sai para todos os lados, menos para dentro. Resulta que os chinelos ficavam molhados e os pés também. E quando levantava para nova sessão, o chinelo estava encharcado. Hum, problema.

Resolvi suspender o chinelo de pano, trocando por uma havaiana. Deu certo por um tempo, quando não estava frio. Vez em quando errava o dedo e saia meio troncho, mas funcionava. Fazia o xixi, molhava o pé, o chinelo e tudo mais. Mas, terminado o serviço, era só secar o pé, colocar o chinelo na água, lavar e estava pronto para a próxima mijada. Até que veio o frio. Ele, de meia, não consegue enfiar o chinelo de jeito nenhum e sai quarto afora só de meia, voltando depois com os pés molhados. Cáspite!

Comprei um chinelo de couro, desses que enfia o pé inteiro. Mas, ainda assim o xixi que escapa da calça desce perna afora e continua molhando as meias e também o chinelo, que fica todo gelado porque o couro não seca tão rápido. O problema seguia.

Então, vendo um filme, pensei: quem sabe um desses sapatos que os trabalhadores usam em frigorífico, em peixaria? Hum. Toca a procurar na internet. Achei. Fiz o pedido e ontem chegou. Um desses sapatos de borracha, tipo babuche, fechado em cima, mas aberto atrás, como um chinelo. Bora testar.

Ontem, lá se foi o seu Tavares com seu chinelo novo para as mijadinhas. Na primeira já foi aquele salseiro. Tudo fora do vaso. Volta pra cama e vou ver a situação. Sapato molhado, pé sequinho. Oba! Bastou passar um paninho molhado no calçado e tudo bem. Mais três vezes a situação se apresentou. E todo xixi fora do vaso, espalhado pelo chão. Sapato molhado, pé sequinho.

Às seis horas, hora do último xixi, eu secava o chão com um sorriso nos lábios, enquanto o sapatinho descansava sequinho ao pé da cama. Por agora, deu certo. Dez a zero pra mim. Até o próximo problema. 

segunda-feira, 18 de maio de 2020

Ser velho e inútil



Hoje estava lavando roupa e o tanque fica bem num ângulo que dá pra ver o quarto do pai. Vi que ele conversava muito animado com uma fotografia que achou numa revista e que colocou na mesinha de suporte. Ela fica ali como num altar. É uma foto de um grupo de pessoas, num tempo passado, creio que deve ser lá pelos anos 1940. Não sei quem são, e nem ele, presumo. Mas, de qualquer forma ela o distrai e ele conversa amiúde com aquele povo. O papo é animado, ele mexe as mãos, ri, argumenta. É bem engraçado.

O pai passa os dias assim. Acorda, cochila, come bergamota, cochila, fuma, fica andando em volta da casa, vai até o portão e volta, pega os lixos da lixeira e traz para a cozinha, depois leva outra vez para a lixeira. Almoça, cochila, fica andando em volta da casa, prá e prá cá no portão, fuma, ouve música, come banana. Depois, janta, ouve música, come bergamota, toma chá, vê televisão e vai dormir. É uma vida não produtiva, que alguns chamariam inútil. No mundo do trabalho, do capital, ele é um inútil. Ele não pinta, não compõe, não se lembra do passado, não faz absolutamente nada que sirva para alguma coisa. Então, talvez por isso, que alguns governantes não se importem com a morte dos velhos agora na pandemia, afinal, são inúteis, não servem pra nada.

Quando eu vejo o meu pai, aos 88 anos, na sua rotina diária de andanças pelo quintal, num ir e vir aparentemente sem sentido, não posso deixar de me comover. Sua inutilidade é um fato. Ele que sempre foi arrimo da família, agora não faz mais nada por ninguém. Passa o dia vivendo sem qualquer preocupação. Não seria então a inutilidade um presente? Um momento de viver para si, só na fruição? Penso que sim. Quem disse que é preciso produzir o tempo todo? Quem disse que há que se cumprir um protocolo de utilidade para ser uma pessoa?

O pai começou a trabalhar cedo, em escritório de contabilidade. Teve uma vida boa até os quarenta e poucos anos, quando perdeu tudo e teve de começar do zero. Um velho já para o mundo do trabalho. E, ainda assim, ele se reergueu. Estudou, se esforçou, e terminou sua jornada de trabalhador como chefe do almoxarifado do DEER de Minas Gerais. Nunca se queixou do trabalho duro e sempre foi em frente, sem reclamar. Como empregado era um calvinista. Nunca chegou atrasado, nunca faltou, deu sempre o seu máximo. Fazia o impossível pelos seus colegas. Como pagador de trabalhadores no trecho – obras nas estradas – ele se virava nos 30 para fazer chegar o dinheiro, fizesse chuva ou sol. Chegou a atravessar um rio, amarrado numa corda, para garantir o salário dos companheiros. Era o que se chama de “caxias”.

O pai criou os filhos sempre ensinando o sentido da honestidade e do trabalho. Pagava as contas religiosamente. Era capaz de ter um troço se não tivesse dinheiro para quitar as dívidas e o sinal para a demência foi justamente esse: de repente ele se esqueceu de pagar as contas. Isso só poderia ser doença. E era.

O pai foi um cara extraordinário ao longo de sua vida “produtiva”. Ele tem uma história linda de perseverança, de coragem, de derrotas e superações. Ele tem uma história, que está viva em nós.

Por isso que hoje, quando ele aproveita – sem culpa - desse momento de inutilidade, eu me encho de ternura. É bom vê-lo sem a neurose das contas, sem a necessidade de cumprir afazeres, obrigações. Na sua vida inútil ele está livre. Ele pode conversar com os amigos imaginários nas fotos, ele pode degustar as frutas, dormir, caminhar, ouvir música sem preocupação. Ele tem quem lhe cuide, que lhe dê o alimento na hora, troque sua roupa, dê o banho, quem dance com ele, e lhe encha a cama de perfumes e cobertas quentinhas.

Ele é uma vida que foi vivida na plenitude, mas sempre acorrentada ao trabalho, à obrigação, ao dever. Agora, não. É só um corpo dançante, que toma vinho e cospe o que não quer comer.

Por isso que a vida dele importa. Tanto quanto a do jovem que ainda não viveu tudo o que ele já percorreu. Por isso que não é possível escolher entre um e outro. Cada um é um universo. O jovem, ainda em jornada. O velho, que já cumpriu tanto.

A proposta do “deixa morrer os velhos e os fracos”, que aparece agora, com a pandemia, tem me consumido os dias e noites. Não posso aceitar. Porque, como Manuel de Barros, tenho respeito pelas coisas inúteis, que existem apenas para a fruição. Um velho dedal esquecido numa caixa, um quadro sem valor, um lápis de cor quebrado. Coisas que evocam belezas. O pai, esse homem de tanta vida, é assim. Um ser de fruição. Um evocador de belezas. Ele merece viver sem a pressão de ser útil.

Ele é velho, inútil agora, mas já riscou um caminho nesse mundão de deus. Sua vida importa. E muito. Assim como a vida de outros velhos e velhas desse planeta azul, cheios de histórias, memórias e belezuras.


quarta-feira, 6 de maio de 2020

Na rave, com o pai



A vida pandêmica segue de maneira alucinada, apresentando sempre um novo problema na relação demência/cotidiano. Os dias passam atabalhoados, mas de boa. As noites é que são do peru. Como já contei aqui, cada vez que encontro uma solução para algum drama, logo outro aparece, quase que como a me desafiar. É pankeira. Mas, tudo bem, estamos na vida para isso, para ajeitar as coisas, para juntar o que está quebrando, para iluminar o que está escuro.

Sempre que a noite chega tenho de tomar uma decisão. Se eu dou o remédio de dormir para o pai, ele dorme quase a noite toda, mas apronta horrores com as incontinências, líquidas e sólidas. E aí é bem difícil, porque também não aceita que eu limpe ou troque as roupas. Ele ainda se recusa a usar fradas e nem o anjo do senhor o faz aceitar. Se eu não dou o remédio, sempre que ele quer fazer xixi ele desperta e levanta. Mas se levanta, não deita mais. E aí é um zanzar pelo quarto a noite toda, mexendo nas coisas, arrumando a cama, revirando papéis. Nada de dormir. Sem contar que quando faz xixi ou cocô, não vê lugar, vai fazendo. E eu atrás limpando, evitando que ele se suje ou caia.

O fato é que as duas opções igualmente me impedem de dormir. Então, o jeito é novamente inventar coisas para fazer durante a zanzação. Ou é Netflix, cujos filmes ruins eu já vi todos, acho. Ou fico no youtube vendo clipe dos meus amados cantores gaúchos, como o Luiz Marenco, o Mauro Moraes, ou então o Ricky Vallen, o qual amo de paixão. Quando tô nos filmes o seu Nelson me abstrai. Mas quando tô no youtube ele se antena, e faz a zanzada dele dançando. É bem engraçado. Vez em quando, pego ele pelo braço e saio dançando também.

Na madrugada, ao som do chamamé, juntam-se os cachorros e gatos. É uma espécie de rave bem singular, cheia de baldes, panos e muuuuita paciência, a qual vai tornando tudo enfim menos doloroso. Claro que há noites de calmaria, mas essas, das raves, são as que ficarão na memória.


quarta-feira, 15 de abril de 2020

Os desafios do cuidador



Se existe algo que o processo de demência nos ensina é que não há caminho seguro, tampouco estabilidade. Quando a gente pensa que conseguiu encontrar uma forma de lidar com algum aspecto da doença, lá vem outra novidade a nos interpelar, exigindo novas técnicas, novos modos de lidar, tudo outra vez.  Com o pai tem sido assim, praticamente a cada dois, três dias um novo problema se apresenta e há que encontrar novas soluções. 

A novidade agora é com relação ao remédio. Não há como fazê-lo engolir os comprimidos. Simplesmente ele não consegue. Põe na boca, dá o gole de água, mas trava. Não consegue engolir. Imediatamente cospe fora. Alguns, como a  Vitamina B, consegui encontrar em gotas, mas o da pressão não tem jeito. Então, a saída é amassar e colocar na comida. Mas, o gosto é ruim e ele logo percebe, então muitas vezes cospe fora também. É uma novela mexicana. Por vezes, para garantir que tome um comprimido eu gasto dois ou três deles. Mesmo as gotas, se ele percebe que eu boto algo no suco, já não toma. Então, é todo um processo de esconde-esconde na cozinha.

Na mesma linha do remédio, tem vezes que parece que ele esquece como é que se engole. Põe o café na boca, por exemplo, e fica com as bochechas cheias, olhando para mim, como em desespero para jogar fora. Tenho que correr com o baldinho para ele cuspir tudo. Não há jeito de comer. Não consegui descobrir uma saída para isso. Não sei se é uma evolução da doença ou se é passageiro. Porque passado algum tempo, eu ofereço para ele outra vez o café, o pão ou a comida e ele come. Mas, volta e meia isso acontece. Fico um pouco em pânico, porque não sei o que fazer. Tenho respeitado a vontade dele por enquanto, visto que não é o tempo todo que acontece, mas assusta-me pensar que pode chegar a hora em que ele não vai mais conseguir comer mesmo. 

À noite, o problema é com o xixi. Acorda várias vezes para ir ao banheiro, mas por vezes não consegue chegar. Então, faz nas calças e nem com reza braba deixa eu trocar o calção. Xinga, fica brabo, dá soco, o diabo. Não há santo que faça ele tirar a roupa molhada. Tento secar como posso, mas tem vez que ele segue dormindo molhado. E se tento trocar enquanto dorme, valamideuzi, ele desperta virado no Jiraia. Ainda são poucas vezes que isso acontece, mas e se piorar? Não aceita fraldas nem que vaca tussa. E enquanto tiver sanidade para isso tenho de inventar formas de mantê-lo seco, afinal, aí já vem o inverno. É uma luta. 

De manhã, quando o dia sobe, afastando toda a tensão que a noite traz, ele senta no alpendre, tranquilo como um monge. Eu o observo, silente, porque não sei o que vai acontecer na próxima hora. A vida segue, como uma montanha russa louca. E eu, tentando ser aquela que precisa dar um jeito do passeio ser bom e parar em segurança. Não é fácil!

sábado, 11 de abril de 2020

O isolamento e o pai



O isolamento social tem cobrado seu preço aqui em casa. Misturado com a demência do pai o resultado é um desastre. Primeiro que os dias se converteram todos em domingo, com todo mundo em casa. E com mais gente circulando, o pai perde a centralidade da atenção. Fica com ciúmes e aí é um deus nos acuda. Agride todo mundo, perde a tramontana e fica num vai-e-vem sem fim, como um bicho acuado. Faz a volta na casa umas mil vezes, andando sem parar, e quando fica bem transtornado começa a se meter no meio das árvores, do arbustos, da plantação. Tudo isso é um risco tremendo, e tenho de ficar andando atrás dele porque se deixo sozinho ele pode cair e se machucar. Não aceita que eu segure seu braço, então só posso ficar como uma sombra, rezando para conseguir segurar se ele for ao chão.

Sem poder sair de casa, a rotina do pai se quebrou e com isso também quebra alguma coisa no cérebro, imagino eu. Nos primeiros dias eu ia inventando uma mentira ou outra, mas com os passar do tempo já fui perdendo os argumentos. E ele fica no portão, com os olhos num vazio cheio de desespero.

Existe uma tal síndrome do pôr-do-sol que se constitui num desejo irrefreável de sair, de "ir pra casa". E a única forma de fazer esse desespero passar é sair, caminhar, encontrar pessoas, distrair. Sem isso, vem a violência, a raiva, e a descompensação. isso tem seus reflexos durante o dia todo e fica ainda pior durante a noite. Aí mistura tudo. A aflição pelo vírus que aí está e que pode atingi-lo e também pelo estado de sofrimento que o confinamento tem causado.

Outro dia quando a rua parecia vazia de gente eu abri o portão e pensei: vou andar com ele uns metros e voltar.Mas qual, ele queria ir no barbeiro e como sabe o caminho foi me arrastando. Tive de usar todas as artes e sortilégios para fazê-lo voltar. Voltou emburrado e a emenda ficou pior que o soneto.

A ânsia por sair agora também aparece durante à noite e, do nada, ele levanta da cama e sai andando no rumo do portão. Se eu tranco a porta é um escândalo, então tenho de deixar sair. Procuro cobri-lo com bastante roupa quente, mas ele vai arrancando tudo. E eu tenho de ir recolhendo e tentando colocar tudo de volta, afinal, as noites são frias.Ele finca o pé no portão e não sai. Eu pego a sombrinha e abro, para tentar evitar o sereno. A cena é louca: na madrugada estrelada, eu com a sombrinha aberta no portão. É um terror digno de Stephen King. É o vírus, é a demência, é a possibilidade de uma gripe qualquer, uma descompensação maior. Tudo é sofrimento.

Um pouquinho de paz vem de manhã quando Rolando Boldrin consegue segurar sua atenção. É quando eu também consigo colocar em dia o trabalho, que igualmente me cobra tempo. E é uma dureza tentar concentrar depois de todas essas aventuras, sabendo que logo logo elas vão recomeçar.

Nesse turbilhão estou, já quase mergulhada na demência também. Porque lá fora tem Bolsonaro, tem Trump e tem uma gente ruim respaldando a selvageria dos feitores do capital. O pouco de sanidade me vem dos livros, os quais vou sorvendo quando possível, como se fossem pequenos oásis no deserto da solidão.

sexta-feira, 27 de março de 2020

O pai e o vírus




Uma das piores coisas para quem tem demência é a alteração da rotina. Isso parece que desarticula uma série de coisas no cérebro. Nessas duas semanas de isolamento tem sido bem difícil cuidar do pai. Sempre tivemos como rotina sair para a rua, dar uma caminhada, quando chega aquele momento de fim de tarde no qual ele começa com o mantra: “quero ir para casa”. Essa é uma hora de extrema tensão porque, dependendo do clima, ele pode ficar bem violento. Geralmente quando vem a vontade de ir pra casa eu saio com ele, vou ao mercado, ao barbeiro, uma série de lugares que propiciam a interação social e o esquecimento do “ir embora”. Funciona bem. Mas, agora, isso não é possível. Tem sido uma luta.

Como explicar que existe uma pandemia, um isolamento, uma doença grave? Eu até explico e ele entende na hora, mas poucos minutos depois já esqueceu tudo e volta a querer sair. É bastante estressante. Até porque a gente também está com a corda toda esticada, tendo de vivenciar as perversidades presidenciais e a peleguice estadual. Momentos há que parece que tudo em nós vai se quebrar de tanta tensão. Mas é preciso manter a serenidade para não piorar ainda mais a própria confusão do pai. Só mesmo rogando aos deuses.

A falta de interação social e essa prisão forçada têm deixado ele bastante confuso. Há três dias venho notando que ele parece estar mais alheio, quase sem nos reconhecer. É uma dureza danada, porque estamos como entre o diabo e a caldeirinha: se sai, pega o vírus, se não sai, fica totalmente desorientado. E passa o dia num vai e vem até o portão tentando abrir, louco para fugir.

Ainda assim, vez em quando ele protagoniza alguns momentos de graça como a manhã que ele levantou brabo demais, e sumiu com dentadura. Foi uma confusão porque ele tem mania de jogar coisas dentro do vaso do banheiro. Passamos a manhã toda procurando a bendita, em todos os lugares possíveis e inimagináveis, e nada. Só no meio da tarde é que o Renato resolveu, sabe-se lá porque, olhar dentro da churrasqueira. Lá estava ela, sorrindo, solitária em meio às cinzas.

- Mas pai, como tu jogou a dentadura ali?
- Ela deve estar esperando o churrasco.

Aí a gente destensiona. Mas, é por pouco tempo.


O pai e o corona

Comendo amendoim e fazendo graça

O ambiente na casa é como um acampamento de guerra. Desde há pouco mais de um mês, quando o pai sofreu duas quedas seguidas no quarto onde ainda dormia sozinho, o cenário mudou. Entendi que já não era mais possível dar a ele a autonomia do sono. Era preciso vigiar de perto. Então, como o quarto é pequeno, tive de improvisar uma cama de campanha para ficar do seu lado. Foram dias confusos. Ele sem dormir, rodando pelo quarto a noite toda, agitado, violento. Quando me via ali, do seu lado, ficava brabo. Um caos. 

Pouco depois rearranjei o quarto, tirei a cama de casal, botei duas de solteiro. Agora ele dorme numa e eu na outra. Mas, aí, como estava acostumado a se espalhar, ficava a noite toda quase caindo da cama. Então, mesmo quando ele dormia eu tinha de ficar vigiando para ele não cair. A solução foi juntar as camas e deixar que ele ocupe a minha quando se espalha. Ainda assim, se ele acorda e me vê do lado, é um deus nos acuda.

Tive então que desenvolver a técnica de me acordar quando ele se mexe. É só ele levantar a cabeça e eu já salto da cama para que ele não me veja ao seu lado. Por isso já me deito de roupa e tudo e sem sequer tirar o chinelo. Então, ele se levanta e sai em busca do banheiro. Mas, como acorda confuso, não sabe bem em que direção está, então vai pra qualquer lado e já tira o bilau pra fora, jorrando o líquido, bem à vontade. De vez em quando consigo guiá-lo até o vaso, mas não é sempre. Aí, desenvolvi outra técnica. Levo um baldezinho e quando ele mira em outro lugar que não o vaso eu surjo, feito um  fantasma, com  o balde, bem onde está indo a urina. No geral consigo aparar tudo, mas sempre cai alguma coisa no chão. Então, é hora de limpar, para que não fique com mau odor. 

Esse acordar na madrugada é sempre uma incógnita. Além de toda a aventura do xixi tem a volta para a cama. Por vezes ele não quer voltar e aí começa todo o bailado da madrugada. Ele fica mexendo na cama, revira os lençóis, tira a fronha do travesseiro, faz uma maçaroca e fica rodeando a cama por horas. Eu tenho de ficar bem quietinha, pois se falo algo a violência explode. Agarro-me ao celular e fico vendo filme na Netflix. Ô, glória. Mas, se ele resolve sair porta afora aí o bicho pega. Ele abre a porta num átimo e se lança pelo quintal. Deus me livre se tento impedir. O que faço é seguir atrás dele, como uma sombra. Ele caminha, vai até o portão, mexe aqui e ali, roda, roda, até que volta.  Nessa hora os cachorros despertam e entram pelo quarto adentro. É um furdunço danado, pois o pai fica tentando enxotá-los e eles não saem de jeito nenhum. Tenho que ir até a geladeira e pegar mortadela, para acenar para os bichos, aí eles vêm correndo e saem do quarto. É pior do que novela mexicana. 

Agora, com essa do isolamento, estou em casa desde sábado, sem sair. Valham-me todos os deuses do Tahuantinsuyo. Temos uma rotina que é a de sair todos os dias, quando ele começa com o mantra de “eu quero ir embora”. Nessa hora ele fica muito nervoso e precisa sair a todo custo sob pena de quebrar o portão. Aí eu abro e vou com ele até o mercado, ou dou uma volta na rua. Ele se acalma e a gente volta. Só que agora não posso fazer isso. Calculem o tamanho do problema. Vivo em estado permanente de estresse, que se amplia ainda mais por conta da falta de sono. Fora isso tem o medo do vírus, pois se ele chegar pode ser fatal para o meu velhinho. 

A vida na casa gira em torno dele. Há que manter a casa limpa e garantir as refeições em horários certinhos. Nos intervalos – poucos  - quando ele sossega, posso ler um livro, escrever um texto, mas a concentração é bem difícil. Ainda teremos mais dias pela frente na quarentena. Cuidar do gajo em dias normais já não é bolinho, agora então, complicou. 

E assim vamos vivendo, enredados na atmosfera da demência e do amor. Sobreviveremos? 

quarta-feira, 26 de fevereiro de 2020

A demência e a noite




Não existe glamour ou beleza na demência senil. É um drama gigantesco que sucumbe com a vida de quem tem e de quem cuida. Isso porque o velho não é criança. Ele ainda tem parte de sua autonomia, de seus quereres. Raramente pode-se impor algo a ele. Emburra, empaca e tudo fica pior. Tudo tem de ser negociado. E isso é um processo de grande estresse, porque é um repetir-se, repetir-se e repetir-se,  à exaustão. 

No geral, a parte da noite é que é mais dura. Durante o dia, com a luz do sol e o movimento da vida, as coisas são mais fáceis de lidar. Até mesmo o mantra do “quero ir embora” a gente vai resolvendo, seja com o canabidiol ou com alguma dose de matreirice. Vamos desenvolvendo estratégias de envolvimento, passeios, conversas, brincadeiras. 

Mas, quando a noite chega e todos desaparecem, é a hora noa do cuidador. Primeiro porque ele já passou o dia inteiro envolvido com o doente. Além disso, no geral, o cuidador ainda trabalha, o que significa que precisa dar conta da vida laboral, com toda a sua complexidade, Por isso não é incomum que a pessoa passe a cometer erros, e a se esgotar fisicamente.  Assim, depois de passar por todo esse processo de trabalho e cuidado durante o dia, o cuidador terá de enfrentar, sozinho, a “mala noche”.

É comum na demência a deambulação, que é o andar sem razão. Isso fica pior no período noturno.  A pessoa anda sem parar e não aceitar deitar. Mesmo quando o sono chega e se percebe que a pessoa está exausta, ela não aceita descansar o corpo. E não há palavras que se possa usar para convencer ao descanso, creio eu que é uma coisa química, que dá no cérebro. É desesperador. A gente prepara tudo, o ambiente, a luz, o cheirinho de lavanda, os chás, mas nada resulta. 

Com o pai já tentei quase todos os remédios que existem para dormir. Cada um deles detona crises horrorosas de delírios, alucinações e quedas. É devastador. Uma impotência tão grande ver o pai da gente naquele nível de sofrimento. Acaba que nem dorme, nem descansa, pelo contrário, fica pior. Já tentei Neozine, Risperidona, Clonazepan, Donaren, e todos apresentaram o mesmo resultado. Nada de sono. Só sofrimento. É ruim porque se a pessoa não dorme, quando chega o dia, fica dormitando e todo o humor fica afetado. Sem sono  a demência piora. E o cuidador, que também não dorme, parece que também vai adquirindo parte da demência. A vida se deteriora. 

É assim que vai se criando também uma espécie de pavor da noite. Quando a barra do dia cai, é como se um grande manto escuro, carregado de dor, começasse a cair sobre nós. As horas vão se arrastar, a pressão vai subir, o desespero vai crescer naquela espera que finalmente venha o dia. 

O mais engraçado nisso tudo são os conselhos das pessoas próximas: Tu precisa dormir, não podes ficar assim, há que encontrar um jeito. Só que não há jeito. Não há com quem dividir a dor e muito menos os cuidados. Estamos sós nessa jornada. E, na medida em que vamos acabando também doentes – do corpo e da alma - mais isoladas ficamos, pois ninguém quer se contaminar com tanta desgraça. 

Sim, é duro. Não há amparo na família, nos amigos, no estado, na medicina. É uma caminhada alucinante, algo que ainda não pude entender. E nisso, vamos definhando, vendo aqueles a quem amamos mergulhados num mundo a parte, nos puxando para dentro dele a cada noite que passa. É um morrer abigarrado – doente e cuidador. Um sofrimento atroz. Há janelas de beleza? Sim, há, mas há que ter muita capacidade de percebê-las no cotidiano avassalador. Coisa que não é para qualquer um. A saída que tenho encontrado é viver o possível, com intensidade, sabendo que é pouco. Lapsos de alegria, uma música, uma cachaça, um filme, um poema. Tudo isso num tempo em que há igualmente uma noite escura na vida política e social. Não é fácil.

Ainda assim, vamos caminhando, desenhando o caminho. Sabe-se lá onde isso tudo vai dar. 

sábado, 15 de fevereiro de 2020

A nova fase do pai




O pai, apesar de já entrando nos 88 anos tem uma energia incrível. Ele passa o dia inteiro em função, andando pra lá e pra cá. Quando se aquieta é alerta. Mesmo à noite ele costuma levantar umas três ou quatro vezes. Até então tudo bem. Ele geralmente levanta e vem bater na porta pedindo café. Acha que já é de manhã. Eu levanto, explico pra ele que é de noite e ele volta para o quarto. Há duas semanas esse ritual mudou. 

Naquela noite ele não apareceu. Eu estranhei, mas não pensei em nada de mais. Ele só veio bater na porta por volta das seis horas da manhã. Eu já estava de pé. Abri a porta e dei de cara com uma cena de “Carrie, a estranha”: o pai, com a cara toda ensanguentada. Até hoje não sei de onde tirei calma para não demonstrar pavor e tentar ver o que havia acontecido. Apesar da sangueira ele tinha apenas um corte na testa, grande, mas não profundo. Não soube dizer o que havia acontecido. Quando entrei no quarto encontrei toalha, lençol, travesseiro, tudo sujo de sangue. Provavelmente ele dormiu sentado e deu com a cabeça na mesa. Única possibilidade. 

Observei então que não dava mais para deixá-lo dormir sozinho e embora ele fique brabo com a minha presença, decidi armar uma cadeira de praia ao lado da cama dele e ficar vigiando. Na noite seguinte, lá estava eu, toda torta, meio dormindo, amparando a cada vez que ele levantava para fazer xixi. Ficou furioso a noite toda, mas não arredei pé. Quando foi de manhã, já na hora de me arrumar para o trabalho, ele dormia profundamente. Sai de mansinho e fui tomar banho. Não deu cinco minutos. Quando eu voltei, lá estava ele no chão. Machucou os dois braços, se encheu de hematomas, um perigo total. Cair pode ser fatal para um velho. Que fazer? Como estar atenta o tempo todo? Que coisa difícil. 

Agora as coisas estão assim, uma nova fase, novos aprendizados e muito mais cansaço. Fico com ele a noite toda e, de manhã, quando vou trabalhar, alguém fica com ele. Vigilância total. Não é fácil, porque as noites são muito mal dormidas e logo cedo há que estar alerta e dar conta da vida. Não sei até onde vai ser possível aguentar esse batidão, mas estou indo em frente. Durante o dia, procuro dormir como posso, no ônibus, ou, depois que chego a casa, quando ele também cochila. Mas é um não-dormir, um estado de alerta o tempo todo. 

Agora ele já se acostumou com a minha onipresença durante a noite. Ainda assim, toda vez que ele desperta para ir ao banheiro, quando vê minha cabeça assomando, começa a rir e pergunta: mas o que tu tá fazendo aqui? 

Tô te cuidado, meu velhinho. Tô te cuidando. 

segunda-feira, 10 de fevereiro de 2020

Aprender a lidar com o velho



O pai não andava muito bem e eu levei ele no Posto de Saúde para uma consulta. Cumprimos todas as regras. Ir para a fila de madrugada, pegar a senha e depois marcar a consulta. Claro que não levei ele para a fila. Ele ficou em casa, esperando. Com a consulta garantida o Renato levou ele. No posto é o de praxe, com alguma espera. Até aí tudo bem. Mas, ocorre que há um ar-condicionado no modo polo norte. O pai com problemas respiratórios. Uma coisa complicada. Isso sem falar nos outros doentes, com gripe e tal. Aquilo não é de deus. Mas, tá. 

A médica pediu uma radiografia do pulmão. Beleza, seguimos os trâmites da espera. O pai tomou os antibióticos e era para ver se tinha ficado tudo bem, então a espera de mais de uma semana para fazer o raio-x não complicou. Beleza. 

Hoje fomos fazer a tal da radiografia. E no meu coração assomou a certeza. Poucas pessoas estão habilitadas a cuidar de pessoas velhinhas, com demência. O moço insistia em pedir para pai encostar o queixo e o peito na placa. Ele não entendia. Eu falei: deixa eu ajudar. O moço: não, a senhora não pode entrar. E eu: Mas, moço, ele tem demência, não compreende as coisas, eu preciso mostrar pra ele como fazer, tem que ter paciência. O moço: não. E insistia em dar os comandos. O pai foi ficando nervoso, porque não entendia. Com muito custo eu convenci o moço de ficar com o pai dentro da sala. Ele me colocou uma roupa de chumbo, eu acho. E eu tentando fazer o pai fazer o que era preciso. Mas, ele já estava nervoso e com dor no braço por conta de uma queda, e não obedecia. Um climão. 

Por fim fizemos a chapa de costas, mas tinha uma que era de lado. O pai não conseguia, de jeito nenhum, erguer os braços. Doía. O moço tentou levantar, ele gritou de dor. Eu fiquei braba. - Moço, ele está com o braço luxado, não poder erguer. Quer saber, não vamos fazer essa chapa.  Foda-se. Fica só a de costas. 

O moço ficou meio brabo. Mas, porra, aquilo estava sendo uma tortura e uma confusão. E o pai foi ficando nervoso a ponto de descompensar um pouco. ´Já não ordenava mais a fala, gemia com dor no braço. Um terror. 

Resumindo a ópera. A radiografia ficou pela metade. Não sei muito bem como as coisas deveriam ser, mas creio que poderia ter alguma técnica para ajudar pessoas nessas condições. O pai, no geral, não consegue verbalizar o que está sentindo direito. Tudo tem de ser muito intuitivo. Claro que entendo que o trabalhador do raio-x está ali atendendo dezenas de pessoas por dia, às vezes até em condições ruins. Mas, haveria que ter uma capacitação sobre como lidar com pessoas assim, bem velhinhas e confusas. A nossa população está envelhecendo, isso é uma novidade, e cada vez mais  haverá gente assim. Não creio que eles possam seguir o atendimento padrão. Sei lá, algum jeito tem de ter, afinal saí sem a chapa. 

Fica a dica então para o sistema de saúde. Hoje foi difícil. 

quarta-feira, 29 de janeiro de 2020

O pai e as convenções




Escrevo sobre a doença do pai - demência, Alzheimer, caduquice, ninguém sabe ao certo - e procuro encontrar janelas de beleza. Sem romantizar. Porque a parada é dura. Dura mesmo. Mas, se o que não tem remédio remediado está, penso que é necessário driblar o desespero. E é o que faço colocando no papel as histórias dessa fase intensa com ele.

O pai não aceita colocar fralda. Ele ainda tem boa dose de autonomia e de vontade. Não quer e pronto. Faz escândalo. Então, há que deixar que ele se vire com suas necessidades. E cada dia é uma surpresa. Fazer cocô é complicado. Quando está bem, vai no vaso e segue os protocolos. Mas, quando não tá muito legal, o salseiro é grande. Eu fico na minha, deixo ele se resolver. Depois vou lá e limpo tudo, serenamente, cercada de óleos perfumados e luvas de borracha. Ainda brinco com ele que “as mãos amarelas” vão lhe pegar. Ele se diverte. Antes tinha um pouco de vergonha. Agora não tem mais. Não está nem aí. Fica mexendo nos “seus papéis” enquanto eu vou limpando.

Pois é, sujaram tudo aqui, eu digo. E ele, surpreso, responde com pergunta: sujaaaaaaaaram? Eu não fui.

Mas, se para o cocô ainda vai ao banheiro, para o xixi ele não escolhe lugar. Deu vontade, baixa as calças e vai mijando. Geralmente escolhe uma planta ou as pedrinhas do jardim e ainda faz mira. Se é de noite. Ele levanta da cama e ali mesmo, em pé, se alivia. Pode bater na parede, no guarda-roupa, foda-se. Ele mija mesmo. E eu, por perto, para a operação limpeza. Ele volta a dormir, bem tranquilo.

Agora, nos últimos dias, deu de levantar pelado. Cinco horas da manhã ele está na porta da cozinha, como veio ao mundo, sorrindo. Eu me comporto com naturalidade e vou, devagarinho, levando ele para o quarto.

- Bora botar uma roupinha, querido, que tá fresquinho.

E ele me segue, tranquilo, aceitando a roupa outra vez. Fosse no começo ele não me deixaria vê-lo nu. Tomar banho foi um calvário. Mas, agora, ele parece não estar nem aí com a nudez. Fico pensando que isso até que é bom. Para quem viveu tanto - vai fazer 88 - ter de passar quase um século seguindo regras morais e sociais, deve ser bem legal poder mandar tudo às favas.

Claro que pra mim o lance é pesado, a limpeza sextuplifica. Mas, sinto que pra ele é libertador. Então, enquanto posso, vou deixando. Nada paga o olharzinho sapeca de quem está muito bem com a vida. Seu Tavares não é fácil.

terça-feira, 14 de janeiro de 2020

O pai e as lembranças



Quando eu era pequena, dizia-se “caduco” para os velhinhos que esqueciam coisas, e faziam algumas peraltices. Hoje colocaram nome de doença na simpática caduquice: Alzheimer, demência. Naqueles dias eu achava que as pessoas esqueciam só as coisas que lhes traziam alguma dor. Entendia aquilo como sabedoria. Os velhinhos voltavam a fazer coisas da meninice e isso só lhes trazia prazer. Vi muitos dos meus queridos envelhecerem: tios-avôs, tias-avós, avôs e avós. Alguns deles acompanhei bem de perto. Minha vó materna por exemplo era eu quem carregava para lá e para cá, do Rio Grande à Minas, até quase ao final da vida.

Hoje, com o pai, percebo isso também. Ele esquece o que já lhe doeu. Mas, lembra muito bem o que abre nele espaços de alegria.

Uma coisa que descobri, por acaso, é que ele lembra de falar espanhol. E penso que é porque isso evoca nele momentos de muito contentamento. Somos da fronteira, e o espanhol é praticamente língua-mãe. A vida toda ouvimos rádio, vimos televisão e passeamos pelas “calles” argentinas e uruguaias, portanto o “castelhano” nos é muito familiar.

Outro dia, quando o pai acordou emburrado, pensei em falar com ele em espanhol, acho até porque estava lendo alguns contos de Roa Bastos.

- Buenos dias, señor Tavares, que tal estás?
E ele abrindo um sorrisão.
- Muy bien, señorita, por aqui nos vamos muy bien.

Desde aí procuro falar com ele em espanhol, e ele sempre responde prontamente. Às vezes, quando me ajuda a secar a louça, encerra os trabalhos, pendurando o pano e dizendo pra mim: todo listo!

Quando saímos para o passeio diário, digo: Adelante, compañero. E ele responde: a la carga, señora.

Acho isso incrível, porque sem que eu precise perguntar se ele lembra de algo da vida na fronteira, essa vida assoma naturalmente, nesses pequenos flashes de lembranças. E eu quase volto a ser a guriazinha curiosa que ia com ele para Santo Tomé comprar balas Mumu. É uma maneira bonita de seguirmos conectados com nosso passado.

A la carga, nos vamos!

terça-feira, 7 de janeiro de 2020

Não há férias com o Alzheimer



Quem decide cuidar de um idoso com Alzheimer ou demência precisa inventar novas formas de viver. Pois, uma coisa é certa: o cuidado é 24 horas. Não há meio termo. No geral, mesmo que seja uma família grande, o idoso escolhe uma pessoa que vai ser a que tem a voz de comando. A partir dela é que se orienta, e essa pessoa passa a ser a bússola do idoso, está amarrada a ele. Então, sinto muito. Não há descanso, não há férias. Mas, como fazer para não sucumbir ao cansaço físico e emocional? Bueno, não há receitas. Cada um tem de encontrar seu ponto de equilíbrio.

Descobri isso da maneira mais dura. Depois de três anos cuidando do pai, decidi levá-lo para passar umas semanas com minha irmã. Assim eu poderia viajar, descansar, ficar sem fazer nada, o que fosse. Uns dias só para mim. Porque é certo, a gente precisa. Viajamos até lá e tudo ia bem, chegamos, comemos, conversamos, e preparamos tudo para as férias dele e nossa. Ele estava normal e à vontade na casa que foi dele durante anos. Quando a noite chegou fomos embora e ele ficou.

No dia seguinte minha irmã já me ligava aturdida, pois o pai tinha literalmente surtado. Gritava desesperado, não a reconhecia, queria sair portão afora, e não havia nada que o acalmasse. Foi um terror. Esperei mais um dia para ver se ele se acostumava, e não teve jeito. No terceiro dia lá estava eu pegando o pai de volta, dando adeus ao descanso. Ele voltou para casa tranquilo e seguiu a velha rotina. Seu sul era o espaço no qual ele se sentia seguro.

Percebi então que tirar o idoso com Alzheimer ou demência de sua rotina é um risco grande. Não voltei a fazê-lo. E, isso determinou o que disse lá em cima: nada de férias para quem é cuidador.

Diante disso há que buscar estratégias. Uma viagem de um ou dois dias pode-se arranjar. No mais é estabelecer períodos do dia nos quais o foco seja a gente mesma. Uma tarde para passear no centro ou outro lugar que a gente goste, um cinema, um café com as amigas. Uma manhã para pegar uma praia, um meio-dia para ir no bar. Enfim, no curso das 24 horas buscar janelas de tempo para cuidar de si. Isso é fundamental porque o cuidado exige demasiado de nós. E, para garantir essas janelas precisamos de aliados. Eu tenho um companheiro e um sobrinho que assumem o cuidado quando eu saio voando pela janela da fruição. E quem não tem ninguém? Aí é difícil, bem difícil mesmo. Mas, há que buscar um amigo, um vizinho, ou mesmo alguém pago, para fazer companhia ao idoso, garantindo um tempo para si.

O fato é que o idoso precisa de sua rotina e mesmo os passeios com ele não devem se estender. Há que voltar logo à segurança do sempre sabido. Mas, ainda assim se podem inventar bons momentos com eles. Já com os que estão acamados isso é impossível.

O importante mesmo é que a gente se cuide e se mantenha firme, física e mentalmente, fazendo exercícios diários e ouvindo muita música, mesmo quando o desespero é grande. Ninguém pode cuidar de alguém se não estiver bem. Nossos velhos não são um peso, são uma responsabilidade. Eles cuidaram de nós por anos a fio quando éramos crianças. Agora é nossa vez. Sem drama, sem tristeza, buscando força onde for preciso. 

quinta-feira, 26 de dezembro de 2019

O pai e o banho



A parada do banho é uma das mais difíceis. Não sei porque essa implicância. Basta falar a palavra e o pai já começa a resmungar e ficar nervoso. Ou diz que não quer mesmo, ou diz que já tomou. É uma dança louca e demorada que temos de empreender até acabar no box. Tem dias que não tem jeito mesmo. Há que pular o banho. O que é bem complicado porque limpar "as partes" pode ser ainda mais difícil. Levo horas nesse ritual, tentando encontrar o caminho. Nunca é o mesmo. Cada banho é uma descoberta. Quando ele finalmente diz "sim" eu faço a maior festa, dançando, pulando e carregando ele para dentro do banheiro.

Hoje foi assim. No natal não teve jeito. Pulou o banho. Mas, nessa quinta calorenta eu comecei a ensaiar já de manhã.
- Bora banhar?
- Não mesmo.

E assim vamos, pelo dia afora.
Quando deu cinco horas topou. Fiz a festa. E dá-lhe banho. Uma alegria.

Depois, saímos para a nossa caminhada diária. Eu ia conversando, mostrando os passarinhos, até que arrisquei.
- Coisa mais boa tomar um banho, ficar bem limpinho, né?
E ele, virando a cabeça, fez um muxoxo e respondeu.

- Sinceramente? Não vejo diferença. E seguiu, pitando seu cigarro apagado.

quarta-feira, 20 de novembro de 2019

O pai e a quadra das coisas perdidas



O pai é como um dínamo, e não para um minuto sequer. Acorda as cinco, cinco e meia da manhã e passa o dia inteiro ligadão. Anda pra cá e pra lá milhões de vezes, dá dezenas de voltas no jardim e caminha do alpendre para o portão o tempo todo. Vai até o muro e pega os sacos de lixo que estão descansando esperando o lixeiro, e se vem com eles pra dentro de casa. Se a gente não vê ele leva pra dentro do quarto e esconde.

- Pai, isso é lixo. Deixa lá que os moços do caminhão vêm pegar amanhã.
- Que moços?
- Os que coletam o lixo.
- Ah, tá.

E lá se vai ele de volta com os saquinhos. Dali uns dez minutos a cena se repete, tudo igual. Até que ele arranja outra distração. 

Dentro de casa nada lhe escapa, mexe em tudo. Como eu tenho muitas coisinhas pelos armários, lembranças de viagem, ele tem um universo de tarecos para surrupiar. Pega as pedrinhas do Pacífico e enfia nos bolsos, os saquinhos de areia da Núbia, os bonequinhos chineses, as figurinhas do Jornadas nas Estrelas, o senhor Yoda, o jesusinho do presépio, e vai escapulindo para o quarto com toda a sorte de tarecos. Também se farta na fruteira onde pega laranjas, bananas, e até os grandes maracujás que não consegue acomodar no bolso, mas ainda assim sai de fininho com eles na camisa que transforma em sacola. Chegando ao quarto ele guarda nos lugares mais inauditos. Eu deixo que ele faça seu circuito de pequenos “furtos”, sem atrapalhar a sua viagem. Ele se distrai.

No armário da cozinha ele fuça tudo que há, nos talheres, nas panelas, nos pratos, nos potinhos de plástico. Desarruma tudo e vez quando sai com alguma coisa escondida na camisa. Também mexe nos livros e no saco do pão. É uma faina incansável. E assim passa o dia amealhando coisas, carregando como se fosse uma formiguinha. 

Quando chega o fim do dia o quarto dele é um universo, uma espécie de Nárnia onde as coisas mergulham e ficam invisíveis. É hora então de ele “trabalhar”, que é mexer nos papéis que mantém na mesa. Mexe, mexe, mexe, rasga, faz barquinho, fica entretido. Lá pelas dez da noite eu consigo colocá-lo na cama, com muito custo. Ele deita, esticadinho, eu o cubro com o edredom, dou o beijo de boa noite e digo: “agora fecha os olhos e dorme”. Ele obedece. 

Espero que o sono fique mais pesado e então começo silenciosamente a catar as coisas perdidas. Abro o guarda-roupa e vou coletando. No meio das roupas, nas gavetas, dentro de meias, embaixo das cobertas, ajeitadas em pacotinhos, sempre tem alguma coisa. Outras desaparecem mesmo, por dias, e eu vou encontrar quando já nem mais tenho esperança de vê-las novamente. Elas simplesmente surgem, como mágica. 

Feita a recolha trato de sair, pé ante pé, de fininho. Antes de fechar a porta dou a última olhadinha. Ele está ressonando, bonitinho. Ao lado dele vejo sacis, duendes e até alguns etezinhos, que ficam por ali com seu amiguinho surrupião. O quarto é um reino encantado. Tudo parece bem, a noite vai se alongando e eu finalmente vou dormir.  

quarta-feira, 30 de outubro de 2019

Passeando com o pai




Toda a tarde, quando chego a casa, o pai já me espera no portão. Eu nem entro e ele já começa com o mantra: quero ir embora. Eu vou enrolando. Primeiro cumpro a rotina da limpeza. Limpar banheiro, trocar a roupa do dia, fazer a higiene. Tudo isso leva tempo, porque é preciso inventar mil e uma estratégias.

Depois, saímos, porque o ritual de abrir o portão e sair de casa já serve como um escape. Como não dirijo nem tenho carro, o jeito é caminhar. E agradeço aos deuses e deusas pelo fato de ele ser um homem forte, com o corpo ainda firme e as pernas rijas. Adora andar. Sempre foi assim. Aqui onde eu moro não tem aonde ir. Nenhuma praça, nenhum parque, a praia fica longe para ir andando. Então, o único lugar possível é o mercado. São mais ou menos uns 600 metros da casa até lá, trecho que cumprimos em uns 40 minutos para ir e outros tantos para voltar.

Andando com ele, no passinho lento, tudo é motivo de parada. Um passarinho no muro, um gato, um cachorro, um avião que passa baixinho, um carro em alta velocidade, uma criança brincando, alguém que passa. Mas sua alegria mesmo é chutar coisas. Não pode ver uma pedrinha, um papel, uma tampinha de garrafa, uma bituca de cigarro, vai logo aplicando o bicudo. E ri às gargalhadas, como se fosse um grande feito.

Chegando ao pequeno centro comercial passa pelo barbeiro e fica olhando lá pra dentro até o Luiz acenar. Ele acena também, alegre. Ali é aonde vai a cada 15 dias para o ritual da barba. É bom, porque interage com outras pessoas. Depois entramos no mercado e compramos alguma coisinha. No geral é o cigarro, receita médica, que não pode faltar. As meninas já o conhecem e logo pegam o Hollywood vermelho e entregam direto na sua mão. “Guarda no bolso”, elas dizem. E ele fica bem faceiro.

Cumprido o roteiro, voltamos. E lá vem ele, tapado de meninice feito o Armandinho do Alexandre Beck, chutando tudo que vê pela frente. Não sem razão o bico do sapato é todo esfolado. Nesse passeio levamos mais de uma hora e quando voltamos para casa a ansiedade já diminuiu. Ele acende o cigarro e fica no alpendre, acarinhado os cachorros. A tarde cai, a barra da noite vai subindo e nós passamos por mais um dia.

sábado, 10 de agosto de 2019

Dicas para os cuidadores



Das coisas que vou aprendendo na caminhada com o pai, procuro dividir com os compas que vivenciam a mesma realidade. Cada experiência é única, mas tem algumas dicas que, penso, servem para todos. Passo três delas aqui que considero uma grande conquista minha nesse processo:

1 - Não dê chilique - Os velhinhos fazem coisas inauditas. Espalham cocô pelo banheiro todo, fazem xixi dentro do armário ou no meio do quarto, desarrumam o guarda-roupa todo, guardam comida dentro das roupas no armário, rasgam livros, botam fogo nas coisas, furam as roupas, enfim, uma infinidade de atos dos quais não se dão conta, muito menos percebem que incomoda os demais. Isso é coisa que não vai mudar, então não adianta clamar a deus, perguntar por que isso está acontecendo, ou gritar com eles dizendo que não pode fazer assim. Eles não entendem. Então, há que se adaptar. O pai tem mania de colocar um pãozinho dentro do bolso da calça e ficar comendo ele durante a tarde. Eu deixo. Apenas cuido para esteja sempre fresquinho e tiro na hora de dormir.

2- Resolva os problemas imediatamente – Esteja sempre atento para limpar o que tem de ser limpo, para não deixar que a comida mofe dentro das roupas, para tirar os maus odores. Se o banheiro foi premiado, arregace as mangas e dê jeito. Se fez xixi no meio do quarto, seque ligeiro para que ele mesmo não se incomode ou se molhe, se sujou as roupas de cama, troque na hora, se sujou a roupa em uso, resolva. Vasculhe o guarda-roupa, os armários e se possível inclua a pessoa na busca. Com pai faço assim, às vezes achamos bolo, doce, frutas ou comida no meio das roupas. Eu digo: quem será que deixou isso aqui. E ele responde de imediato: Eu que não fui. Então eu fico pensativa e digo: acho que foi o Saci. Ele ri e confirma. É, deve ter sido o Saci mesmo. Isso é legal porque ele não se sente mal com a coisa toda. Porque se a gente fica brabo ele fica nervoso.

3 – Garanta sempre o riso e a leveza. A pessoa com demência não faz as coisas por mal. E se por vezes fica mal humorada, ou se nega a tomar banho e fazer a higiene, há que se ter paciência e fazer tudo para distrair. A música é algo fundamental porque ajuda a criar uma atmosfera de alegria. Cada coisa incomodativa deve ser encarada com graça. Uma boa risada desmancha qualquer clima. Geralmente quando acontece algum acidente escatológico, envolvendo cocô, o pai fica muito nervoso. Creio que fica um pouco envergonhado por ter feito tanta sujeira. Mas, com o tempo consegui fazer com ele sempre me chame para mostrar o acontecido. E aí eu sempre faço alguma piada, ou fico tentando caçar o Saci, peço a ajuda dele para limpar. O incidente fica leve e ele não fica estressado nem envergonhado. Vamos fazendo as coisas juntos como já me ensinou minha boa amiga Ana Claudia de Souza.

É claro que a vida de cuidados não é um mar de rosas e por vezes nos cobra um grande esforço emocional, porque não é fácil manter o bom humor diante de algumas “aprontações” . Mas, o fato é que não há nada que possamos fazer para mudar isso. É assim. Não vai acontecer nenhum milagre e resolver. Deus não vai descer num carro de luz e transformar a realidade. Quem tem de fazer o que é preciso somos nós mesmos. Então, seguindo essas dicas, vamos caminhando. Fica mais fácil para nós e para eles.

Espero que sirva para alguém.

terça-feira, 16 de julho de 2019

O pai e o trabalho



Meu pai sempre teve um grande apreço pelo trabalho. Fazia tudo com muito amor. Exagerava até. Mas sempre foi seu jeito de viver. Nunca soube ficar quieto. Creio que herdei isso dele. Quando teve de amargar um emprego mais burocrático (tinha sido radialista por muitos anos), não se conformou na vidinha apática. Tomou para si a tarefa de pagador dos trabalhadores do trecho, aqueles que ficavam nas obras das estradas. E nada o detinha. Nem as enchentes. Amarrava-se a uma corda e, com a mala de dinheiro na cabeça, atravessa os rios para entregar o salário daqueles que esperavam por aquele dia com muita ansiedade.

Quando virou chefe do almoxarifado decidiu estudar desenho técnico por correspondência. A gente ria dele, porque ele acreditava que poderia aprender com aqueles métodos tão antiquados. E foi dito e feito. As apostilas do IUB - Instituto Universal Brasileiro – chegavam semanalmente e ele se debruçava sobre elas depois da janta. Ficou craque e passou a desenhar as casas dos colegas, dos amigos, dos vizinhos. Lá na cidade onde morava devem ser dezenas as casas feitas por ele. Só parou quando foi atropelado e quebrou o ombro, o que dificultou para fazer os desenhos.

Depois de aposentado, sem poder ficar parado, se fez cobrador do dízimo da igreja. E todos os dias lá ia ele com seus envelopezinhos, de casa em casa, conversar com as pessoas, recolher o dinheiro e deixar um cartãozinho da santa, Nossa Senhora de Fátima, sua preferida.

Hoje, já velhinho, e com a memória pregando peças, ele ainda conserva essa sua mania de querer trabalhar. Volta e meia ele se inquieta:

- Mas eu preciso trabalhar. Tenho que ir trabalhar.

E por conta desse desejo começou a lançar mãos dos meus livros, que se espalham pela casa. Até que um dia rasgou um. Morri. Meus livros são o que tenho de mais sagrado. Tratei de matutar sobre o que fazer para ele não destruir meus amados.

Demorei, mas achei um jeito de garantir a ele o trabalho e salvar os livros. Reuni muitas revistas e repassei pra ele dizendo que era pra ele catalogar. Esse seria o seu trabalho diário. Deu certo. As revistas passaram a ser quase o centro do seu mundo. Todos os dias ele vira e revira os exemplares, lendo as manchetes, rasgando as folhas, colando de volta, colocando-as em fileira sobre a cama. É uma confusão. Mas, uma confusão boa. Ali, entre os papéis ele pode ficar horas. Às vezes, já é hora de dormir e eu digo:

- Vamos guardar isso, deixa pra amanhã. 
- Não, tenho de terminar hoje.

E ai de quem o tire de lá.

quinta-feira, 27 de junho de 2019

O remédio do pai



Há mais de mil dias vivemos a mesma cena. Quando o relógio bate as sete da noite eu apareço com o remédio e o copo de água.

- Oi querido. Tá na hora de tomar o remédio.

Ele me olha com os olhos arregalados, na maior surpresa:
- Reméeedio? Que remédio?

- Sim, broto, o remédio da pressão. Tem que tomar agorinha.
- Ah... Então, tá. 

Aí ele estende a mão, confiante, e bota o remédio na boca, engolindo logo em seguida com um pouquinho de água.  E, sem mais delongas, volta a fazer o que estava fazendo, esquecido de mim. Na noite seguinte, se surpreenderá outra vez. 

- Reméeedio? Que remédio?

segunda-feira, 22 de abril de 2019

O pai e o entardecer




Sempre gostei do entardecer. Ainda que me dê melancolia. Quando a barra do dia vai sumindo assoma invariavelmente aquela triste sensação da finitude. Tudo acaba. Tudo acaba. Sempre. Mas, se tudo acaba é sinal de que estamos em movimento, construindo novas auroras. Então, quando entardece é bom. Assim que me encanta ficar no alpendre, ruminando pensares. O sol sumindo, a noite vindo. Tão bom!

Mas, agora, com a presença da doença do meu pai, o entardecer perdeu a cor. Já não é mais um momento de fruição. Sua chegada é a hora do desassossego e medo. Por conta de algo que ninguém ainda sabe muito bem, quando chega o pôr-do-sol as pessoas que têm Alzheimer ou demência senil se agitam de maneira desesperadora. E alguém que passara o dia tranquilo fica outra pessoa. Irritado, confuso, violento, desequilibrado. As palavras tropeçam e saem em convulsiva confusão. O olhar fica desesperado, como se estivesse diante de um grande perigo, e ele mira o portão, com seu mantra “quero ir para casa”.

Essa é a hora noa (da suprema angústia). Dele, e minha. Dele, porque sofre. E, minha, porque não sei o que fazer. É aquele momento aterrador no qual tu queres proteger o outro de toda a dor, mas não sabe como, não tens os instrumentos, as condições. No processo de compreensão da doença temos feito algumas tentativas medicamentosas. Mas, as coisas não se ajeitam. É um confuso turbilhão. Um remédio ajuda em uma coisa, e desarruma outra. É uma aventura assustadora, porque tudo parece inútil. Como se todo o conhecimento da medicina não servisse para nada. Uma insuperável impotência nos assalta.

No meu desarvoro faço o que posso. Mas, desabo com o seu olhar aterrorizado. E, nessa hora, nem um abraço pode ser alcançado, porque não há razão, só o desespero, um desejo de fugir talvez. Imagino que seja alguma coisa que acontece no cérebro, que desarranja tudo, onde o toque amoroso não tem morada. É triste demais.

Há dias que são mais calmos, outros mais tumultuados. Mas, indefectivelmente, o fim do dia para mim passou a ser portal do medo e da impotência. Meu pai sempre foi um homem de ação e decisão. Mata-me vê-lo assim. E nesse morrer, dele e meu, vamos caminhando, de mãos dadas, enfrentando o torvelinho com as poucas armas que temos. Lançando-nos no abismo, todos os dias. O amor vai segurando a onda. Mas, momentos há que nem o amor tem poder. É duro demais! Resta essa força atávica, que herdei dele. Que vai sustentando, sustentando, sustentando...

sábado, 30 de março de 2019

O cuidado e o tempo



Saí de casa bem cedo para prover meu sustento. Família pobre, mãe doente, remédios caros. Era preciso “se virar” para dar conta, inclusive dos sonhos que trazia na cabeça: ser jornalista, escrever, contar histórias. Foi uma caminhada de atropelos, sempre difícil. Mas, a vida é difícil mesmo, e temos de aprender a driblar as merdas para vivenciar momentos de alegria e felicidade. Nessa estrada sempre estive contra o tempo. Eu tinha pressa. Pressa em ajudar a mãe, pressa em garantir a comida de cada dia, pressa em dar felicidade para minha vó, pressa em ajudar meu irmão, pressa na busca dos meus desejos, pressa para pagar as contas, pressa para fazer a revolução. Eu era o coelho da Alice, sempre correndo, alucinada, para algum lugar. Trabalho, política, sindicato, passeata, movimento social, luta.

E assim a vida foi passando, nessa corrida desenfreada, sempre enredada em alguma atividade, dessas que nos consome o corpo, a alma, a sanidade, em busca do ainda-não. Parecia sempre que o dia era pequeno, tanto havia para fazer. E, mesmo à noite, em casa, mais textos, mais leituras, mais articulações, mais conversas por telefone, conferências, encontros, grupos de estudo, formação.

Então chegou o pai. A roda do tempo travou. A doença do esquecimento e da demência é coisa que não melhora. Ao contrário: só piora. Então, tudo muda de lugar, a vida se desarranja. Já não há mais militância, nem reunião, nem festa, nem encontros com amigos, nem passeios, nem viagens. O tempo do cuidado é um tempo de entrega e de lentidão. Ajudar a levantar toma uma hora. Tomar banho, de duas a três horas, sair para caminhar no entorno, uma hora, preparar para dormir, umas duas horas, e a hora do mate é só a hora de ficar observando os passarinhos, o pôr-do-sol, ouvindo uma música. O tempo parado. Ações que se praticavam em segundos, agora se estendem, devagar. Até comer ficou lento, porque a falta de dentes obriga o velho a mastigar mais devagar e a gente com ele, para acompanhar.

Com o andar da doença, o tempo da gente vai encurtando ainda mais. Surgem novas demandas, novas tarefas. Já não há mais espaço para planejar a vida. “Amanhã farei isso ou aquilo”. “Ano que vem vou para tal lugar”. Não. O nosso tempo agora se resume em viver o que for possível nas 24 horas. Um dia depois do outro, sem planos. Cada dia é uma surpresa e nossa única tarefa é atravessá-lo, sem desesperar. Quando a noite vem e o corpo encontra descanso, a mente se esvazia. Há que dar calma ao coração. Porque o dia seguinte será novo, totalmente novo. Há que estar bonita, alegre e disposta. Porque tem alguém ali, esperando pelo nosso cuidado.

Tem sido uma experiência e tanto essa de ter perdido a pressa e encontrar, nas 24 horas do dia, a plenitude do viver. Não é bonito, nem sublime. Apenas é assim. E, pelo caminho, com o pai, vou aprendendo...


terça-feira, 19 de fevereiro de 2019

As memórias e o pai



Há dias nos quais o pai acorda muito agitado, nervoso mesmo. Não sei o que é, deve ser da doença. Hoje foi assim. Chegou na porta da cozinha com o rosto crispado, perguntando por que as coisas estavam como estavam. A pergunta não tinha resposta, mas eu vou dando as que posso. Ele pra lá e pra cá. E, a cada retorno, fazendo a mesma pergunta e eu dando novas respostas. Aquilo é turbilhão. Vai nos desconcertando. Mas, temos de manter a fleuma para não deixá-lo ainda mais nervoso.

Fiz um mate e chamei ele para conversar. Veio resmungando, mas veio. 
- Cadê o povo?
- Tá todo mundo trabalhando
- Eu também tenho que ir.

Aproveitei o gancho trabalho e comecei a ladainha de que ele já tinha trabalhado muito, agora estava aposentado e era hora de descansar. 
- Mas, eu trabalhei?

Então comecei a desenrolar o novelo dos lugares onde ele tinha trabalhado na vida. Lembra quando tu foste soldado? E ele ia lembrando de Quaraí. Lembra do escritório dos Fagundes. Ele começou a rir e disse que lembrava. Lembra da Rádio Fronteira do Sul? E ele assentindo. Lembra do DEER? Fui nominando um a um os seus velhos companheiros de trabalho. E para todos eles ele tinha uma lembrança. Já estávamos rindo, bem descontraídos. Ufa...

Então, de repente, ele desconfiou: 
- Mas, para aí, como é que tu sabe tudo isso de mim?
- Ora, eu sou tua filha, querido.
- Minha filha? 
- É.

Ele ficou me olhando, olhando. Até que uma lágrima se formou no seu olho. Ele levantou, emocionado, e me abraçou.
- Mas, que coisa mais querida. Minha filha.

E ficamos assim, por um tempo.

Essa é aquela hora em que a vontade é de chorar todas as lágrimas. Mas, há que manter a cara alegre, o sorriso e a firmeza. Não é fácil fingir que a alma não está em escombros. 

quinta-feira, 31 de janeiro de 2019

O tempo e o pai




A vida de um cuidador de idoso não é bolinho. Além de ter de dar conta do trabalho, que garante a existência, quando chega a casa tem uma infinidade de tarefas para cumprir. O pai fica numa alegria quando eu chego. E gosta que eu fique paparicando. Então, eu trato de arrumar o café, o qual tomamos juntos, conversando sobre a manhã que passou, o almoço, a sesta. Mas, depois disso preciso dar início a arrumação. Trocar roupa de cama, pois sempre tem alguma surpresinha. Limpar de cima a baixo o banheiro, pois a pontaria já está prejudicada. Juntar as roupas todas para lavar, e eu tenho o costume de lavar à mão. Então essa é função que toma tempo.

Não bastasse isso ainda tem o restante da casa para limpar, pois os bichos, que ficam entrando e saindo, aprontam uma boa bagunça. E, nesse verão de lascar, é sempre bom passar um paninho e deixar tudo cheirando a lavanda. O pai gosta de ajudar nas tarefas, então eu dou a ele a missão de lavar as xícaras do café. É uma boa ideia isso aí porque ele fica bem entretido por algumas horas.

Enquanto ele faz essa tarefa trato de cuidar dos bichos. Lavar as vasilhas, colocar água fresca, comida, limpar o cantinho de dormir. É puxado. O tempo voa e já é hora de arrumar a janta. De novo, outra função.

Ao longo de todo esse tempo, procuro encontrar formas de interagir com ele. Faço um chimarrão para tomarmos embaixo das árvores, dou água, fazemos pequenas caminhadas pelo jardim. Uma forma não deixar ele abandonado pela casa, já que dormir de dia, nem pensar. É uma correria, pois tudo tem de ser cumprido.

Depois da janta ele vai para o quarto ver televisão e é a hora que eu encontro para estudar um pouco, ler, escrever, antes de desabar. Abro o computador e fico nessa tarefa. Enquanto eu escrevo ele fica num vai e vem. Para na porta e fica espiando. Sai e volta, sai e volta, sai e volta, como a se certificar de que eu estou absorvida em algo que não é ele. Fico com pena e pergunto:

- Precisa de alguma coisa, querido?
- Preciso. 
- Do quê?
- De atenção.

Aí não tem jeito, largo o computador e vou ver a novela com ele. Tudo para garantir esse sorrisão. O tempo vai assumindo outra dimensão e muitas tarefas vão ficando para trás...


sexta-feira, 18 de janeiro de 2019

O pai: querendo ir para casa



Nas últimas semanas assomou no pai um das mais difíceis fases, que é a de querer ir embora. Todos os dias a mesma cantilena. Ele chega à porta da cozinha e faz um sinal com as mãos, dizendo:

- ó, tô xispando.

Ou seja, estou indo. Ele diz que quer ir para casa, mas na verdade não tem muita certeza de onde é essa “casa”. Suspeito eu que seja algum lugar de pura beleza, tamanha a ansiedade para ir. Por vezes sinto um profundo desejo de tomar sua mão e ir com ele, para esse não sabido lugar. Mas, a vida chama.

Geralmente quando a ansiedade é muita eu saio com ele. Vamos até o mercado, compramos algumas coisas, damos a volta na quadra. Ele se distrai e quando volta já esqueceu que queria ir para “casa”. Mas, têm momentos em que não esquece e fica muito nervoso. Vai até o portão e fica mexendo no trinco, tentando abrir para escapar.

É um tempo difícil, pois, de fato, temos de mantê-lo trancado. O portão com cadeado, senão ele sai andando “até o fim do mundo”, como diz. Os médicos chamam de síndrome do pôr-do-sol, porque aparece geralmente no final do dia. Mas, no pai, aparece a qualquer hora.

Ontem me deixou mal na fita com os coletores de lixo. De manhãzinha, lá estava ele no portão, esperando algum milagre, até que apareceram os coletores. Como são bem simpáticos, já foram cumprimentando.

-Bom dia!
E o pai.
- Me faz um favor, abre aqui pra mim. Tô preso.

O moço meio que perdeu a tramontana, olhou pra mim que observava do alpendre e fez uma cara de espanto. Fui até o portão e expliquei que o pai não pode sair sozinho, que tem Alzheimer. Ele ficou meio assim, não sei se acreditando, e se foi. E eu:

- Pai, não faz mais isso. O moço vai pensar que eu tô te maltratando.
Ele fez um muxoxo e redarguiu:

- A tentiada é livre.

terça, 24 de janeiro de 2019


O médico da família





Nada no mundo é por acaso. Vivi décadas em Florianópolis sem conseguir encontrar um médico, desses como os do passado, que conheciam a gente, a família da gente, que nos enxergavam como seres humanos, que não nos viam como pedaços doentes ou receptáculos de remédios. Procurei bastante, mas nada. Então, um belo dia, por conta das vivências na rádio comunitária, encontrei um desses jovens médicos que conseguiram passar pela faculdade sem se perder na selva do mundo sem coração. Formação de médico de família, perspectiva popular, compreendendo a questão indígena e a realidade do país. Guardei na memória. Um dia, quem sabe, se eu precisasse de um médico, teria a referência.
Então, pouco tempo depois, a vida me deu uma rasteira, e meu pai, de 86 anos de idade, começou a apresentar sinais de demência. Ele morava no mato e lá não tinha como ficar. Fui buscá-lo para ficar comigo. Ele estava bem baleado, muito fraquinho e totalmente fora de si. Não havia tempo para as intermináveis esperas nas filas do posto de saúde. Tinha de agir rápido. Na mesma hora me veio à cabeça o médico que havia conhecido nas lutas pelo SUS. Era o que eu precisava. Chamei.
Eu não queria um desses médicos que nem olham na cara, e já vão receitando. Queria alguém que visse o meu pai como uma pessoa na sua inteireza histórica. O Henrique foi perfeito. Sem pressa, atencioso, carinhoso, respeitoso, explicativo, honesto. Sem soluções milagrosas, mas com propostas inovadoras e perspectivas mais naturais. Iniciamos o cuidado.
Agora em junho de 2019 se completarão três anos que estou cuidando do pai, sempre com o acompanhamento do Henrique. Um médico que eu posso chamar a qualquer hora pelo uatizapi, que me atende e me aconselha. E que se está longe, encontra caminhos e atalhos para o bem estar. Um médico que pede notícias quando elas faltam, e que se preocupa com cada passo da jornada. Um médico que divide o que sabe, que expõe o que não sabe, que aprende junto. Um médico que abraça, que conforta, que ri, que se emociona. Um médico que se move com a força do compromisso, que sabe não ter todas as respostas, que está preparado para perder batalhas, mas sem largar a mão.
Eu que tanto procurei, agora encontrei o médico sonhado. E foi na hora certa, quando o mundo ruiu sobre meus pés. Nada é por acaso, mesmo. Conforta-me saber que passarei por essa dura estrada da demência e do Alzheimer tendo por parceiro do cuidado um cara como esse. Meu pai merece isso. Meu desejo mais profundo é de que cada pessoa nesse Brasil pudesse ter um médico assim, um médico de verdade, trabalhado no carinho, no cuidado, na atenção. E por isso eu luto pela saúde pública, pelos programas de médico de família, pela medicina preventiva.
Agradeço aos deuses e deusas que me permitiram encontrar o Henrique. E sei que, como ele, outros andam por aí, aqui mesmo em Florianópolis. Wagner, Murilo, só para citar alguns que são crias da mesma cepa e não concebem a medicina como negócio. São poucos ainda. Mas, rezo para que sejam mais. Possivelmente a própria ação desses que agora vivenciam essa prática fornecerá o exemplo para o surgimento de novos médicos assim, capazes de encontrar a humanidade que existe neles mesmos, e no outro. Uma parceria construída no amor.
A realidade nos mostra que esse caminho ainda é longo. Basta lembrar que a maioria das vagas dos Mais Médicos, as que estão nos lugares mais pobres, ainda não foram preenchidas. Porque não é moleza ficar cara-a-cara com o dor de quem não tem nada, a não ser o próprio corpo que se deteriora. Mas, não há saída. Só o amor salva. E o tempo da vida plena chegará para todos e todas. É um caminho sem volta, a despeito dos vilões sempre à espreita. Enquanto isso, lutamos!
Recomendo vivamente o Henrique. Podem chamar .

domingo, 23 de dezembro de 2018

Quem cuida do cuidador?




Desde que comecei a cuidar do meu pai, diagnosticado com Alzheimer, há uns três anos, tenho procurado encontrar caminhos para melhor atender as exigências desse tempo da vida. O velho não é criança, então não dá para aplicar as regras do trato infantil com ele. É preciso dar autonomia, fazer com que se sinta capaz, respeitar suas escolhas e vontades. É um processo intenso e difícil.

As coisas ficam ainda mais duras se a gente tem de trabalhar. São pelo menos umas oito horas longe de casa, sempre em sobressalto. Há pessoas que cuidam, mas a gente não descansa. Se o telefone toca, o coração pula, se chega mensagem no celular, o peito aperta. Fica aberto aí um caminho para a doença porque a sobrecarga é grande. O sono é pouco, a pressão aumenta, e a gente parece viver num eterno torpor por conta da vigília intermitente.

Não bastasse o ataque físico, o psicológico também fica roto. Afinal, aquele que cuida está sozinho. Com o tempo, já não há mais tempo para os amigos e muitos vão sumindo. Não é culpa deles, cada um tem seus próprios dramas para viver. A família ajuda, mas a confiança do velhinho se fixa em uma única pessoa e ela é quem carrega o cuidado inteiro. Não é qualquer um que pode dar banho, não é de qualquer um que aceita a comida, o processo de dependência vai criando um torvelinho no qual o cuidador pode sucumbir.

Nesse diapasão, quem cuida do cuidador? Pois, ele mesmo. Ao longo desse tempo nos cuidados com o pai fortaleci em mim uma certeza que eu já tinha de que somos mesmo seres da solidão.  E é isso aí. Não dá para esperar nada de ninguém. Se a ajuda chega, é bom, mas não podemos querer que as outras pessoas venham em nosso auxílio.  Vejo nos grupos de ajuda a familiares o quanto as pessoas sofrem por estarem sozinhas nessa batalha danada. Mas, toda hora de angústia sempre é vivida na solidão. Não tem jeito. Nem mesmo a pessoa que mais nos ama pode viver nossa dor. Ela é nossa. E temos de nos virar com ela. Sei que isso é duro, mas é assim que é.

Podemos nos enterrar na tristeza ou podemos encontrar pequenos pedaços de beleza espalhados pela estrada do cuidado. Aprendi que o meu pai, apesar de seus devaneios, está muito bem. Faço por ele tudo o que posso, o que não posso e um pouco mais. Dedico a ele meu tempo inteiro e sei que isso o faz feliz. Vejo no seu rosto, sinto na sua risada, no seu passo miúdo, sempre me procurando pela casa. Percebo sua confiança na forma como segura meu braço quando vamos passear ou como fecha os olhos, quietinho, quando lhe faço a barba. E mesmo quando explode em violência querendo “ir para casa” compreendo que é coisa da doença e deixo que a raiva passe para depois estreitá-lo em meus braços, dizendo que estarei sempre ali.

Quanto a mim, me esforço para cuidar da casinha que abriga a minha alma. Faço pequenos momentos de meditação. Tomo uma boa cerveja enquanto cozinho. Busco encontrar momentos para encontrar as amigas e os amigos mais próximos, tomar um café, jogar conversa fora, ver as tendências. Também faço ginástica, muita ginástica, fortalecendo o corpo, os músculos, cada pedaço de mim. Basta o pai dar uma folga e lá estou eu estendendo minha toalhinha no chão, dando duro nos abdominais. Procuro ficar forte porque sei que é só comigo que posso contar. Pode parecer meio arrogante, mas não é. Saber da nossa solidão, aceitar isso, é a única maneira de não sucumbir na auto piedade.

Sei que não é bolinho cuidar de uma pessoa velha, com demência, sem grana para cuidadores, ou massagens, ou fisioterapias. Mas, busco me virar à moda cubana, inventando, inventando e inventando, todos os dias e a cada minuto. É assim que eu mesmo descubro as massagens, os exercícios, os entretenimentos. E vou dando jeito, até quando preciso for.  

Por fim, nossos velhos não são incômodos, muito menos castigos de deus. Eles são uma janela para nossa mais profunda humanidade. E se a dureza do cuidado com eles pesa, ela também estende o tapete vermelho para que assome tudo aquilo que é de mais bonito em nós: o riso sem razão, o carinho, a picardia, a ternura, o amor, a compaixão, a vontade de acertar, o cuidado conosco mesmo.

Assim, vamos ficando melhores pessoas. O outro sempre é o paraíso quando ele já existe dentro de nós.

segunda-feira, 10 de dezembro de 2018

O pai e o banho




Quem cuida de pessoas velhinhas sabe, levar para o banho é o maior desafio. Tudo é motivo para não tomar banho. Não entendo isso. Só falar em banho e tudo já fica tenso e emburrado. “Agora não”. “Tomo banho é de noite”. E quando chega a noite: “agora não, tomo banho é de manhã”. É uma longa corrida de gato e rato.
Com o pai eu defini assim. Chamo pra tomar banho e se não quer, deixo pra lá. Faço uma coisa, faço outra. Pergunto de novo, para medir o nível do emburramento. Tá alto. Sigo fazendo outra coisa. E vou toda hora perguntado. “Vamos agora?” “Que tal um banho”. A brabeza firme. Tem dias que eu deixo quieto, ficar sem banho não vai matar. Passo um paninho úmido nas partes, com muita gritaria e protesto, mas fico firme. “Sem banho, ok, mas tem de limpar a bundinha”. A brabeza é grande, mas dura pouco. Creio que ele fica envergonhado.

Hoje o calor estava forte. E a novela do banho foi novamente encenada, desde as duas da tarde. Só lá por perto das cinco horas que ele apareceu na porta. “Vem, vamos tomar esse banho”. E lá fomos nós para a nova novela de tirar a roupa que demora um eito. “Não vou tirar a roupa com esse monte de gente aí”. O monte de gente são as pessoas na televisão. “É a TV, pai, eles não estão te vendo”. “Ahhhh, mas não mesmo, tira eles dali”. Tá bom, apaga a televisão.

Finalmente no banho quentinho a zanga se desfaz. Fica brincando com o sabão até mais não poder. “Bora sair, chega”, e ele nada. Vai entender.

Findo o banho, última etapa rocambolesca. Colocar a roupa. Uma confusão danada. Quer por a camisa nos pés, a cueca na cabeça. Então, cada peça tem e ser alocada, com cuidado e com explicação. Nisso tudo já se passou mais de hora. O banho é uma expedição perigosa e cheia de loucas aventuras.

Banhado e perfumado é hora de ir para o alpendre, onde ele calmamente saca o cigarro, acende, e fica fumegando, com os olhos no infinito. Então me olha e repete o mantra: “amanhã eu vou pra casa”.

quinta-feira, 8 de novembro de 2018

O pai


Dormir não é com ele. Acorda às cinco e meia da manhã e vai até às nove horas da noite. Aí, encontrar coisas que o distraiam não é bolinho. Há que ter muita criatividade. Ainda mais que ele é meio chato e não gosta de quase nada do que a gente inventa. Consigo encantá-lo com a música gaúcha, e ele pode ficar vendo os clipes por um bom tempo. Também gosta da Praça da Alegria e dá muita risada com o Carlos Alberto e sua turma. Adora ficar caminhando pelo pátio, espichando as pernas, fumando um pito e observando as estripulias dos gatos.

Hoje, ao fim da tarde, encontrei-o no jardim. Estava sentado no banquinho de madeira, com os olhos lá no infinito. Sentei ao seu lado e perguntei:

- Que tá fazendo aí, quiridu?

E ele , sem tirar os olhos do ponto no infinito, respondeu.

- Imaginando! ...

Só consegui ficar do seu lado, bem quietinha, imaginando também.

quinta-feira, 1 de novembro de 2018

"Preciso trabalhar"




Uma das rotinas que tive de assumir agora que tenho de cuidar do pai, é a tal da limpeza diária da casa. Antes, tudo ficava fechado e faxinar no final de semana era suficiente. Agora, com a circulação de pessoas e bichos o dia todo na pequena casinha, a sujeira abunda. Então, todos os dias há que varrer e passar pano. Assim, quando chega lá pelas seis horas começo a função.

O pai sempre fica agitado quando eu começo a limpar, porque ele acha que precisa ajudar.

- Que eu posso fazer, filha?
- Nada, pode ficar aí ouvindo música.

Capaz! Ele se levanta e vai para a pia.

- Vou lavar a louça.
- Mas já tá tudo limpo.
- Não tá, não.

Então começa a tirar todas as xícaras de dentro do armário e lava de novo, uma por uma. Repete o procedimento até que eu encerre a lida. Se eu demoro ele lava umas duas ou três vezes. Se eu penduro o rodo e recoloco os tapetes, ele se dá por satisfeito.

- Arrumamos tudo, né?.
- É. Obrigada, querido. Ajudou muito.

Ele fica bem feliz e vai pitar seu cigarrinho.

quarta-feira, 10 de outubro de 2018

As pequenas ternuras do pai




Os dias tem sido tristes, de muita amargura e solidão. Cuidando do pai, acabo entrando ainda mais para dentro de mim. A vida se move entre o trabalho e depois o cuidado com o pai e com tudo o mais: a casa, os cachorros, os gatos, as flores, a horta, a compostagem. Tudo tem de estar limpo e seguro pra que o pai possa transitar tranquilo. A carga de trabalho triplicou e depois da UFSC o tempo é todo pra ele. Cuidar de um velhinho exige não apenas o trabalho braçal, mas toda uma carga de esforço emocional que esgota. Por exemplo: não posso demonstrar tristeza. Porque se ele sente que estou triste, se preocupa e fica sem chão. Então, entrando no portão, o espírito precisa ficar leve. E como é duro encontrar leveza nesses dias tristes. Mas, seguimos em frente, tentando tornar, pelo menos a vida dele, feliz.

Ontem, surpreendentemente, cheguei a casa e ele já estava no banho. Bem alegre sob o chuveiro. Estranhei, já que o banho é sempre uma grande e penosa tarefa. Mas, tudo bem. Beleza. Segui a rotina, limpando banheiro, casa, comida para os animais, roupa no varal, pano no chão. Seis horas fui preparar a janta. Rotineiramente enquanto estou no fogão, dou a ele um copo de vinho, para “abrir o apetite”. Fiz como sempre. Ele estava vendo televisão.

Mexia nas panelas, bem concentrada, quando ouvi sua voz cantarolando: tan tan tan lalalala... Ora, que surpresa! Virei-me para acompanhar sua cantoria e pasmei: ele não apenas estava cantando como dançava, erguendo os pezinhos e mexendo os braços. Minha alma se abriu numa torrente de alegria e todo aquele peso que andava carregando desde o domingo sumiu. Larguei as panelas e fui abraçá-lo, apertando-o por longos instantes. Coração a coração. Talvez, lá no fundo, ele soubesse o quanto eu precisava daquela ternura. Depois, comecei a dançar e cantarolar com ele. Rimos muito.

A vida e sua imanência....


segunda-feira, 17 de setembro de 2018

As aventuras com o pai



Todas as manhãs são sempre iguais. Sair para o trabalho é uma odisséia. Meu pai acorda às cinco e meia, seis horas, depende, mas não passa disso. Sempre procuro despertar antes dele, para tomar banho antes de começar os cuidados, senão o atraso é certo. Sempre há algo para acertar. Ou ele põe o sapato trocado, ou a blusa do avesso, ou o casaco virado, ou o cabelo fica molhado. E não dá para dizer que está errado. Tem de acertar inventando outra história para ele não ficar brabo. Então, depois de ajeitado o figurino, começa o rolo do café. Até aí já tomei banho e vou fazendo uma coisa pra ele, e outra pra mim.

Café pronto e preciso ficar atenta, senão ele joga tudo fora, ou enche de pão, ou amassa o remédio. Então as coisas precisam ser realizadas uma de cada vez. Antes de servir a xícara, corto o pão em cubinhos pequenos, passo manteiga e mel. Depois encho a xícara e só então dou o remédio. Se descuidar ele joga o remédio fora, então tem de ficar olhando se ele põe na boca mesmo. Remédio na boca é hora de engolir. Outra novela. Ele faz a maior enrolação e gira o remédio na boca, ou tira e põe no pão. Esse momento precisa de atenção total.

Quando o remédio já foi para dentro dá pra deixá-lo tomando café sozinho, enquanto me arrumo. Mas é tudo muito rápido. Ele termina e já vai para a pia lavar a xícara. Ali ele arruma novo salseiro, jorrando água pra todo lado. Deixo que ele “trabalhe” senão fica brabo e mal humorado o dia todo. Ele lava a xícara e em vez de guardá-la começa a tirar todas as outras do armário ordenando-as em cima da mesa, enchendo-as de água, cada uma com sua respectiva colherinha. É um ritual. Vamos tentando tomar café, enquanto ele nos olha com ares de repreensão. É um tumulto na mesa, mas tudo bem. Seguimos.

Passado o café já estou exausta, mas é hora de colocar os cachorros pra dentro, porque senão eles saem e correm atrás das pessoas na rua. É sempre a mesma novela. Bota os cachorros pra dentro e o pai vai lá e abre a porta. Gritaria geral. Nããããããoooooo! E corre pra lá e pra cá atrás dos cachorros. 

Ufa. Cachorros dentro de casa, pai no lado de fora e lá vamos nós. Fechado o portão, cachorros pra fora, pai pra dentro e passo o bastão para o Renato, que seguirá com os cuidados até as oito horas quando chega a moça que fica com o pai enquanto eu trabalho e ele vai para a faculdade.

Tudo isso leva pouco mais de uma hora, mas quando sento no carro, parece que já se passaram horas e horas. Não são nem sete horas da manhã e a sensação é de profundo esgotamento. Sem contar que ainda precisarei viver o engarrafamento do Rio Tavares.

Suspiro e olho pela janela. Ele está no alpendre e acena. Tão frágil e bonitinho. É uma daquelas cenas de doce encantamento. A gente ri e acena de volta. E vamos embora com aquela sensação ambígua de preocupação e ternura.

quarta-feira, 1 de agosto de 2018

As aventuras do pai



Quando é dia de vento suli, valamideuzi. Bate uma zica e ele quer sair. Sozinho. Se eu digo que vou junto, arrenega demais, fica brabo, e volta. Não posso deixar ele ir só, pois se perde. Já me aprontou uma assim. Mas, é preciso dar alguma autonomia. Hoje, encrencou, se foi em direção ao portão e saiu. Deixei que ele fosse e fui seguindo de longe, me escondendo atrás dos carros ou postes.  Ele, que não é bobo, vez em quando olha pra trás, pra ver se estou seguindo. 

Minha técnica é deixar ele seguir uma quadra, quando ele dobra, eu corro. Hoje, confundiu o caminho do mercado e dobrou para o lado errado. Fui seguindo, e ele se mandando por umas ruas bem cabulosas, já indo em direção ao mato. Deixei que ele fosse até bem longe. Vi que estava confuso, não sabia se seguia ou voltava. Creio que percebeu que o caminho estava errado.  Fui chegando devagar pra tentar trazê-lo de volta. 

- Mas, olha, tu por aqui?
- É. 
- Acho que me perdi. 
- Não tem problema, vamos juntos. 

Ele me deu o braço, bem tranquilo, e seguiu de volta pra casa com seu passinho ligeiro. 

quinta-feira, 28 de junho de 2018

Uruguaiana e o pai




Quando fico em casa de manhã com o pai tenho por costume colocar o computador com vídeos de músicas gaúchas, para ele ficar vendo enquanto eu cozinho. Preparo um vinho pra ele, que vai tomando de goladas, os olhos percorrendo a tela, o ouvido atento, o pezinho balançando. Mas, se por ventura alguém na música fala “Uruguaiana” ele abre um sorriso e aponta: “olha, olha, Uruguaiana”. É como se o nome de sua cidade natal trouxesse pra ele toda a memória perdida. 

E se eu puxar ele vai contando estórias dos tempos passados, bem longe no tempo. Chega a lembrar com detalhes aspectos da natureza dos lugares. É verdadeiramente uma coisa incrível. Como agora a gente pode gravar lista de músicas, eu tenho procurado colocar entre cada três ou quatro, alguma que fale de Uruguaiana. Assim tenho seu riso garantido por toda a manhã. É um aprendizado isso aí, de cuidar de quem esquece...

quarta-feira, 4 de abril de 2018

As aventuras com o pai




No passado cuidar dos idosos não se constituía problema. As famílias eram grandes, sempre tinha alguém em casa e o velho passava pelos cuidados coletivos. No geral era respeitado e acabava sendo o centro de todas as atenções, mas sem que isso fosse um peso. Hoje não. As famílias são pequenas, todos trabalham e a tendência é o velho ficar sozinho. Quando ele adoece, tudo se complica, porque precisa de cuidados 24 horas e não há como fazer. |Ou vai para um asilo ou alguém tem de ficar em casa. na segunda opção os malabarismos são constantes. Estou com o meu pai há dois anos. Ele já completou 86 anos e vive seu processo de esquecimento. Está bem de saúde, mas vez em quando apronta. Um cigarro solto na cama, o intestino que se solta sem ele querer, dinheiro rasgado, documentos estraçalhados, tudo na inocência. A família pequena precisa armar uma logística tremenda para poder sair para estudar e trabalhar. Temos nossos turnos e ainda conto com a ajuda de duas outras pessoas que se revezam no cuidado. É uma correria. O dinheiro é curto, não dá para ter cuidador em tempo integral. Dá um estresse tremendo, mas a gente vai se ajeitando como abóboras na carruagem. Dia dessas uma das cuidadoras teve um problema e não pode chegar. Todos nós já havíamos saído, o pai estava só. Quando ela avisou, eu já estava na UFSC. Aí foi pesado. Meu trabalho fica a uns 15 quilômetros de casa, mas vivo em Florianópolis. Aqui o transporte é um caos e a gente pode levar até três horas para cumprir esse trajeto, pegando três ônibus. Pirei na batatinha. Era a que estava mais perto. Tinha de ser eu a chegar. Meu espírito de pobre nem cogitou um taxi. Já estava correndo para a parada de ônibus quando um amigo me gritou: “Chama um Uber”. Oi? Bah! Grande ideia. Chamei. Ainda assim levamos uma hora para chegar. Trânsito pesado para o Campeche agora é toda hora. Eu com o coração aos saltos. Finalmente cheguei. O pai estava no portão, olhando a rua. Os cachorros deitados na área, cuidando. Felizmente não saíra. Ficou surpreso em me ver e eu nem deixei transparecer que estava em pânico. Enfim, passado o susto e o estresse, fui cuidar da vida. Ele seguiu com seus afazeres matinais. Na hora em que estava preparando o almoço ele chegou, sentou na poltrona e ficou ouvindo música, como sempre faz. Ele bate o pezinho, eu canto, e a comida vai saindo. De repente ele pergunta: “Mas hoje não ia vir uma mulher aí?” - Sim, mas ela teve um problema, não pode vir. A única mulher que vai estar aqui hoje contigo sou eu. - Ah, tá, e é bem bonita – respondeu, sorrindo. Foi só aí que eu chorei. A parada é dura, mas tem seus momentos de puro encanto.

segunda-feira, 12 de março de 2018

Sempre é tempo de aprender




A vida é mesmo uma coisa mágica. Vivo isso todos os dias com meu pai. Aos 86 anos ele agora vive uma fase de esquecimentos. Mas, ao mesmo tempo, surpreendentemente, ele também aprende coisas novas. Durante toda sua vida nunca foi uma pessoa preocupada com o ambiente. Nunca teve isso isso incorporado ao seu viver. Homem comum, trabalhador, da casa para o trabalho, honesto e cumpridor. 

Agora, vivendo na minha casa, ele passou a observar os costumes da nossa vida. Temos uma vida simples e regradinha nos cuidados com a Pachamama. Lixo reciclado, plástico com plástico, lata com lata, papel com papel. Temos também um bom pomar e uma composteira que produz minhoca e terra boa. Observando, ele reparou que todo o material orgânico a gente deposita lá no fundo, perto da horta, e passou a fazer disso também a sua rotina.

Dia desses levei pra ele uma banana, para que comesse antes de dormir. Já era umas nove e meia da noite. Ele agradeceu e eu sai. Dali a pouco o vi passar pela cozinha em direção ao pátio, com seu passinho arrastado e levinho. Carregava a casca de banana na mão. 

- Onde vai, pai. Já é noite!
- Vou colocar a casca lá onde tem que ser. 

E se foi pelo escuro na direção da composteira. Pois agora ele faz dessa prática um ritual sagrado. Guarda todas as casquinhas para espalhar no lugar das minhocas. E volta feliz, fazendo o sinal de positivo.   

quarta-feira, 28 de fevereiro de 2018

O pai e a autonomia



Quem acompanha as postagens que faço sobre meu pai sabe o quanto ele é marrento. Tudo tem de ser o seu jeito. Hoje ele acordou animado, depois de um dia de resfriado que o pegou de jeito e me deixou a noite toda acordada. 

Levantou serelepe lá pelas nove e meia, já com o cigarro entre os dedos. Quando chegou na cozinha foi que notei. Estava com um chinelo no pé e uma sandália no outro, esta ainda no pé errado, toda torta.

- Pai, tás com dois chinelos diferentes.

-Não tô nada. Tá tudo certo aqui - rebateu, olhando com cuidado os pés.

Eu como ando estudando Espinosa, que diz que as ações adequadas são aquelas que são úteis e aumentam a potencia de ser, deixei pra lá.  Afinal, decidir sobre sua indumentária é uma das poucas autonomias que ele ainda tem.

- Tá bom então, ficou até bonito.

E ele se foi, bem faceiro, arrumar a cama. 

sexta-feira, 23 de fevereiro de 2018

Dia do papito



A manhã nasceu radiante no Campeche. O sol em esplendor, o verde das plantinhas e a alegria dos animais. Tudo isso para saudar os 86 anos do meu papito. Há dois anos vivendo comigo, ele resiste entre pequenos esquecimentos e doces lembranças do passado longínquo. 

Vamos vivendo um dia após o outro, entre risos e brincadeiras, reinventando a relação. Por vezes é duro, mas no geral é puro encantamento. Nada que o cuidado e o amor não resolvam... Hoje dou pago aos deuses e deusas por ainda tê-lo comigo e por ainda estar me ensinando coisas. Algumas eu havia esquecido e outras são surpreendentemente novas... 

Viver é um presente... E foi ele quem me deu..


segunda-feira, 15 de janeiro de 2018

O marrentinho




Cuidar de uma pessoa velha requer um longo aprendizado, feito de tentativa e erro. Quando trouxe o pai para viver comigo, sabia que seria um caminho desconhecido, mas não hesitei. Haveria de dar a ele um tempo bom, nessa hora em que a pessoa deixa de ser útil. Sim, porque o velho é um inútil do ponto de vista do sistema. Ele não produz mais valor. Não trabalha. Só vive. Vive e frui. O tempo lhe pertence, não há compromissos nem ansiedades com o cotidiano. Muito da memória vai embora, e me parece até bom. Porque a pessoa pode sofrer um bocado com as lembranças.

Nesse emaranhado de coisas, o cotidiano do cuidado não é coisa fácil. Mas, a gente vai aprendendo.

Acostumado a um regime alimentar bem simples, foi dureza fazer o pai comer coisas como frutas, legumes ou peixe. Tudo que oferecia ele recusava.

- Quer um pedaço de mamão, pai? Tá muito bom.
- Eu detesto mamão. Não quero.
- Vamos comer um peixe hoje no almoço, que tal?
- Detesto peixe.  Não vou comer.

E eu me descabelando, sem saber o que fazer para ele comer coisas como brócolis, couve,  manga e outros quetais. A ordem médica era comer bem, tentar ingerir as vitaminas necessárias com a comida, para evitar as bagas.

Foi aí que me deu o estalo. Lembrei das historinhas do Rubem Alves. O negócio é não dizer o que é.

Desde então, preparo uma tigela com mamão cortadinho, ou melão, ou manga, cubro com melado, e boto na sua mão.

- Ó, come aí que tem vitamina.

Ele me olha, sereno, pega a tigela e vai comendo. E se o o cardápio do dia for peixe, eu simplesmente ponho no prato, como quem não quer nada e ele vai comendo, bem campante. Já as folhas verdes, não tem jeito. Se colocar no feijão, ele vai caçando as bichinhas, uma a uma, acumulando no lado do prato.

- Isso é ruim.

O jeito então é fazer “tortillas”, misturado as folhas com batata e ovo. Aí dá certo. Ou então, bater no liquidificador e misturar no feijão, invisíveis.

- Quer café, pai?
- Deus me livre.

Espero um pouquinho, faço o café e levo pra ele, postado em frente à TV, vendo novela mexicana. Ele pega a xícara e vai tomando, comendo um bolinho de cenoura, sem chiar.

A parada é dura, mas é também engraçada. O marrentinho é figura!


quarta-feira, 6 de dezembro de 2017

As tarefas do pai



Imagine um homem que foi arrimo de família uma vida inteira. Sempre preocupado com as contas, com os compromissos, com as compras, com tudo. Tudo apontadinho, tudo organizado. Meu pai sempre foi assim. Aí vem aquele momento do esquecimento. A memória falha, as coisas ficam confusas. Isso parece ser coisa normal entre aqueles que vivem muito. E já se vão lá 86 anos...

Por isso é fundamental que, nessa etapa da vida, eles tenham tarefas cotidianas para cumprir. É uma maneira de não se sentirem inúteis. Outro dia, ao chegar a casa, ele estava agitado. Pegou minha mão e disse: precisamos conversar, com aquele tom solene. Então, explicou: “preciso ver como arranjar um emprego. Tenho que trabalhar”. Posso com isso?

Expliquei pra ele que já trabalhara muito, por quase 50 anos, e que agora estava aposentado. Falamos longamente de seus antigos empregos e tudo o que já fizera. E que isso garantia a ele seu salário, portanto não precisava preocupar. Ele respirou, aliviado: “agora tô mais tranquilo”.

Também mostrei que ele segue tendo obrigações importantes. É da responsabilidade dele regar as plantas, secar os pratos e cuidar dos cocozinhos dos cachorros, tarefas que cumpre religiosamente, até quando chove.

Essa última, dos cocôs, ele cumpre de um jeito bem peculiar. Caminha pelo quintal, de ponta a ponta, procurando por eles. Encontrando-os, coloca ao lado deles um pauzinho, como uma marcação. Quando eu chego, no fim da tarde, ele está esperando no alpendre e já avisa: “tá tudo marcadinho”. É a minha vez de atuar então, juntando cada um dos cocôs e enterrando na compostagem. Ele faz sinal de positivo com o dedo, sorri e dispara: “parceria perfeita”.


E é bem assim.  


quinta-feira, 16 de novembro de 2017

Nossos velhos precisam de nós





Fumando um charuto, no dia do aniversário do Che

Como diz o Ziraldo, a velhice acontece assim, de repente.  A pessoa está bem , fazendo coisas, controlando a vida, quando então, algo acontece. Com meu pai foi assim. Um dia, minha irmã o surpreendeu rasgando alguns documentos. Coisa que ele fazia cotidianamente, colocando fora os documentos já velhos, para não juntar lixo. Mas, entre os documentos rasgados, estava a escritura do único bem que ele tem: sua casa. Algo não estava normal. Pouco depois percebemos que ele estava descontrolado nos gastos, contraindo dívidas com o banco. Mais um sobressalto. Sua memória falhava e ele foi definhando. Completara 85 anos.

Levamos no médico e o diagnóstico foi Alzheimer. Prescreveu remédios fortíssimo que o tornaram um zumbi. Não andava e em pouco tempo já não conseguia nem pegar os talheres para comer. Aquilo não estava certo. Por sorte, na intuição, minha irmã suspendeu o remédio.

Foi quando decidi trazê-lo para morar comigo. Minha irmã mora no campo, sem qualquer condição estrutural de cuidar de uma pessoa idosa e doente.

Em Florianópolis consultei um jovem médico, Henrique Passos, desses, preciosos e necessários, que pensam no ser humano e não na doença. E do saco de remédios que ele trouxera, sobrou só um: o da pressão. A nova prescrição foi cuidado, atenção, conversas, passeios, estímulo artístico, interação social, alimentação saudável e balanceada. Tudo foi sendo cumprido e ele renasceu.

Ontem, lendo sobre a situação de João Gilberto, me dei conta do quanto a relação com os velhos precisa mudar. Eles definitivamente não podem ficar sozinhos. Não por um imperativo moral, mas por responsabilidade ética. A velhice tem outro ritmo, outras necessidades, outro ethos. E, a única maneira de manter a sanidade e a alegria por estar vivo é estar cercado de pessoas que lhes prestam atenção e garantem uma relação de amizade, de parceria, de companheirismo.

Há um momento em que a memória recente se vai, que as mãos ficam trêmulas, a capacidade de tomar decisões fica confusa, as funções intestinais se descontrolam. Vejo que não é demência, é simplesmente o início do apagamento da energia vital. Por isso eles precisam de gente por perto, para explicar as coisas milhões de vezes, sem irritação, para amparar o passo, para garantir o riso, para incentivar a memória, para caminhar ao sol, para brincar, para ver novela na TV, para contar das notícias, para ajudar na hora do banho.

Com meu pai tenho aprendido coisas demais. É fato que a vida da gente muda por completo e tudo o que era não é mais. Mas, ao mesmo tempo, coisas que nunca foram, passam a ser. E isso não é de todo ruim. Havia anos que eu não catava pedrinha na rua, havia anos que eu não aquietava em casa nas noites mornas da primavera, havia anos que eu não me demorava tanto para ir de um lugar ao outro, no passinho lento, parando eventualmente para ver o avião passar, ou o cachorro, ou o passarinho.

O fato é que assim como meu pai, o João Gilberto, uma hora começou a mudar, e, ao que parece não havia ninguém por perto para notar. Há que cuidar... Há que ficar por perto. Essa é uma hora que vai chegar para todos nós. E tomara que tenhamos alguém que nos observe assim, com olhar atento, pronto para nos guardar das dores e dos enganos.

O mundo capitalista nos ensina a ter muita pressa, a eliminar o entrave, o diferente, o chato. Não podemos aceitar isso. O futuro pertence aos homens lentos, dizia Milton Santos. Talvez seja isso que a velhice dos nossos queridos venha nos ensinar, na prática.  


quinta-feira, 12 de outubro de 2017

Milanesas





Minha mãe odiava cozinhar. Mas, cozinhava. Nunca trabalhou fora de casa e então, sobrava para ela essa tarefa difícil. Acordava às 10 horas da manhã e já vinha resmungando. Sempre foi assim. Tomava um cafezinho preto e já começava as lides da cozinha. Geralmente mantinha uma horta, com verduras e legumes. Nunca foi capaz de fazer um prato só. Quando dava onze e meia, e o pai chegava do trabalho para almoçar, tudo já estava na mesa. Havia sempre uns três ou quatro tipos de comida diferentes. Todos com um sabor espetacular. Sempre me surpreendeu aquilo, visto o mau humor que tinha ao prepará-los.

Não gostava que metêssemos o bedelho na cozinha, mas ainda assim, fui aprendendo, no olhômetro, os segredos de sua culinária. Saí de casa bem cedo e quando vinha, nas férias, gostava de cozinhar pra ela, aliviando-lhe o fardo, ainda que por poucos dias. Ela deixava, mas ficava na supervisão. Assim que meu jeito de cozinhar tem o jeito dela.

Tal qual ela tampouco gosto de cozinhar. E tive sorte. Saí de casa cedo e desde os 17 anos vivi sozinha, sem preocupações com horários ou almoços. Comer fora virou hábito e nos finais de semana sempre me satisfiz com um sanduba ou um arroz com ovo. Quando resolvi enfrentar uma vida a dois, lá pelo final dos anos 90, também me presenteou a sorte com um companheiro que gosta de comandar a cozinha. E quando meu sobrinho veio morar comigo trouxe sua veia gourmet. Sorte grande em dobro. E eu fora da cozinha.

Agora, há mais de um ano estou cuidando do meu pai. E nisso, vou vivendo um processo de re-cordações. Voltam ao coração às lembranças de um tempo que ele vai esquecendo. É como um jogral maluco. Dentre essas coisas que ele esquece e eu lembro está o gosto da comida da mãe.  E como às vezes eu fico sozinha com ele, sou obrigada a voltar à prática das panelas, afinal, a comida tem de aparecer na mesa.

Hoje, resolvi fazer bife à milanesa. Minha mãe os fazia de um jeito espetacular, ao estilo argentino. Quando ela anunciava esse prato, as bocas salivavam e até os vizinhos passavam pela cozinha para experimentar. Eram famosos os milanesas. Puro primor. Assim, ouvindo sertanejo de raiz e tomando vinho com o pai, fui construindo o edifício do sabor, exatamente como ela fazia. Havia tanto tempo que não me aventurava por esses caminhos e não sabia o que poderia dar.

Mesa posta, milanesas prontos, servi com arroz e purê. A carne era macia e o pai comeu três bifes, com estalos de prazer. Quando já ia terminando o terceiro, vaticinou: “estão iguais aos da Helena”. Era a primeira vez que ele falava da mãe em meses. E saiu assim, naturalmente, como se nada. Eu fiquei quieta e ele seguiu mastigando, tranquilo.

A vida e suas prosaicidades... 

quarta-feira, 30 de agosto de 2017

As moedinhas do pai



O pai gosta de carregar moedinhas no bolso. Precisa saber que tem um dinheirinho ali, para se acaso precisar. Mas, quando vai dormir, acaba derrubando as moedas no chão e no dia seguinte as encontra outra vez, tornando a colocar para dentro do bolso.

Creio que é por causa disso que encasquetou que brotam moedas de baixo da cama. Todos os dias, ao cair da tarde ele pega a vassoura e arreda a cama para procurar moedas.

- Pai, não tem moeda aí, aquelas caíram do teu bolso.

- Não é não. Elas aparecem aqui embaixo, todos os dias.

E toca a passar a vassoura vezes sem conta.

Por conta disso, agora, passei a plantar moedas embaixo da cama.

É indescritível a alegria dele quando as encontra.

-Tá vendo, elas nascem aqui.

E bota as bichinhas dentro do bolso, feliz da vida. Para ele, a casa da moeda já é privada! 

quinta-feira, 6 de julho de 2017

Notas sobre a velhice


Com meu pai, buscado caminhos... 

Então, de repente, a velhice mostra sua cara. E não é aquela dos folhetos da previdência privada, nem da Unimed. É velhice real, que chega e toma conta daqueles que amamos, com doenças e esquecimentos. Pode ser o pai, ou a mãe, ou um avô. E, no contrapé, pega de surpresa, afinal, as pessoas até percebem o velho, mas não notam que ele está perdendo a autonomia. Assim, sem manual e sem qualquer experiência anterior, por vezes é preciso enfrentar uma situação nova, cheia de desafios e surpreendentes ensinamentos.

Foi assim com Nelson. Sempre ativo e tomando conta de tudo, um belo dia foi surpreendido pela filha rasgando documentos importantes. Ela perguntou o motivo daquilo. E ele negou veementemente que o havia feito. Não se lembrava. Acendeu a luz vermelha e lá se foi a família buscar um médico. Um dos melhores de Porto Alegre. Ele fez uma consulta padrão e em poucos minutos já dava o diagnóstico: Alzheimer. Essa doença tão temida, que provoca o esquecimento. A filha fica meio sem chão, mas, seguindo as receitas médicas começa a medicar o pai.  

O remédio logo mostra a que veio. Nelson estava como um bobo. Já não conseguia articular as palavras, não controlava as necessidades físicas, a boca entortava, não queria comer. Foi um baque, porque ele sempre fora o arrimo da casa. Vivendo no meio do mato, sem muitos recursos, a filha, atarantada com a mudança drástica de comportamento, decidiu suspender a medicação. Talvez tenha sido o que o salvou. A bobeira passou e ele começou de novo a atinar as ideias. A outra filha decidiu buscar outro médico. Trouxe para Florianópolis. Nova consulta, um médico capaz de olhar a pessoa e não a doença. Ele chegou à conclusão de que o que Nelson precisava era de uma boa nutrição, cuidado e atenção. O demais, como a perda de memória, ficaria monitorando. Poderia ser o esquecimento normal da velhice. Aos 85 anos isso não era algo tão fora da realidade.  

E assim foi feito. Alimentação saudável, música, cuidado e paciência. Muita paciência. Mas, essa não é uma jornada fácil. Os velhos precisam de atenção durante 24 horas. Porque eles podem esquecer um fogão ligado, um cigarro aceso, meter a mão onde não devem. Aí vem o drama: como cuidar 24 horas, se é preciso sair para trabalhar? A vida vira de pernas para o ar. E quando o velho precisa ser trocado, usar fraldas e tudo mais, torna o cuidado ainda mais difícil. Afinal, é preciso força para erguer, virar, movimentar. Ter uma pessoa idosa em casa, exigindo atenção permanente, é uma virada radical. Poucas famílias conseguem segurar essa barra.

Na verdade, ninguém está preparado para essa tarefa. Não há conhecimento sobre como proceder, o que fazer. A pessoa velha, doente e fora de sua casa, fica irritadiça, nervosa, rebelde. Não se sabe o que fazer. E a única saída é ir tateando no escuro. Ler sobre o tema, buscar relatos de outras pessoas que enfrentam o mesmo drama, buscar amparo. Algumas famílias são maiores, podem dividir as tarefas, construir tabelas de horários para um e para outro, constituindo turnos, rotinas, afinal, o cuidado é permanente. Ainda assim, é difícil conciliar estudo e trabalho. Agora, e quem não tem família, faz o quê?
  
Quem pode cuidar um velho?

Cuidar de uma pessoa velha e doente é difícil demais. Não existe nenhum lugar onde se possa buscar ajuda. Cada família que se vire. Existem os cuidadores particulares, mas o preço a pagar é muito alto. Para uma família de trabalhadores fica inviável. Possivelmente é por isso que uma das opções mais buscada é colocar os velhos num asilo. Não é por descaso ou desamor. É justamente o contrário. Sem condições de cuidar e tendo de prover a família, a pessoa fica sem saída.

Em Florianópolis já existe uma casa, no bairro Santa Mônica, um bairro nobre, que funciona como creche. A família leva o velho e ele fica lá enquanto o povo trabalha. No fim do dia vão buscar e ele vive em família, sem ser privado da companhia dos parentes. Mas, igualmente, é uma opção privada e caríssima.

Há algumas pessoas que já discutem em grupos na internet a possibilidade de criar um movimento pró-creches públicas para velhos. Mas, lendo mais sobre o assunto, surgem muitas dúvidas sobre se esse é um caminho saudável. No geral os velhos não gostam de sair de seus lugares habituais, mesmo os que estão sem memória. Eles têm suas próprias rotinas e andar com eles pra lá e prá cá, todos os dias, pode ser motivo de estresse. E teriam de sair da cama muito cedo para acompanhar quem vai ao trabalho. Um sacrifício total.

E, depois, o velho não pode ser tratado como se fosse uma criança. Esse é um dos erros mais comuns que se comete. Eles já passaram por essa fase, e ainda que não tenham lembrança de várias coisas, de alguma maneira sabem que não são bebês. Então nada de guti, guti, nem de tutelagem. É fundamental que o velho tenha alguma autonomia. Que possa decidir sobre o que comer, o que fazer, como passar o dia. A família que cuida precisa ficar de longe, a cuidar e, vez em quando, propor um passeio, uma distração. Mas, isso, como já vimos, não é uma opção para muita gente.

Fui buscar na internet sobre a experiência de cuidar velhos em Cuba, que é um país com uma proposta socialista, e percebi que lá eles têm discutido bastante essa questão. Porque também estão vendo sua população viver bem mais. Esse é um assunto novo, afinal, a longevidade não era coisa que fazia parte da nossa vida. No Brasil, entre 2005 e 2015, a proporção de idosos de 60 anos ou mais, passou de 9,8% para 14,3%. E há estimativas de que em 2050 esse número triplicará. Esses são números do Brasil, mas o envelhecimento da população é uma tendência mundial. Não é sem razão que o sistema capitalista aponta para reformas de Previdência em todos os países. Querem os velhos trabalhando até a última gota de energia.  

Mas, voltando a Cuba. Lá, a população já tem uma experiência de 60 anos de socialismo, a ideia de solidariedade é uma coisa que vive no cotidiano das gentes e assim como com as crianças, é comum numa rua ou numa comunidade específica, todos cuidarem de todos, prestando atenção em quem saiu, quem está doente. Ainda assim, podem-se ler muitos artigos sobre a necessidade de um cuidado mais específico para com os velhos. Também há debates sobre a criação de creches públicas para esses casos. É um tema em discussão. Enquanto isso, o estado orienta as comunidades a se ajudarem uns aos outros no cuidado com os velhos, principalmente com os doentes.

No mundo capitalista já não temos essa sorte. Nem da solidariedade, nem da preocupação. No geral, quem tem um velho que se vire com ele. É comum as pessoas ficarem sozinhas na estrada, inclusive com o sumiço dos amigos. Na vizinhança também pouco se consegue de solidariedade. As pessoas se preocupam, perguntam, mas não estão dispostas a uma ajuda concreta. O máximo que se tem é mirada do pessoal da padaria ou do mercadinho, que é avisado sobre a doença do esquecimento, porque as famílias colocam ali um telefone para o caso de a pessoa aparecer sozinha ou se perder.

A logística do cuidado, dentro de casa, tampouco é coisa fácil. A vida de todos fica afetada. Uns mais, outros menos. Há muito estresse, pois é preciso respeitar religiosamente os horários de cuidado, para que ninguém fique prejudicado. Alguém tem uma aula fora do horário, uma reunião, uma festa, e toda a família precisa se reacomodar. E, em Florianópolis, onde o transporte é um drama à parte, garantir isso é dureza. Uma pessoa que mora no sul da ilha, como eu por exemplo, leva mais de duas horas para fazer o percurso entre a casa e o trabalho, e qualquer atraso numa parte do caminho pode significar que alguém ficou na mão. Haja maracujina.

Mas, ainda há outros tropeços, como enfrentar a tristeza de ver alguém perdendo a memória ou a rotina incessante das repetições. Há momentos em que os velhos ficam irascíveis e até violentos. Porque não conseguem verbalizar uma palavra, ou porque não se lembram de algo, ou porque não querem tomar banho. É doloroso. A velhice pode ser um momento bonito se o velho tiver saúde e pessoas que o amam a sua volta. Mas, isso não é válido para todos. Até porque, hoje, as famílias são pequenas e muitas não conseguem estabelecer uma rotina de cuidados. Outras há que não encontram outra forma senão asilar. E sofrem com isso também.

Assim que a propaganda da previdência privada sobre a melhor idade é uma enganação. Somos uma geração que precisa aprender como fazer para cuidar dos nossos pais, ou tios, ou avós, porque eles estarão aí. E nós, os trabalhadores, não temos muitas escolhas. Por isso não é bom tatear às cegas, abrindo a mata à facão. Dá muito trabalho e cometem-se muitos erros.

Então, esse é um tema sobre o qual precisamos falar mais, aprender juntos, como sociedade. Termos mais solidariedade real. Afinal, já existem estudos que mostram que no caso dos que optam por cuidar dos velhos em casa, boa parte acaba morrendo primeiro que eles, por conta do tremendo estresse a que ficam submetidos, seja pela logística, seja pela tristeza de ver os pais ou avós definharem.

Hoje, eu estou nessa missão de cuidar do meu pai - conto com meu companheiro e dois sobrinhos - o que ajuda bastante. E quando caminho na minha rua meus olhos procuram os velhos. Não os vejo. Mas se os vir, vou fazer como os cubanos: oferecer o conhecimento que estou construindo, oferecer ajuda no cuidado. Creio que esse pode ser um caminho. Se cuido do meu pai, posso cuidar do pai ou da mãe de alguém no mesmo período. Quem sabe a gente não começa, por aí, a constituir uma solidariedade por rua. Enfim, são coisas que me acometem, pensamentos, ideias, utopias.

E por aí vamos...


segunda-feira, 12 de junho de 2017

Do que vai se aprendendo




Uma das coisas difíceis de lidar no cuidado com as pessoas mais velhas é a teimosia. E se elas têm problemas de memória então, valei-me São José do passa-quatro. As coisas precisam ser repetidas e repetidas, sem exasperação. Com carinho e cuidado, para que a pessoa não se estresse. Já é duro ter de enfrentar a falta das lembranças, se tiver alguém forçando ou impaciente, tudo fica pior.

Agora nesses dias de frio fui fazer o pai colocar um casaco mais quentinho, para além das blusas de lã. Qual o quê!

- Esse casaco não é meu! Não é meu.

- Pai, é teu sim, tu trouxeste lá do Rio Grande.

- Nunca vi esse casaco na vida. Não é meu, não vou botar.

Respira, respira e respira. Lá fora faz 8 graus. E é lá que ele quer estar.

Rendo-me e deixo o teimosinho sem o casaco. Pego um livro e vou ler, como se nada. E ele fica por ali, no alpendre, com o cigarro entre os dedos, baforando.

- Mas tá frio, heim? Ele diz, e vai para o quarto.

Dois minutos depois volta com o casaco que até poucos minutos “não era dele”.

- Tá quentinho esse aí, pai?

- Tá ótimo!


É assim, na paciência, deixando que as coisas se acertem por si, que vamos levando.


quinta-feira, 1 de junho de 2017

O pai e as poças



Depois de quase um mês de chuva, o sol apareceu nessa quinta-feira. Hora de pegar o pai e sair para dar uma volta, desenferrujar as pernas. Fomos ao mercado, que é o único passeio possível. E lá fomos nós, arrastando os sapatos, devagarito no más.

Uma boa parte da rua é calçada, mas há um trecho onde o chão é de areia e, quando chove, é comum a formação de centenas de buracos nos quais a água fica acumulada. Cuidando dos passinhos do pai, avisei:

- Pai, vai pelo cantinho, cuidado com as poças de água.

E ele, sem nem me olhar, se foi caminhando na direção das pocinhas. Splash! E lá tascou ele o pé dentro d´água.

- Cuidado, vai molhar o pé.

E ele, tal qual o Armandinho, do Alexandre Beck, seguiu saltitando, sempre fazendo questão de pular bem dentro da poça de água, esparramando o barro por todo o lado. Ria feito um menino. Foi assim por todo o caminho de areia.

Resultado: deixei que ele fosse enlameando os pés e a calça. Afinal, só se vive uma vez, e o quê pode haver de mais divertido do que ficar saltando dentro das poças de água numa manhã de sol?


Chegando a casa, foi hora de fazer um escalda pés, limpar os tênis e trocar as calças. E ele, faceirinho, curtindo a traquinagem. 

domingo, 14 de maio de 2017

Um dia de domingo



Dia de domingo, sol de outono, aquela belezura. Mas, aqui no meu bairro não há qualquer espaço onde se possa passear com um velho. Ou é a praia, ou nada. Como ele precisa caminhar, eu vou com ele até o mercado. São 20 minutos no tempo do passinho dele. Vinte pra ir, vinte pra voltar. Andamos pelas prateleiras, compramos alguma guloseima, passamos na farmácia para pesar e pronto. Acabou. No pequeno centrinho comercial do Castanheira não há opções, e até os cachorros precisam ficar de fora. Como o Steve insiste em nos seguir, temos de voltar rápido, pois todos nos olham com maus olhados. Então, lá vamos nós de volta para casa.

É incrível como nesse nosso mundinho periférico, capitalista dependente não há mesmo qualquer cuidado com as crianças ou os velhos. Tudo é planejado para a azáfama do capital e os caminhos só levam ao trabalho. Lazer é para poucos. Se a pessoa não tem carro, então, baubau. Resta o girar em torno da quadra, no geral em solidão, pois os muros são altos e as pessoas estão fechadas nas suas casas.

As crianças ainda recebem algum cuidado, afinal, elas serão os braços do amanhã. Por isso há creches, escolas e alguns parquinhos mal cuidados. Mas os velhos, esses não têm mais nada para dar. Já foram sugados de todo. Não geram mais valor. Então, que se fodam.  Para eles, não há espaços de lazer, não há cuidados, não há nada. Cada família que se vire. E o destino da maioria é ficar dando tratos ao nada, sozinho, em alguma varanda, quando não, trancado em algum quarto.

Cuidar de um velho é um desafio. Não temos mapas, não nos preparamos, não sabemos como fazer. Tudo é feito às escuras, tateando, errando e acertando.  O que temos nas mãos é um cristal, frágil, delicado, qualquer aperto quebra. Com eles não são válidas as didáticas e as pedagogias infantis. Eles já cruzaram todo o caminho e, se estão esquecidos, não se perderam de todo. Então, há que ser cuidadoso. Por vezes demoramos horas para arrancar um sorriso e é preciso muita paciência para enfrentar os ataques de mau humor, a impaciência e a tristeza.

Com meu pai tenho aprendido. Não é fácil. Penso que eu, ainda tenho a sorte de contar com a ajuda dos que vivem comigo, meus sobrinhos e meu companheiro. Mas me angustia saber que nesse mundão de deus tem uma carrada de velhinhos perdidos e sozinhos, porque as famílias não têm a menor condição de cuidar. Há que prover a vida, há que trabalhar, há que moer o corpo na roda do capital. Não é culpa de ninguém, é a porra da vida que não abre saídas.

Essa é outra batalha que temos de travar. Arrancar do poder público garantias de cuidados para aqueles que já atravessaram o grande deserto. Dura batalha num país que hoje discute justamente o contrário, buscando tornar a velhice ainda mais cruel, sem aposentadoria digna, sem amparo. E ainda temos de aturar propaganda de previdência privada falando em "melhor idade". 

Definitivamente precisamos de revolução. Pelos que ainda não vieram e pelos que insistem em ficar, mesmo quando o sistema de moer gente os quer excluir. 


quarta-feira, 15 de março de 2017

Há mais velhos no Brasil, e eles estão fodidos




Os velhos são lentos, mas não são idiotas


Sempre me encantou a cidade de Porto Alegre. Desde que me lembro, é muito comum ver os velhos circulando pelas ruas, no comércio e principalmente nos restaurantes. Geralmente são aqueles que vivem sozinhos os que têm o costume de comer fora, por conta da comodidade. E é bacana ver como os restaurantes estão completamente adaptados à presença dessas pessoas que, ao contrário dos adultos, são lentas e, por vezes confusas. Sempre há um trabalhador pronto para ajudar, e no mais das vezes, sorridente e prestativo.

Mas, penso que isso é uma raríssima exceção. No geral, as pessoas tratam muito mal os velhos, ignorando que eles estão num outro patamar da realidade, completamente diferente da loucura que já foi incorporada pela maioria das gentes, desse mundo acelerado e tecnológico. No serviço público, a situação é lamentável. Outro dia, levei meu pai a UPA do Sul, por conta de uma febre de 29 graus. Ele tem 85 anos e sofre do mal de Alzheimer. O enfermeiro que o atendeu para a triagem pediu que ele colocasse o termômetro embaixo do braço. E o pai completamente confuso, atarantado pela febre, deixava o termômetro cair. Foi assustadora a reação do rapaz. Falou com o pai de maneira desrespeitosa, voz alta, ríspido.

-Eu já coloquei esse termômetro três vezes, tem de segurar.

Pois não via ele que ali estava um velhinho doente? Não podia ter um pouco de paciência? Não! Não teve o cuidado de tratar com carinho alguém que não estava no seu normal.  E que nem fosse carinho, mas com um pouco de respeito pela condição da pessoa idosa.

Da mesma forma são absurdas as regras do SUS. Para marcar consulta o velho tem de ir até o Posto, ficar na fila, às seis da manhã. Tem a opção de marcar pelo telefone, mas no geral é para dois ou três meses. Logo, se quer ser atendido tem de ir para a fila. Não importa se está doente, se não pode caminhar, se está com febre. Também o remédio de uso contínuo só pode ser retirado pelo paciente, “para evitar fraudes”. E olha que nunca uma palavra significou tão bem: paciente. Haja paciência para lidar com tudo isso. Quem mora longe do posto, e não tem carro, cada vez que precisa pegar o remédio tem de carregar o velhinho, todo estropiado, pelo transporte desintegrado. Um absurdo. Com certeza deve ter uma forma mais humana de lidar com isso sem dar moleza para a fraude.

Mas um dos lugares onde o velho mais padece é no banco. Obrigado que é a receber sua aposentadoria nessas malditas casa de usura, lá vai ele todo o mês para retirar seu pagamento. Os mais velhos não conseguem acompanhar a loucura da informatização. E por mais que o funcionário explique, a coisa é incognoscível. Experimente tentar ensinar como é que retira o dinheiro aplicando a senha de 4 dígitos, depois a senha de letras e números e toda aquela sorte de botões. Não dá! É impossível. Outro dia vi uma velhinha chorado copiosamente, dizendo: “não entendo, não entendo”. E não podia entender mesmo, e o funcionário fazendo cara de paisagem. Por que, com todos os caralhos, não capacitam essa gente para lidar com os velhos? Isso deveria ser prioridade num país onde o número de velhos aumenta significativamente a cada ano.

Tenho andado por aí com meu pai e vivenciado essas experiências todo o dia. É de arrasar. Porque a gente fica pensando que um dia também vai chegar nossa hora e teremos de igualmente viver toda essa sorte de humilhações e desrespeitos.

O velho pertence à classe dos homens e mulheres lentos. Tudo neles é pausado, tranquilo, vagaroso. Eles demoram a decidir a comida, eles demoram em entender as sentenças imperativas, eles se confundem com os sinais, as placas, eles param no meio da rua para olhar os passarinhos, eles escutam, mas por vezes não ouvem, eles se distraem com uma música, eles caminham bem devagar, eles são frágeis e precisam que as pessoas lhe toquem o braço, sorriam e repitam várias vezes as mesmas coisas, sem exasperação, sem rispidez, sem pressa. Eles não são crianças, para serem tratados como bebezinhos. São velhos. Portanto precisam que as pessoas os reconheçam na sua capacidade e autonomia. Estão baleados, mas ainda sabem quem são. Estão confusos e lentos, mas ainda podem tomar decisões sobre as coisas. Só demoram um pouco mais.


Fico pensando que, talvez, quando os capitalistas descobrirem que os velhos são também “consumidores”, quem sabe comecem a mudar a forma de atender, respeitando essa diferença. Mas, seria bom que as pessoas já pensassem sobre isso e começassem a mudar no trato com eles. Não custa nada desacelerar e ouvir delicadamente a confusão. Depois, ir desenrolando o novelo da desordem, com carinho e atenção. Veja o velho como um espelho. Ele é tu amanhã. 

E a considerar a reforma da Previdência que o governo Temer está planejando para os brasileiros, o destino de todos os trabalhadores será esse: de sofrimento, miséria e desrespeito. Barrar a reforma é preciso, mas ainda há muita estrada para caminhar no que diz respeito ao cuidado com os velhos do Brasil.

quinta-feira, 2 de fevereiro de 2017

O caçador de carrapatos


Minhas tarde agora se tornaram lentas. Porque, nelas, compartilho a vida com meu pai. Todo dia é único, ainda que algumas coisas se repitam. Ele anda por uma vereda de esquecimentos, então, todos os dias, determinadas coisas precisam ser ditas mais uma vez.

Ele sempre se espanta que sua mulher, minha mãe, já tenha morrido. “Mas eu não sabia disso”. E eu: “sabia sim, é que tu esqueceu”. Outro espanto cotidiano é a demora para a consulta no dentista. Faz quatro meses que esperamos pelo chamado do Posto de Saúde. “Mas aqui não tem um dentista que se possa ir e pagar depois?” É que na cidade onde ele morava, lá no interior de Minas, era assim. Precisava de um médico ou dentista e ia. Pagava quando, como e quanto pudesse. Seu médico o conhecia mais que ele mesmo, 30 anos de parceria. Isso ele lembra.

Outra coisa que não esquece é da outra filha e o neto que vivem no Rio Grande. Toda hora arenga: como estarão?
Pois agora que uma das cachorrinhas está paralítica, ele tomou para si a tarefa de fazer carinho quando ela chora. Está sempre por perto e a qualquer chorinho, lá está, passando a mão pelo dorso, devagarinho. E não é que ela para de chorar na hora?
Fora isso, como é verão e tem bichos demais na casa, estamos vivendo o tempo dos carrapatos. Todas as tardes, depois de ver a Usurpadora, no canal do Sílvio Santos, vamos para o alpendre, para fazer a checagem dos cachorros, ver se apareceu algum carrapato. Enquanto eu faço a triagem ele fica de olho no chão. Descobriu que os bichinhos vez em quando passeiam pelo piso clarinho, vindos da grama. Fez-se caçador. Os olhos de lince percorrem atentos cada cantinho e por incrível que pareça sempre acha um. “Lá vai um, lá vai um”, grita, esperando que eu faça a caçada. Sua função é descobrir onde estão, não se atreve a pegá-los.
No final do dia ele faz a conta dos que achou e compara com os que eu achei nos cachorros. Se ganha em número, ri, satisfeito.
Se eu demoro a chegar ele fica andando pra lá e pra cá no alpendre, esperando para começar a vigilância . E quando eu assomo no portão, avisa: “já vi uns bichinhos”.
E assim vamos passando o verão, entre bichos, risadas e a lentidão do outono da vida.

quarta-feira, 4 de janeiro de 2017


Sobre velhinhos...


Eu comecei a cuidar de pessoas velhas quando tinha ainda uns 14 anos. Meus avós por parte de mãe foram morar conosco. O vô era agricultor e fora expulso das terras que arrendava. Era um sem-terra e eu nem sabia. Como toda sua vida tinha sido no campo ele não se acostumava com a vida na cidade. Seguido eu o surpreendia no jardim da mãe, mexendo com as flores, a terra escorrendo entre os dedos. Sentia pena e tratava de ir ajudar na tarefa. Não falávamos nada, apenas cuidávamos das plantas, cúmplices. Vez em quando trocávamos sorrisos. Então ele contava alguma de suas piadas. Comecei a ter por hábito vigiá-lo. Caso o percebesse triste, lá ia eu me encostar, feito um gato. Outra coisa que fazíamos juntos era jogar pife. Pelas noites afora. Minha vó também gostava e era o melhor jeito de levar alegria para os dois.

Quando meu vô ficou doente e foi para o hospital, eu entrei em desespero. Não sabia o que fazer para aliviar sua dor. Sentava na cama e ficava a lhe fazer carinho. Em silêncio. Quando ele acordava eu contava das notícias e ele sorria. E de novo voltávamos ao silêncio, só sentindo o toque suave da carícia. Ele se foi poucas horas depois da minha última vista. Até hoje sinto seu cheiro, misto de cigarro e terra.

Depois fomos para Minas e a vó foi com a gente. Também tomei como tarefa cuidar de seu bem estar. Ela gostava de massagens. E eu aplicava todos os dias. Longas sessões com arnica e álcool. Também cuidava de fazer limpeza de pele e preparar as unhas, sempre de vermelho vivo. Nas noites de sábado, nada de balada. Era o pife com a vó. E como ela tinha outro filho morando no Rio Grande, cabia a mim levar e trazer a vó, nas longas viagens de ônibus. Todo o ano fazíamos a jornada.

Quando já fora de casa, trabalhando em Caxias do Sul, consegui alugar minha primeira casa, foi com ela que dividi a morada. Ela dizia cuidar de mim, mas era eu quem cuidava de seu bem estar. Ela gostava de ter sua casa novamente, sem se sentir dependendo dos filhos. Sua maior diversão era reunir as amigas para o pife, e lá elas iam noite adentro enquanto eu servia bolinhos de chuva. Como os tempos eram duros a vida era regrada, mas nunca faltava a música e o vinho. Foram anos muito alegres com a minha vó, sempre ao som do Tijuana Brass.

No final dos anos 80 eu vim para Florianópolis em situação bem ruim. Sem emprego e sem dinheiro, e ainda fazendo a faculdade. A vó já morava com minha tia em Porto Alegre. O tempo passou, a vó encantou, eu segui meu caminho, sozinha. Agora, depois de tanto tempo, revivo as aventuras que tive com meus avós cuidando do meu pai. Ele não está tão velhinho, mas com sérios problemas de memória. Todos os dias são como um eterno retorno. As histórias têm de ser contadas e recontadas. A memória vai e vem. Por vezes ele fica triste e eu fico como ficava diante do meu avô. Sem saber bem o que fazer. Acabo inventando coisas para fazer junto. Regar o jardim, secar a louça, dar um passeio, conversar, comer coisas gostosas, tomar vinho. Também há tempo para risadas e brincadeiras. Fazer massagem nas mãos, cortar as unhas dos pés, tirar os cravos do nariz.

Depois de tanto tempo sem essa missão de cuidar de alguém fiquei enferrujada. Mas já estou melhorando. Cada dia é uma descoberta. Há horas que são tristes, outras não. O melhor caminho ainda é aquele que, intuitivamente, fui trilhando com meu vô Dionísio. Carinho, cuidado, amor. Assim, vou me fortalecendo e garantindo a esse querido companheiro dias de mansidão.

Agora, por esses dias, andamos, ele e eu, a cuidar de nossa cachorrinha paralítica. Enquanto eu arrumo a água e a comida, ele fica do lado da Chiquinha, acarinhando cada vez que ela chora. E faz questão de lembrar a cada hora: Já deu água? Já deu ração? Já deu o remédio?

Fico pensando que o amor é mesmo uma experiência estonteante. Quanto mais a gente dá, mais a gente tem.  

terça-feira, 1 de novembro de 2016


“Então eu tô louco?”




Nos finais de tarde é tempo de tomar chimarrão com o pai, buscando conversas e lembranças do fundo da memória. É a hora em que ele faz perguntas sobre coisas que não consegue mais entender. Não como a criança, cheia de curiosidade. É um velho, por vezes sem memória,  cheio de perplexidades. Hoje, em meio a um gole e outro do mate, ele puxou um “recuerdo” lá dos anos 70. É assim. Do nada, se lembra de coisas muito antigas. Enquanto lhe explicava que amanhã é feriado pelo dia dos mortos, ele perguntou por um velho amigo dos tempos da Rádio Fronteira do Sul, onde trabalhou durante anos em São Borja. “E o Lauro, já morreu?” 

- Sim, pai, já morreu há muitos anos, muitos mesmo.

Ele terminou o mate, bem devagar. Depois, coçou a cabeça e disse: “Tantos amigos meus já morreram e eu não estava sabendo de nada”. Aí é a hora de explicar que ele sabia sim, só que esqueceu, por conta de a memória estar com algumas falhas. Uma longa e minuciosa explicação que ele escuta atento.

- Eu sabia, e esqueci?

- Sim, isso mesmo. Mas aí a gente vai conversando e tu vais lembrando.

Um silêncio. Mais silêncio. “Mas, então, eu tô louco? Como posso não lembrar?”

E lá vou eu de novo, explicando devagar. “Não pai, não estás louco, é que...”

A vida de quem vai ficando velho é assim. Como se fora uma Penélope de Ítaca. Tece o tapete durante o dia, amarra os fios da memória, busca lá dentro da cabeça alguma fagulha de passado. E quando vem a noite, algum duende trata de desfazer toda a trama. Quando chega a manhã ali está de novo o tapete, esperando ser tecido.

Então, quando vem a tarde, e estamos juntos, tudo se repete. As perguntas, as respostas. É triste e ao mesmo tempo um aprendizado. Hora de aprender a lentidão outra vez, numa vida que foi tão cheia de coisas para fazer. Tempo de também buscar memórias igualmente esquecidas ou obscurecidas. Puxando o novelo do passado vamos refazendo a tapeçaria, dele e minha. Por vezes me surpreendo com a capacidade que tenho de recuperar detalhes ínfimos de histórias velhas. Conto e reconto, dia após dia. E quando ele se lembra, dá uma gostosa risada. Rimos juntos.

Às vezes ele parece triste, outras vezes fica com raiva, por não conseguir lembrar. Mas, de repente, passa um cachorro, aninha a cabeça no seu colo e ele se perde na ternura do gesto de acarinha-lo lentamente. De novo recupera serenidade. Pega um cigarro, fuma lento, e sai devagarinho, arrastando os pés. Lembra que é hora de molhar as plantas. Um átimo e já esqueceu que esqueceu.

Assim, a vida segue. E a gente vai aprendendo. É duro, mas tem lá a sua beleza.


26 de julho de 2016

Deslembrar


Fotos: Rubens Lopes

Até ontem minha vida era a rotina do caos. Manifestações, reuniões, aulas, trabalho, atos, palestras. Um universo em alta rotação. Vida louca. Nenhuma preocupação maior a não ser mudar o mundo com a barafunda de ações e vontade. Então ele chegou. Veio sem querer, mansinho e silencioso. Das brumas do passado, descortinando outra forma de viver. Desarranjou tudo e colocou a existência de pernas para o ar.

Meu pai.

Do alto de seus 84 anos, iniciou agora um processo de deslembrar. Memórias que vão se perdendo, nomes, lugares, momentos. Sabe-se lá o porquê disso. Doença, senilidade, vontade. Agora, está na minha casa e na minha vida, feito uma criança grande, precisando de cuidados.

Lembro como se fora hoje dos dias em que íamos ao estádio de futebol. Eu agarrada na sua mão, adentrando ao campo, aos vestiários, descobrindo a magia do futebol e do jornalismo. O mundo do rádio. Também lembro de mim, conduzida pelo seu senso de justiça e de amor pelos livros. Por conta dele – que comprava todos os livros dos vendedores que batiam à nossa porta – aprendi a ler bem cedo, a amar as palavras e a construir mundos com elas.

Não foram poucos os caminhos pelos quais ele me guiou. As letras, as margens do rio Uruguai, os campos do Japejú, o uso do microfone, a poesia campeira, o universo das novelas de rádio, a música sertaneja, os fandangos de galpão, a honestidade calvinista, a responsabilidade com o outro.

Quando saí de casa, aos 17 anos, levava tudo isso na bagagem e foram esses saberes que me conduziram nas insanas trilhas por onde passei. Feito pandorga, loucamente solta no ar, mas firmemente atada a esse jeito de ser no mundo. Quase 40 anos depois, não sou eu quem volta, mas ele. Precisando da minha mão para adentrar nesse mundo estranho do esquecimento. E ele está aqui.

Toda a vida conhecida até agora vai mudar. Há que sentar com ele ao sol, tomar chimarrão, puxar pelas lembranças antigas, cantar, ver o pôr-do-sol, apreciar o canto dos passarinhos. Há que caminhar passinhos pequenos, sem pressa, controlar os remédios, cuidar da higiene, brincar. A missão mais importante do dia é lhe arrancar uma gargalhada. Nada de reuniões, nem atos públicos, nem compromissos. Só esse ficar quieta, com ele, na manhã.

A isso meus parentes originários chamam de reciprocidade. A hora de dar, porque muito já se recebeu. Então, também para mim é chegada a hora das ausências. Vou fazer esse caminho das des/lembranças, na parceria com o pai. Cruzar com ele os portais dos postos de saúde, das esperas por exames, da amarga odisseia dos que precisam do sistema público.

E pelas ruas do Campeche vamos seguir, mão na mão, como naqueles distantes dias, em São Borja, quando eu adentrava aos mundos desconhecidos com ele. Lá, ele me guiava. Agora, guio eu.



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