sexta-feira, 3 de maio de 2024

Os desastres, a política e a ciência

Foto: Diego Vara /Agencia Brasil

O ano era 1775. Lisboa. Portugal. O dia estava claro e sol apascentava as colinas. Então, o terremoto. Uma das maiores tragédia daquele tempo. A terra tremeu com dois grandes abalos de nove pontos na escala Richter, a cidade desabou e ainda veio um tsunami arrastando os escombros. Milhares de pessoas morreram. Foi a primeira grande catástrofe midiática mundial, discutida em toda Europa e fora dela. O horror do terremoto levou vários pensadores da época e buscar explicações para tão grande destruição e mortes. Voltaire dedicou um poema ao terremoto e escreveu no seu livro “Cândido” como a igreja tratou do tema: "Depois do terremoto que destruiu três quartos de Lisboa, o meio mais eficaz que os sábios do país inventaram para evitar uma ruína total foi a celebração de um soberbo auto de fé [ritual de penitência pública], tendo a Universidade de Coimbra decidido que o espetáculo de algumas pessoas sendo queimadas em fogo lento com toda a solenidade é um segredo infalível para evitar tremores de terra ". Horrores para evitar o horror, coisa típica da inquisição. 

O deus impiedoso e vingativo aterrorizou Voltaire e os grandes filósofos da época trataram de dar explicações mais seculares para o infortúnio. No seu famoso poema Voltaire ironizou a ideia de que deus tivesse um propósito naquele sofrimento. 

"Cem mil desafortunados que a terra devora,
Os quais, sangrando, despedaçados, e palpitantes embora,
Enterrados com seus tetos terminam sem assistência
No horror dos tormentos sua lamentosa existência!
Aos gritos balbuciados por suas vozes expirantes,
Ao espetáculo medonho de suas cinzas fumegantes,
Direis vós: «Eis das eternas leis o cumprimento,
Quem de um Deus livre e bom requer o discernimento?»
Direis vós, perante tal amontoado de vítimas:
«Deus vingou-se, a morte deles é o preço de seus crimes»?
Que crime, que falta comentaram estes infantes
Sobre o seio materno esmagados e sangrantes?"

Kant, por exemplo, escreveu textos mostrando que deus não tinha nada a ver com a coisa. Tudo tinha causas naturais. Mas é Rousseau quem vai dar a explicação mais próxima da realidade. Segundo ele, ali não estava a mão de deus, mas dos homens, bem como a decisão de ocupar o espaço da cidade de maneira equivocada. "A natureza não construiu ali 20 mil casas de seis a sete andares, (...) se os habitantes desta grande cidade vivessem mais dispersos, com maior igualdade e modéstia, os danos causados pelo terremoto teriam sido menores ou talvez inexistentes”. Mostrava assim que as causas das mortes não estavam relacionadas unicamente ao tremor de terra, tão inusitado, mas no modo de organizar a vida. 

Aquele desastre desencadeou muitas mudanças no mundo e uma delas foi a valorização da ciência. De tal maneira que no projeto de reconstrução da cidade, comandando pelo Marques de Pombal, houve uma grande preocupação em substituir as ruas sinuosas e estreitas por largas avenidas, bem como garantir uma separação maior das construções e o uso de estruturas flexíveis de madeira para que os prédios tremessem, mas não caíssem. 

É incrível que tendo passado tanto tempo ainda há quem acredite que os desastres ditos ambientais são obras de deus ou da natureza. Ao mesmo tempo em que é incrível que a humanidade ainda não tenha compreendido o valor da ciência. Os portugueses do 700 abraçaram-se aos cientistas que ensinavam como se proteger de tragédias como aquela, mas nós, em pleno século XXI permitimos que políticos medíocres e vende-pátrias aprovem leis que são ataques inomináveis ao que a ciência já determinou como necessário para a proteção das vidas humanas. Códigos ambientais feitos para alegrar o bolso de empresários, fazendeiros e mineradores, enquanto as tragédias se repetem ano após ano, cobrando vidas e recursos públicos. 

Todos sabem como evitar enchentes, deslizamentos, terremotos e outros desastres, mas preferem ignorar as respostas. Depois, quando a calamidade se instala, pagam de bons cristãos com discursos emocionados e pedidos de ajuda aos “desabrigados”. Hoje assistimos aos rios crescendo e devastando o Rio Grande do Sul. Já vimos isso em Santa Catarina, no Rio de Janeiro, enfim, em todos os cantos. Amanhã ouviremos os mesmos políticos e “gestores municipais” choramingando por conta da seca que desertifica os lugares e provoca tanto sofrimento aos humanos e aos animais. E ainda assim, os legisladores do capital seguirão aprovando leis que destroem o ambiente, provocando cada uma destas tragédias. Até quando isso seguirá? 


segunda-feira, 29 de abril de 2024

Palestina, uma dor pulsante

Getty Images


Todos os dias vejo os horrores de Israel contra o povo palestino. Milhares de mortos. Crianças feridas vagando, velhos perdidos na angústia, famílias revirando escombros, buscando comida. Centenas de pessoas andando pelos caminhos, sendo caçadas como num filme de roliúde. Os Jogos Vorazes impiedosos dos sionistas, assassinos confessos. Uma dor que pulsa como um vidro cravado no peito. Impossível dormir. Impossível seguir vivendo como se nada. Na impotência, vamos gritando para ver se os malditos governantes do mundo acabam com essa dor dilacerante que atravessa o corpo e alma dos palestinos. Mas, nada acontece. 

No meio de todo esse horror, com  mais de 30 mil mortos e cidades despedaçadas, também morrem os jornalistas. Nesses tempos tiktokers, de dancinhas e musiquinhas, onde o jornalismo agoniza, jornalistas tentam passar ao mundo a verdade do genocídio. Mas, estar com a identificação de “imprensa” do meio do inferno promovido por Israel não vale de nada. Como não valem nada as resoluções da ONU  ou coisas assim. Nenhuma regra vale para Israel. Nesses seis meses de massacre, o grupo Repórteres Sem Fronteira já contabilizou 103 profissionais assassinados. Deste número 91 são homens e 12 são mulheres. Vinte e dois morreram enquanto estavam com o microfone ou a câmera na mão, reportando. Assassinatos frios e calculados. Bastou estar reportando o genocídio no lado palestino e já vira alvo. Os únicos jornalistas respeitados e protegidos são o que atuam do lado das forças de Israel, contando mentiras ao mundo. 

A verdade não tem vez no território sob bombas. A verdade morre junto. A verdade é despedaçada junto com os corpos dos profissionais que insistem em reportar a realidade desde dentro de Gaza. Ali, são alvos, como qualquer um palestino. Porque o jornalismo que escancara a verdade tem de ser destruído. Basta a gente ver a agonia de Julian Assange, o primeiro a desvelar os horrores da guerra no Iraque. Preso, torturado, jurado de morte. Porque decidiu mostrar a barbárie. Os homens e mulheres que se arriscam hoje nas ruas de Gaza para mostrar a realidade são filhos dessa proposta tão bem defendida por Assange: revelar as entranhas dos monstros. Expor suas vísceras.

É fato que o jornalismo desapareceu dos meios comercias. Mas, pessoas há que ainda insistem, via outros espaços, sem a palavra “imprensa” escrita nas costas, reportando a vida e a morte. E por mais que as bombas atravessem os corpos, outros tomarão as câmeras e os microfones e seguirão narrando. E é por causa deles que o jornalismo ainda vive em Gaza, mesmo sob os escombros do genocídio. Na Palestina as vozes não se calam, por mais que os assassinos insistam. 

Como jornalista me envergonha um pouco que nem o Sindicato da categoria, nem a Federação realizem uma campanha sistemática de repasse de informação sobre Gaza. E que tampouco pranteiem esses colegas que tombaram sob as bombas israelenses, 103 jornalistas. Cá na minha insignificância eu  velo seus corpos e dignifico sua coragem, diariamente, repetindo com o imorrível Mahmoud Darwish:

"Sobre esta terra existe algo que merece viver

Sobre esta terra está a sua dona, a mãe dos começos, a mãe dos finais.

Chama-se Palestina.

E segue chamando-se Palestina. 

Palestina: eu mereço, porque tu és a minha dama, eu mereço viver."

Viverá. Palestina Livre